O dedo do ladrão

Aborrecido, sonolento, um homem esperava no banco dos réus a sua vez. A manhã estava a ficar comprida, com um caso de vizinhança amarga entre um segundo e um quinto andar de prédio, acusações de barulho fora de horas que acabam em insultos, ameaças, às vezes violência corporal. Eu escutava as testemunhas e lembrava-me de um caso antigo no tribunal em que um jovem acabara a morder a sua vizinha de cima por culpa do cão da vizinha sempre lhe ladrar e tentar morder. Tendo já visto uma coisa assim – um degrau acima da já gasta notícia do homem que morde o cão – confirmamos que os prédios são organismos vivos que, envenenados pelos pés (a cave), podem ficar doentes do sótão, e vice-versa.
Nesta manhã comprida, o homem no banco dos réus bocejava, encolhia e esticava o pescoço de pato no blusão de ganga. Às vezes, como é natural nos intervalos mais pasmosos da vida, observava as mãos, cruzava os dedos, raspava umas nas outras as unhas escuras. Uma pessoa consegue olhar as próprias mãos e pensar por um momento que estas não lhe pertencem, que são de outra pessoa, como naqueles filmes de terror em que um honesto cidadão amputado ganha numa cirurgia a mão de um assassino… e acaba a estrangular-se a si mesmo.
Mas eram suas as mãos, como se percebeu quando o homem foi julgado. O caso tinha a ver com a identificação dos dedos. Pela segunda vez em dois anos, explicou-lhe a juíza, as impressões digitais do arguido tinham sido encontradas em situações semelhantes: assalto a um cabeleireiro de bairro. O crime mostrava regularidade e até grau de planeamento: de madrugada, uma pedra grande atirada contra o vidro da montra, seguido do roubo de champôs, cremes, cosméticos, o que apanhasse antes de fugir.
Nada filmado, sem testemunhas. Mas o homem não usa luvas e tem azar ou é desastrado – um grau de esquizofrenia foi citado na acusação -, porque sempre se corta num vidro. E depois coloca o indicador em qualquer superfície, como se renovasse o seu cartão de cidadão (ou de ladrão).
– Deseja falar sobre o assunto?
– Não.
Desde os Antigos se sabe que um ser humano nasce com um desenho digital único, um dactilograma formado pelas papilas da pele na almofada dos dedos. Ninguém no mundo terá uma igual, nem sequer um gémeo verdadeiro. Todas a ressumarem pequenas doses de suor e gordura, que deixam marcas onde tocam. No século XIX, o politalentoso matemático, psicólogo e sociólogo Francis Galton, primo de Charles Darwin, elevou o estudo a um nível científico (também inventou a palavra “eugenia”, apuramento das características genéticas que levaria às sinistras interpretações nazis, mas essa é outra conversa). O trabalho de Galton permitiu que, em 1902, em França, fosse condenado o primeiro detido com base nas impressões digitais.
A vítima do homem, brasileira, contou que lhe tinham roubado cerca de 50 euros em cosméticos, além do prejuízo da montra.
– Reconhece este senhor?
– Nunca o vi.
O homem saiu
– Três horas nisto!
e a juíza marcou a sentença para outra data. Faltava o relatório da integração social do homem que assalta cabeleireiros, que não é crime menor. Tenho muito respeito por salões de bairro, sobreviventes do assalto em curso da gentrificação, a eugenia das cidades, por assim dizer. Reconto uma história recente: a minha mulher estava no seu cabeleireiro-manicure de bairro, em Arroios, quando entrou um rapaz enfiado num fato de hipster parolo, calças a saltar a ribeira, meiinha branca com bolas coloridas e sapatos à licas. Representava uma marca internacional de produtos de beleza e vinha vender cosméticos. Quando lhe disseram que a patroa não estava, pediu o cartão da casa, e como cartão da casa não havia, pediu o site da internet, e como o cabeleireiro não tinha página na internet, indignou-se:
– Realmente não percebo como é que vocês existem! Não estão em lado nenhum!
E saiu perseguido pelas gargalhadas de cabeleireiras e clientes, pessoas reais que cortam cabelos e pintam unhas verdadeiras.
– Não estamos em lado nenhum, como?! Estamos aqui há trinta anos!
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)