“O BE não fará parte de um governo que não seja capaz de nacionalizar os CTT ou que alimenta as PPP”

Entrevista de Alexandra Tavares-Teles | Fotos de Jorge Amaral/GI

O encontro foi marcado para os jardins do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa. Ar livre, num dia cheio de luz, ainda frio. “Que bonito e tão pouco conhecido.” Da esplanada vemos o Tejo. “Pois é, já lá vão 20 anos.” Catarina Martins tinha 25 anos em 1999, o ano da fundação do Bloco de Esquerda (BE). Revisitámos, por momentos, um Portugal muito diferente. “Um país que prendia os toxicodependentes em vez de os tratar, em que vigorava a regra entre marido mulher não metas a colher, um país muito mais conservador. Mais desatento. Não usávamos a palavra precariedade para definir as relações laborais”, sublinha a deputada e Coordenadora Nacional do Bloco.

No ano em que comemora 20 anos de fundação, o BE continua a assumir-se como um partido de protesto, mas que também quer ser governo. Como se resolve esse problema?
Não me parece que o BE tenha passado de partido de protesto para partido que quer ser governo. O BE é como sempre foi – um partido de transformação, anticapitalista, antipatriarcal. Mas é desde o princípio, também, um partido que não abdica de transformar, sempre que possível, já. Mesmo num quadro difícil até do ponto de vista internacional, com a agressividade do capitalismo financeiro, é o que temos feito.

Como conjugar o protesto e o radicalismo com as contingências e a influência moderadora da governação?
É muito simples: o BE nunca fará parte de um governo enquanto não existir uma maioria social que permita fazer transformações. Tal como dissemos no início desta legislatura, não fizemos um acordo para ir para o governo, fizemos um acordo parlamentar, o possível, com a força que tínhamos.

Trocando por miúdos.
O BE não fará parte de um governo que não seja capaz de nacionalizar os CTT. De um governo que não seja capaz de alterar a forma como lidamos com as questões da dívida pública e do sistema financeiro. De um governo que alimenta as PPP (parcerias público-privadas). Nunca faremos parte de um governo por acordo com uma política que não é a nossa.

Não parece ser essa a fé de todos os militantes do partido. Recentemente, um grupo de 26 bateu com a porta, acusando BE de aburguesamento.
Não creio que seja uma crítica justa e lamento a saída. Já se tinham afastado há algum tempo e decidiram agora formalizá-la. Mas estou certa de que vamos continuar a encontrar-nos em muitas lutas.

Quando rejeita a existência de extrema-esquerda no BE, quando corrige declarações polémicas de um assessor do BE contra a polícia, proferidas num quadro de violência policial, adotando um tom institucional, não está a romper com o partido revolucionário e radical?
São situações diferentes. O Bloco nunca se definiu como extrema-esquerda; foi sempre um termo que outros usaram, ora para nos menorizar ora para branquear o percurso para a direita do PS. Ultimamente, tem sido usado para fazer algo ainda mais perigoso: branquear a extrema-direita. Não admito. Quanto ao mais, não corrigi as declarações de ninguém. Nunca corrigirei declarações de ativistas que estão no terreno a lutar. O que fiz foi falar em nome do BE, que é uma coisa diferente.

Vinte anos depois, num cenário de aliança governativa, quem são os ministeriáveis do BE?
Há pessoas com muita competência que trabalham no BE e com o BE e esta legislatura é disso prova. O partido tem sido proponente de peças legislativas muito complexas, fruto de colaborações muito vastas, que têm feito a diferença. Basta olhar para o passado recente – o estatuto dos cuidadores informais, matéria na qual ninguém tinha entrado, a reforma florestal, o trabalho por turnos. Estamos a falar de competência e de capacidade para fazer o trabalho.

Em que pasta poderia fazer a diferença?
Antes da pasta vem a definição das políticas. Neste momento, além das urgências claras à esquerda – direitos do trabalho e o estado social universal -, a prioridade, do ponto de vista estratégico, é a reconversão da nossa economia e do nosso território, em função das alterações climáticas. Precisamos de fazer uma reconversão energética que exige o controlo público da energia, a aposta na ferrovia, adaptação da indústria. Precisamos de eficiência energética, de apostar nas nossas casas e com isso criar emprego. Tanto emprego que pode ser criado para estas mudanças. Temos de apostar no desenvolvimento científico e tecnológico, priorizar o investimento. Essa é a nossa política. Quais são as melhores pessoas para executar esse programa, é uma questão que vem depois.

Ano de eleições europeias e legislativas. Como vai o BE dizer mal de um partido, o PS, com o qual quer fazer uma aliança?
O programa do Bloco é o que é, mais difícil é saber o que o PS quer. Para nós, o que interessa é o programa político, saber que condições permitem que um determinado programa avance. Nas eleições de 2015, o programa do PS previa cortes nas pensões, previa um sistema de plafonamento que haveria de conduzir a uma privatização, pelo menos em parte, da Segurança Social, previa uma quebra das contribuições patronais para a SS, previa a facilitação de despedimentos. Medidas muito distantes de qualquer coisa que pudesse ter sido feita com o apoio do BE. Pois o acordo que veio a ser assinado começou precisamente por essas questões, a que se somaram outras. Agora, como então, o BE é muito claro: faremos o que for possível para que o compromisso que defende o trabalho, a educação, a habitação, a saúde, o ambiente, o compromisso que responde às urgências do país, dê passos de progresso e não de atraso.

A reedição da geringonça é possível ou agora uma aliança com o PS só com o Bloco no governo?
Em 2015, fizemos um acordo de mínimos. Mas a política tem de ser sempre mais exigente. No acordo de 2015, inscrevemos que a tarifa social de energia tinha de ser automática. Com essa medida multiplicámos por dez o número de beneficiários. De 80 mil passaram para 800 mil. Bom, agora, precisamos mesmo de baixar os preços da energia. O mesmo se aplica aos impostos. Precisamos de uma verdadeira transformação fiscal que vá tributar o capital e o património.

Portanto, só estando no governo.
Portanto é preciso ter força e que haja um programa de esquerda. O Bloco nunca fará parte de um governo que não seja de esquerda. O BE estará no governo quando tiver força para isso. Os 10% de 2015 não foram suficientes.

A questão europeia. Como compaginar a vossa posição com a do PS?
Sobre a Europa, temos o Brexit, governos de direita, de extrema-direita e até protofascistas em alguns países da Europa e, portanto, nada vai ficar como está. Todos os partidos serão convocados a apresentar o seu projeto de Europa. No BE, queremos recuperar instrumentos de soberania nacional que permitam defender o estado social, reconstruir os direitos do trabalho, retomar o investimento público e decidir sobre o sistema financeiro. A pergunta é: quais são os partidos que se vão unir para recuperar instrumentos de soberania que permitam responder a necessidades prementes de coesão social?

Conta com o PS?
O PS tem tido uma posição muito estranha. Por um lado, tudo indica que o Partido Socialista está alinhado com os que querem manter o sistema. A ser assim, será muito difícil. Por outro, no Parlamento Europeu votou com a Marisa Matias o relatório que rejeitou a passagem do tratado orçamental a lei europeia, dando ideia de estar a arrepender-se do que fez há uns anos. Há, desse ponto de vista, muita indefinição no PS. Já o BE defende o que sempre defendeu.

Acredita que António Costa aceitará formar governo com o BE?
As vontades dos líderes contam muito pouco. O que conta mesmo é a relação de forças (sorri). A relação de forças é o que conta. Ouvi sempre muito bem o que disse António Costa antes de 2015. Quem o ouvisse tão bem quanto eu diria que era impossível acordarmos sobre fosse o que fosse. Mais. O BE contestou muito afirmativamente o programa que o PS apresentou em 2015. Aliás, continuo a acreditar que o PS teria aplicado aquele programa nos seus exatos termos – cortes nas pensões, facilitação de despedimentos, mais privatizações -, se tivesse ganhado as eleições. Acontece que não ganhou. E por isso precisou de um acordo à esquerda. E foi esse acordo que travou aquele programa. Repito: as vontades dos líderes contam muito pouco.

O PS tem condições para conseguir a maioria absoluta?
Preocupa-me muito mais em saber se existe uma maioria social em Portugal que defenda o estado social e os direitos do trabalho.

Que metas eleitorais irá estabelecer o Bloco?
Deixemos primeiro que todos apresentem os seus programas.

As eleições europeias serão avaliadas como um teste? O que será um bom resultado?
Reforçar significativamente a presença. Do ponto de vista da força do BE, é obvio que crescer é importante. Do ponto de vista do programa político, ainda que os instrumentos institucionais sejam diferentes, o BE das europeias e o BE das legislativas é o mesmo.

Perante um mau resultado, ponderará a demissão?
Os resultados eleitorais não determinam a forma como o partido se organiza. Não é assim que nos medimos. Mas há sempre responsabilidades individuais e coletivas. Eu assumirei as que tiver de assumir.

António Costa não esconde que confia na palavra do PCP. Acredita que confia igualmente no Bloco?
O BE foi sempre absolutamente coerente e leal em todos os momentos e em todos os acordos que fez. Sabemos todos isso.

Destes quase quatro anos de geringonça, o que ficou a saber do primeiro-ministro que desconhecia?
(Pausa) Talvez ele tivesse uma ideia errada do BE. Atribuiu ao Bloco uma instabilidade que o partido não tem.

Conseguiu surpreendê-la?
Em certos momentos mostrou uma resiliência importante para o avanço de alguns projetos. Mas retrocedeu em matérias que achávamos acordadas. Essas foram surpresas muito negativas.

Fala da baixa da TSU? Foi o momento mais tenso na relação com o Governo?
Sem dúvida. A baixa da TSU, justificada como compensação para subida do salário mínimo nacional, foi contra o que tínhamos acordado. E por isso, no Parlamento, não deixámos passar a medida. Foi um momento tenso, com muitas chantagens. Dizia o Governo que seria impossível encontrar uma solução alternativa, viu-se que a solução é possível. E viu-se que o Bloco leva os acordos a sério.

Centeno vai além de Costa ou o primeiro-ministro e o ministro das Finanças pensam exatamente da mesma maneira?
Pensam a mesma coisa. Não quero acreditar que não seja assim.

Nunca se arrependeu de ter assinado o acordo?
(Pausa) Há a sensação de que se poderia ter ido muito mais longe. O PS fez apenas o estritamente acordado, o que é um pouco ingrato. No início da negociação a ideia era “isto não vai correr bem”. O PS estava com muito medo de tudo o que fosse investimento e reposição de rendimentos. Provou-se que o BE estava certo e que a reposição dos rendimentos ajudou à economia. Por isso, não se percebe porque razão não foi executado mais investimento público nas infraestruturas do país, com os custos que estão à vista na saúde, na educação, nas forças de segurança. Tendo ficado igualmente provado que o aumento dos salários mais baixos tinha efeito muito positivo na economia, e que não provocava desemprego, também não se percebe porque razão foram travadas as conquistas dos direitos do trabalho.

Não é fácil negociar com o PS?
Depende da correlação de forças. Em 2015, o programa do Partido Socialista consignava, por exemplo, o congelamento das prestações sociais e 250 milhões de euros por ano poupados em pensões e prestações sociais. Essa foi uma alteração tirada a ferros, é verdade.

Qual foi o momento mais penalizador para o BE?
Do ponto de vista da conquista política, foi o chumbo do PS à medida de combate às rendas da EDP, voltou atrás com o acordado.

Como avalia o comportamento do PCP ao longo destes três anos?
Temos muitas convergências com o PCP: nos direitos do trabalho, na defesa do Estado Social universal, na legislação laboral. Temos divergências sobre matérias também estruturais como são as da igualdade e de emancipação. É pena que o PCP continue a achar que não pode dar passos de modernidade. Na minha opinião, não só pode como deve.

Vinte anos depois, o BE continua sem implementação no mundo sindical. Onde estão os operários do Bloco?
O BE nasceu com uma maneira diferente de se relacionar com os movimentos sociais, nomeadamente com os sindicatos. Nascemos contra as correias de transmissão, e isso traz dificuldades de implementação no terreno. Temos de trabalhar mais e melhor para que os sindicatos sejam mais plurais e menos correias de transmissão.

A base do Bloco diverge da do PCP na composição e estrato social. O mundo do operariado e o mundo rural são pouco sensíveis, quando não discordantes, de algumas das causas do BE. O Bloco é o PS de esquerda?
O BE é um partido socialista, ecologista, feminista, antirracista. Define-se por si mesmo. E também não vejo assim tanta contradição entre esses dois mundos. É claro que estamos num país conservador. É verdade que algumas lutas sobre progressos e direitos nos confrontam a nós próprios e com os erros que temos encontram uma certa resistência popular. A luta feminista confronta muitos homens e mulheres de esquerda com as construções culturais identitárias sobre si próprias que são patriarcais. O mesmo se passa com a luta anti- racista. O choque é, sabemos, difícil. Mas não fugimos dele. Não acredito que o BE precise de abandonar alguma das suas lutas emancipatórias, pelo contrário, para crescer do ponto de vista popular.

Quantos militantes tem o BE?
Uns nove mil. Mantemos os cadernos muito atualizados. (ri)

Vinte anos depois, a implementação autárquica do partido é quase nula. Porquê?
Nas autarquias, não há partidos para além dos mais antigos. Mas também porque o BE apostou os seus quadros mais visíveis no trabalho nacional. É também verdade que o poder autárquico tem problemas graves de democracia. No atual desenho do sistema, a visibilidade das oposições é inexistente. Portugal é um país com concelhos muito pequenos, desde logo com enorme dependência, a todos os níveis, do poder autárquico, o que cria dificuldades grandes à afirmação e alternativas locais.

O caso Robles, representante do BE na Câmara de Lisboa, marcou o fim da inocência do Bloco?
O Ricardo (Robles) fez um trabalho extraordinário na Câmara de Lisboa, mas, é verdade, uma incoerência na sua vida privada tornaria difícil, a partir daquele momento, a sua capacidade de agir. Em política, e na política, temos de ser coerentes em tudo o que fazemos. Estamos, no entanto, a falar de um negócio privado, nada que tivesse a ver com dinheiros públicos, aproveitado para fazer um enorme ataque ao BE. Era preciso encontrar alguma coisa no BE e o que se encontrou foi uma incoerência de uma pessoa que a responsabiliza unicamente a si própria. O Ricardo tirou as conclusões e fez o que devia.

Foi apanhada de surpresa pela notícia?
Desconhecia o negócio familiar, mas disseram-me que a notícia ia sair.

Pessoalmente, como lidou com esse processo?
Confesso: com uma enorme surpresa. Não tanto pelo Ricardo ter uma família com dinheiro, mas por ter tido a ingenuidade de não perceber que não há negócios familiares quando assumimos responsabilidades políticas.

Fez conta aos danos políticos? O Bloco vai pagar o preço?
Não sei. Lembro-me bem de uma senhora que se cruzou comigo na rua, creio que foi a primeira vez que alguém foi verdadeiramente desagradável comigo na rua, e me disse “não tem vergonha? Ser rico não é pecado e ele estava a fazer um bom trabalho na câmara”. (sorri) É complicado. O compromisso político é complicado.

Que diz a portuense de Rui Rio?
Boa parte da minha intervenção política foi feita quando Rui Rio era presidente da Câmara. Tinha maioria absoluta e uma política autoritária e socialmente muito violenta. Trabalhei com pessoas dos bairros mais vulneráveis no Porto, alguns demolidos por ele. Assisti de perto à violência e ao autoritarismo. Portanto, não sou capaz de descolar a imagem de Rio desses tempos: autoritarismo, perseguição aos jornalistas, violência social. Diz que resolveu alguns problemas. Bem, tudo o que é resolvido com violência social e autoritarismo acaba por vir assombrar-nos.

E da líder do CDS?
Assunção Cristas tem um papel estranho, tenta fazer de conta que não tem passado. Vejo as posições dela sobre o sistema financeiro e penso: como é possível? O CDS estava no Governo, reconduziu Carlos Costa, depois de já saber que esteve ligado aos offshore do BCP, que esteve na administração da CGD, depois de, já governador, não ter visto nada do que se estava a passar no BES. Agora, aparece Cristas a concordar connosco e a afirmar que Carlos Costa não tem condições para continuar (gargalhada). Não é surpreendente? Como é possível andar por Lisboa, a falar sobre despejos, a pessoa que fez a lei das rendas, lei que determinou boa parte daqueles despejos? Sei que na política há contradições inevitáveis, mas Assunção Cristas está nos limites do cinismo.

A moção de censura do CDS foi irrelevante ou obrigou a esquerda a defender o governo que ataca na rua?
É irrelevante, por escolha do próprio CDS, que afirmou logo na apresentação da moção de censura que queria obrigar a uma definição do PSD. É uma corrida eleitoral da direita, diz pouco ao país. Até porque a contestação social e as greves, invocadas pelo CDS no texto da moção, têm reivindicações concretas. E sobre essas reivindicações, no momento do voto no parlamento, o CDS e o PSD estiveram sempre ao lado do Governo, travando os avanços nas carreiras ou nos salários. Não me parece que o país esteja tão distraído que não perceba que o CDS fala das greves, mas não ouve o que elas dizem.

É possível à extrema-direita vingar em Portugal?
A extrema-direita precisa de duas condições para crescer – um sentimento social de falta de saída e a ajuda da direita. Então, sim, cresce, criando raiva e ódio sem dar solução. Cresce porque a direita a abraça. Veja-se o que está a acontecer em Espanha. Se acontecer em Portugal, combateremos com a proposta política.

Este CDS dará a mão à extrema-direita?
Já ouvi a Nuno Melo declarações muito próximas do que pode ser um discurso extremado. Mas espero bem que não.

Assinou o acordo da geringonça contra Cavaco Silva. Marcelo Rebelo de Sousa inspira-lhe mais confiança?
A mudança de presidente trouxe uma melhoria. Temos alguém que diz publicamente que respeita a diversidade de que a democracia é feita. Há também, agora, alguém com empatia, que promove uma certa reconciliação das pessoas com o poder político. Dito isto, Marcelo Rebelo de Sousa é um homem de direita. Facto que não devemos esquecer nunca.

Está na liderança do BE desde 2016, depois de dois anos como porta-voz do partido. Que líder é a Catarina?
(Ri) Acho que não sei responder a isso. A direção do bloco é coletiva. É mesmo. Há, portanto, um trabalho partilhado. Mas, claro, existe sempre uma dimensão de responsabilidade e de exposição pessoal que não é partilhável.

A dada altura das negociações com o PS teve de dizer “quem fala pelo Bloco sou eu”.
Assumo as responsabilidades que devo assumir em cada momento. Prezo muito o coletivo, mas não deixo de assumir responsabilidades que são minhas.

Como tem vivido estes últimos anos?
Têm sido anos muito intensos, do ponto vista político, em que aprendi a relativizar mais. A relativizar a opinião partilhada ou o que se diz nas redes. Os anúncios da morte do Bloco não me tiram o sono nem me dão dores de cabeça. Valorizo sim, e muito, a capacidade de ligação a pessoas de quem vulgarmente dizemos que não são muito politizados, mas que de facto estão a interpelar-nos sobre a vida pessoas, que é o que mais importa na política.

Nestes anos de liderança o que aprendeu sobre si mesma?
(Longa pausa) Que em certas matérias sou mais resistente do que pensava. Noutras, mais frágil. Estou numa posição de pressão contínua, em que preciso de resistir a pressões contraditórias e várias. Acho que vou tendo essa capacidade.

Que pressões tem a líder do BE?
Desde logo as do Partido Socialista, a não querer cumprir partes do acordo (ri). É preciso ser determinado para garantir que se cumprem.

Fale-me das fragilidades que julgava não ter.
Na política, e fora dela, trabalhei sempre em equipa. Vivi em tantos sítios, aprendi a adaptar-me com facilidade a novas realidades, a ser autossuficiente. Mas, na verdade, todos os dias dou por mim a perceber que não posso mandar ao João (Semedo) a mensagem que agora mesmo me apetecia mandar-lhe.

Como é o processo de decisão?
A Direção do BE é coletiva. Ouve-se, discute-se, tomam-se as decisões. E decisões tomadas são decisões tomadas.

“Uma mulher na política, se for de esquerda, ou é má mãe ou lésbica”, disse à “Notícias Magazine” há três anos. Mudou alguma coisa, entretanto?
Vai mudando, porque as pessoas habituaram-se a ver mais mulheres, a ouvi-las. Mas sempre que surge um tema polémico, para lá das afirmações mais ou menos violentas sobre o assunto, vem uma catadupa de comentários misóginos que não deixa de me surpreender. Ou que não devia surpreender-me.

Refere-se às redes sociais?
Sobretudo nas redes sociais. Na relação direta comigo, menos. Mas continua a existir um paternalismo. Quando me dizem “está muito bem preparada”. Creio que nunca disseram isso a um homem com responsabilidades políticas.

O BE tem várias mulheres em lugares de muito destaque. Mas quem é o braço direito?
A Mariana Mortágua é, talvez, a pessoa com quem estou mais tempo. A Marisa partilha a Direção política com a responsabilidade de Direção a nível europeu e internacional, e, portanto, há uma articulação do ponto de vista de decisão muito presente. Todas nós trabalhamos muito em conjunto. E muito importante: somos várias mulheres porque tomámos a decisão de sermos várias mulheres. E essa decisão – as mulheres decidirem que têm de ser várias – faz a diferença.

Dentro do próprio Bloco, ouvem-se comentários sexistas?
Claro que sim. No Bloco, como em todos os partidos, há comentários sexistas.

Como reage?
Mal. Por vezes, com algum sentido de humor, por vezes sem sentido de humor algum. Desde logo dizendo que não é admissível. Ou enfatizando: “Como?”

Em casa, nunca encontrou um deslize?
Nunca. Estamos juntos há mais de 20 anos.

E no Parlamento?
Hoje sinto menos do que há uns anos. Mas não tenho dúvidas de que continua a existir. O sintoma mais visível é o paternalismo. Nas comissões, o que diz um homem é sempre ouvido, o que diz uma mulher nem sempre. O homem tem direito a nome, a mulher é a “senhora”. Há depois coisas mais graves, do ponto de vista da aproximação pessoal, que são de todos os dias e que todos os dias são inaceitáveis. Se uma mulher está com cara séria logo ouve “então, querida, o que aconteceu?”.

Ouvem-se piropos?
Também. É preciso deixar claro que são desadequados. E quem os diz fica envergonhado. Lembro-me de que há uns anos, tinha acabado de chegar ao Parlamento, um deputado insistiu em oferecer-me o pequeno-almoço no bar dos deputados de uma forma que achei pouco própria. Na altura voltei costas. Hoje, talvez não me limitasse a voltar as costas.

“Dizem que as mulheres são mais resistentes do que os homens, mas eu não quero ser mais resistente do que os homens. Quero ser frágil e incompetente como qualquer homem se for preciso”. Mantém?
O mito das mulheres serem mais resistentes serve unicamente para continuar a justificar o abuso sobre elas. As mulheres trabalham tantas horas quanto os homens nas suas profissões. Depois, pedem-lhes que tenham todo o trabalho do cuidado com a família e com a casa. Absolutamente inaceitável.

O que ganhou e perdeu com a exposição política?
Não creio que a exposição faça qualquer bem à vida privada ou familiar de alguém. Do ponto de vista pessoal só perdi. Por exemplo, se andar de mão dada com as minhas filhas na rua, a minhas filhas sentem-se observadas. Não ganho nada com isso.

As filhas ainda aceitam andar de mão dada com a mãe?
A mais velha, de 16 anos, claro que não. A mais nova, com 12 anos, ainda.

Com o companheiro anda de mão dada?
Raramente.

Por se sentir observada ou porque não gosta?
Pela observação.

É romântica?
Sou, sou.

Que perguntas fazem as filhas à coordenadora do Bloco?
Perguntas do quotidiano. “Olha, não tenho aulas porque rebentou um cano, como é possível que a escola ainda não tenha tido obras.” Cobram. E com razão.

Escola pública?
Claro, sempre.

Ao longo do dia, quais são os momentos de relaxe?
Gosto de estar sossegada, de preferência quieta, em casa. (solta uma gargalhada) Gosto de ver séries. Neste momento ando a ver “Teorias da Conspiração”, na RTP, e “Peaky Blinders”, na Netflix.

Como é a Catarina quando ninguém está a vê-la?
Não tenho uma presença pessoal muito diferente da que as pessoas costumam ver. Mas há momentos especiais, como agora, na comemoração dos 70 anos da minha mãe. Fomos todos passar um fim de semana à Serra da Estrela. E como nevou, foi muito bom poder estar com a minha sobrinha mais nova, que nunca tinha visto neve, em brincadeiras, ela fazer uma data de asneiras e a tia a ajudar. Podermos rebolar-nos na neve à vontade sem nos sentirmos observadas é muito bom.

Uma filha de direita deixava-a triste?
Acredito na autonomia e educamos para autonomia. Mas a esquerda tem a ver com empatia e fraternidade. Que elas aceitassem como bom um sistema político e económico que parte da desigualdade como algo inultrapassável, deixava-me triste. Espero bem que não aconteça. Mas volto a dizer que educamos para a autonomia.

Conta-se que tem tradições de que não abdica.
As pessoas que não crescem e não vivem no mesmo lugar ou estabelecem tradições de forma a encontrarem-se de vez em quando ou correm o risco de estarem muitos anos sem se ver. Vai daí, eu e um grupo de amigos estabelecemos tradições nossas que permitem que nos encontremos todos os anos. A passagem de ano é passada há anos, muitos, com os mesmos amigos. E a essa tradição fomos acrescentados outras. Por exemplo, a pinha de Natal, que a partir de certa altura passou a fazer parte desse jantar.

É boa doceira?
Aprendi a fazer a pinha com a minha sogra. É receita dela. Mas há mais. No verão, temos o piquenique de verão, num pinhal à escolha, normalmente mais a norte, de forma a ficar a meio caminho para todos.

Há esse anel da avó, o único que usa.
Este anel começou por ser um alfinete de gravata de um tio-bisavô músico. Quando esse tio morreu, a minha avó materna, criada por ele, transformou o alfinete num anel. Quando a minha avó morreu, a minha mãe achou que devíamos escolher, eu e as minhas primas, uma joia de entre as que a minha avó usava. Escolhi o anel, que é, de facto, o único que uso.

Nasceu numa família ligada à música. Tio bisavô músico, avó professora de música, mãe com o curso do conservatório e irmão músico. Preferiu o teatro.
Ainda estudei piano, mas era uma péssima executante.

Que género de música prefere?
Coisas muito diferentes. Depende do “mood” do dia e do que estou a fazer. Mas não sou muito atenta ao que vai saindo.

Ouve música enquanto escreve as intervenções políticas?
Tenho muita dificuldade em usar a música como pano de fundo. Quando estou a ouvir música, estou a ouvir a música. Escrevo sempre sem música e em todo o lado. Até no carro.

Tem quem a ajude a escrever os discursos?
Aceito sugestões, peço sugestões, mas sou eu que os escrevo.

Em criança, viveu em São Tomé e Príncipe e Cabo Verde, onde os pais eram cooperantes. O que recorda?
Um país muito bonito, mas a fome em Cabo Verde era uma coisa avassaladora. Tinha sete anos e a noção precisa dessa injustiça. A sensação de injustiça começou em Cabo Verde.

Fale-me dessa criança?
A andar de um lugar para o outro, a crescer e a estudar em várias terras. Uma criança que cresceu depressa. Aos nove anos, a morte de um colega e vizinho foi um choque muito grande. Depois, aos 12 anos, a doença grave de uma grande amiga, o tempo de internamento, o hospital, obrigaram-me a crescer depressa.

Como vivia a adolescente de esquerda, que usava chapéus coloridos e sapatos bizarros, aluna excelente, em meios tão conservadores como Aveiro e, já na faculdade, Coimbra?
Sempre me senti bem sozinha, mas claro, procurava amigos. Encontrei o meu grupo nas pessoas que eram fora da caixa. Nessa altura, uma parte dos meus amigos a quem devo muito de aprendizagem de liberdade vinha das aldeias à volta de Aveiro. Começaram a aprender música nas bandas filarmónica e vinham para o Conservatório de Aveiro. De um ambiente rural, mais conservador, eram os que mais liam, mais música ouviam.

Nessa fase, em que partido votava?
Cheguei a votar no PCP para as autarquias. Votei no PSR. Votei Fernando Rosas. Não tive muitas vitórias eleitorais. (ri)

Vai para Coimbra estudar Direito, mas acaba por se dedicar ao teatro. O que é que a desgostou no Direito?
Fui para Direito influenciada pela procura de justiça. Tinha lido muito sobre o papel dos advogados que defenderam os presos políticos e esse era todo um imaginário, pouco condizente com a realidade. Acabei numa faculdade de Direito muito conservadora, em que nas RGA me perguntavam “de que jota tu és”, porque achavam estranho alguém sem cartão de uma juventude partidária estar interessado em intervir. Havia falta de empatia e uma sobranceria que achava perigosas. E que continuo a achar.

Pertence à geração rasca na luta contra as propinas. Cavaco Silva marca a sua vida estudantil.
É verdade, Cavaco Silva tem uma grande influência na minha consistência ideológica. Por oposição.

Ser atriz ajuda à coreografia política?
Dá algum treino de articulação e ajuda a uma dicção minimamente aceitável, mesmo quando há muito cansaço. Mas é só.

Como linguista é difícil apanhar-lhe uma gafe verbal. Para a próxima campanha parte com cautelas adicionais?
Não tenho dúvida de que é preciso ser muito cauteloso no que se diz e na forma como se diz porque tudo pode ser aproveitado para fazer caricatura das posições políticas. Contudo, percebendo essa necessidade e tentando tê-la, não podemos correr o risco de, ao sermos tão cuidadosos com o que vamos dizer, acabarmos a não dizer o que queremos.

Desistência, demissão – ao longo destes anos já lhe passou pela cabeça?
O que não me passa pela cabeça é ter toda a vida estas funções.

Será o fim de uma carreira na política ou a passagem a uma fase seguinte da vida política?
Nunca fiz planos. Fiz sempre aquilo que era preciso fazer em cada momento.

Pondera voltar um dia ao teatro?
Sobretudo para escrever e dirigir.

Que futuro tem o BE?
Estamos a precisar de uma aliança de esquerda, social, para estes tempos que são perigosos. É preciso começar a desmontar as formas como o sistema financeiro está a destruir o Estado Social e a economia. É preciso reagir ao medo e ao ódio com um discurso forte, não desistindo de nenhuma luta essencial e de emancipação. É necessário responder à questão ambiental com determinação e clareza. Tempos que vão exigir alianças fortes.

Não perca também o vídeo da entrevista:
“O programa do Bloco é o que é, mais difícil é saber o que quer o PS”