Rui Cardoso Martins

O construtor de ruínas

Ilustração: João Vasco Ribeiro

Entrou na sala num passo tão suave que me fez acreditar que é possível levitar em sapatos de pelica, desde que brilhantemente engraxados. Por cima de tudo, perpendicular ao nariz de empena, caindo a prumo no queixo, havia um telhado de cabelo também engraxado, polido com pentes e gel. E quando começou a responder, a voz deslizava como cimento fresco raspado pela pá triangular, ajustando-se aos buracos, tentando tapá-los.

– Eu consegui fazer alguns pagamentos ahhhh… dois ou três inicialmente, mas depois comecei a ter algumas dificuldades financeiras e também o divórcio… E portanto eu cheguei hoje e agora vamos a ver se conseguimos dar a volta e ver se as coisas começam a correr melhor.

– Bem, então vou-lhe perguntar: até este momento, qual foi o valor que pagou?

– Ahhh… eu penso que foi duas vezes 1 500, e mais 500.

– Então… 3 500?

– Sim, sim. Eu penso que sim, senhora doutora juíza. A minha intenção é efectivamente continuar a pagar.

– Mas olhe, a quantia que o senhor tem a pagar é elevada.

– Sim, sim.

– E o senhor tem consciência de que a sua pena foi suspensa com uma condição.

– Sim.

– Então, o que é que o senhor pretende fazer?

– O que eu pretendo é concluir o pagamento.

– Quando?

– Ahhh… estamos a dar a volta à vida porque entretanto o divórcio, os filhos, a crise, agora estou com o meu irmão, estou a tentar a ver se consigo outra vez comprar a…

– Senhor Sérgio, eu percebo as dificuldades da vida, mas o senhor tem de estar consciente que tem uma pena de prisão suspensa e que tem esta quantia para pagar, há as vidas das outras pessoas, o tribunal não pode estar indefinidamente à espera. Das duas, uma: ou o senhor revela o que tem, revela o motivo pelo qual não pagou e o concretiza, ou então corre o risco de que esta suspensão seja revogada e ter de cumprir pena de prisão efectiva.

– Mas isso aí…

– Estou-lhe a perguntar: o senhor não tem qualquer bem que possa vender para efectuar este pagamento?

– Sim, estamos a tentar por alguns meios resolver, mas como disse à senhora doutora juíza…

– O que me está a dizer é muito vago.

– Porque o dinheiro pode ser pouco, depois com os filhos… agora que as coisas já estão encaminhadas, estamos a voltar aos poucos, se houvesse aqui uma possibilidade de prolongarmos o caso por dois anos, eu poderia pagar.

– Então seria pagamentos mensais de que valor?

– Poderia fazer pagamentos para agora, para este primeiro ano, de mil euros mensais e para o ano poderia aumentar.

– Mas em dois anos não paga este valor.

– É uma questão de fazermos as… no segundo ano poderíamos talvez passar para os dois mil.

– Eu não sei. Penso que o senhor quando foi convocado sabia para o que vinha. Está acompanhado de advogado, tem tido dificuldades na vida, o divórcio, os filhos.

– Mas eu quero pagar.

– Mas está-me a fazer uma proposta muito vaga. E quem quer pagar, sabe quanto pode pagar, ao cêntimo. E o senhor nem sequer tinha feito as contas.

E a conversa cresceu como uma parede até se ver o género de patife manso que ali estava. Construtor civil. Enganou uma pobre mulher, cobrou-lhe 70 mil euros e não fez a obra. Não lhe devolveu nada 3 500 euros, só 1 600. Enganou mais pessoas, mudou os negócios para o irmão (que lhe pagará 1 300 euros de salário), as propriedades e carros não se sabe para onde, cada mentira que dizia era para vir outra mentira corrigi-la, falava e ouvia-se a surdina de um pensamento: “Talvez acreditem, talvez eu mesmo acredite no que estou a dizer”.

Para quem não tem vergonha todo o mundo é seu.

Isto passou-se na Região Centro, um pouco abaixo e à direita, se apontássemos para o mapa de Portugal como para um corpo humano, era a zona da bílis.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)