
Texto de Pedro Emanuel Santos | Fotos de Igor Martins/Global Imagens
Era pastor nos altos de Celorico de Basto, distrito de Braga, corpo de 12 anos e quarta classe da escola primária terminada, quando um amigo lhe falou pela primeira vez do sonho de ser barbeiro. “Ainda por cima, os clientes dão cinco tostões de gratificação”, segredaram-lhe em jeito de proposta irrecusável.
Apelo maior em época de pobreza imensa, António Teixeira Sousa foi falar, ufano, com o homem que por aquelas bandas percorria aldeias de acessos impossíveis para cortar cabelos e aparar à navalhada rostos masculinos. Ouviu um rotundo não, “que a arte era para ficar em família e que a haveria de passar para os sobrinhos, que filhos não tinha”.
António não se desfez e, órfão de pai, recebeu aval da mãe para ir para o Porto em busca de melhor sorte. Foi e não mais de lá saiu, 53 anos de tesoura em riste que lhe aguçaram o apetite por saber mais e mais da profissão a que jurou casamento eterno e prometeu o dote de a deixar impressa em letra de livro para que todos lhe conheçam a história. “Um relâmpago de paixão que tive e que jamais esmoreceu”, resume.
Estávamos em 1966, Salazar cairá da cadeira daí a dois anos, Portugal é país de paz podre por dentro e de guerra nas colónias, a miséria não permite mais do que alimentar a sobrevivência. Sozinho, António lá ruma no Porto, à Rua Anselmo Braancamp, ligação entre Santos Pousada e a Firmeza. O salão foi a Casa José Camelo, onde não se tratava apenas de penteados.
“Trabalhei lá três anos, até fechar. Era ardina de manhã, a entregar jornais, e de tarde até à noite ficava a aprender a arte da barbearia”, recorda António Teixeira Sousa, 65 anos em abril próximo, autor de “História do Barbeiro”, da editora 5Livros.pt, que será apresentado publicamente na próxima sexta-feira, dia 29, em cerimónia na Escola Profissional Raul Dória, na Praça da República. No Porto, claro, a cidade que adotou como sua.
Neste meio século de atividade, vida inteira de tesoura numa mão e navalha de barbear na outra, passaram pela cadeira de António Teixeira de Sousa cabeças famosas por ele aparadas por entre conversas sobre tudo e mais alguma coisa, que assento de barbeiro é lugar sagrado de confidências, quase confessionário com direito a segredo.
Como Teixeira dos Santos, ministro das Finanças nos governos de José Sócrates, ou Frederico Martins Mendes, antigo diretor do Jornal de Notícias, “além de muitas outras figuras ligadas ao ensino, às ciências ou à cultura”.
Muitos deles seguem-no desde o começo dos começos. Depois da Casa José Camelo, António espalhou arte de barbearia em salões na Rua de São Diniz, na Lapa e em Cedofeita. Foi dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Barbeiros e Cabeleireiros do Norte logo a seguir ao 25 de Abril, passou pelo Sindicato dos Trabalhadores do Norte, deu aulas de formação durante uma dúzia de anos. E não pára, continua ativo no Salão In Lago, na rua São João de Brito.
Curiosidade, estudo e obra
Ativa continua, também, a curiosidade de António Teixeira de Sousa por tudo o que envolve a história da sua profissão. Hoje apenas cingida à nobre tarefa de embelezar penteados e barbas, nos primórdios (e até passado que não vai mais distante do que um século) destinada a outros desafios que, à luz dos tempos que vivemos, parecem inimagináveis de tão aparentemente inverosímeis.
“Fui ganhando curiosidade e recolhendo dados para escrever o livro por volta de 1998.” Consultou bibliografia, viu e reviu documentos, consultou relatos de colegas, analisou artigos. “Até que entendi ter tudo preparado para poder deixar plasmado o que entendo ser interessante historicamente enquanto diz respeito a este trabalho. Que já vem dos tempos do paleolítico, é bom não esquecer”, lembra.
De entre as funções passadas dos barbeiros contam-se as de sangrador, “até nos hospitais a podiam executar”, ou seja, era-lhes permitido lancetar a golpe de bisturi abcessos, autênticas pequenas cirurgias realizadas com meios pouco mais do que rudimentares. Podiam, ainda, extrair dentes e “entalar membros fraturados”, quais cirurgiões que percorriam grandes cidades e pequenas aldeias em busca de pacientes ávidos de cura para problemas de saúde que desesperavam na dor.
Não faltam no livro exemplos de famosos barbeiros/sangradores/dentistas que deixaram legado, como o português António Ferreira (1616-1679), responsável por um Tratado de Cirurgia que durante séculos fez escola. Ou Francisco de Assis Sousa Vaz (1797-1870), que evoluiu para médico e acabou por se tornar um dos fundadores da Escola Médico-Cirúrgica do Porto.
Homenagens para a posteridade
“Sou um historiador da profissão”, orgulha-se o autor, que promete não ficar por aqui e guarda para anos em breve obras “mais autobiográficas e de interesse para o público sobre a profissão de barbeiro.”
Ele que em “História do Barbeiro” fez questão de homenagear alguns dos melhores protagonistas recentes da arte que deixaram saudades por esse país fora, como Fernando Fernandes Silva (de Braga), Carlos Bessa (da Sé do Porto, que também se popularizou como poeta), António Mendes (também do Porto), José Salvador (de Guimarães, ativo militante antifascista, várias vezes preso político durante o regime de Salazar), Jorge Lima (“o cabeleireiro que revolucionou o penteado no século XX em Portugal”) e… António Variações, o barbeiro minhoto que migrou para Lisboa e lá acabou famoso por outras artes, as de cantor com raízes de Timor a Nova Iorque, como ele próprio se autodefiniu.
Não faltam, além disso, referências a casas que fizeram tradição no Porto, como o Salão Azul (em Santa Catarina), o Fémina (também em Santa Catarina), o Arte Nova (em Sampaio Bruno) ou o Londres (em Cedofeita), numa autêntica viagem que não deixa que a memória se perca e, assim, fique eternizada à distância de 154 páginas. Um verdadeiro relato que parte da história global do ofício de barbeiro ao contexto particular da cidade do Porto, onde a profissão sempre adquiriu contornos de especial importância, por tão procurada, e de cenário dos mais mirabolantes episódios.
“Eram espaços de pretexto para conversas, convívio e, até, conspirações políticas”, confirma, por sua vez, o jornalista Germano Silva, um dos maiores especialistas naquilo que à história do Porto diz respeito. “No centro da cidade abundavam as barbearias, muitas das quais possuíam as célebres manicuras, que motivavam filas imensas. E havia também os engraxadores, que entravam nos salões e faziam o seu trabalho. Não era difícil encontrar clientes que, simultaneamente cortavam o cabelo, cuidavam das unhas e embelezavam os sapatos”, realça.
O evoluir dos anos trouxe outros destinos para as barbearias. Muitas delas desapareceram fisicamente, as que sobreviveram raramente conseguiram aguentar as singularidades do passado que lhes deram tradição.
“Com o tempo foi-se perdendo muito do que foi o significado da barbearia enquanto área comum de encontro, elas são agora bem mais impessoais. Aliás, hoje os próprios barbeiros até preferem ser chamados de cabeleireiros de homens”, aponta Germano Silva.
“Caso de vida ou morte”
Um dos períodos mais delicados da arte surgiu no século XX, quando a ressaca da proibição de os barbeiros exercerem não mais do que o ato de cortar cabelo e cuidar da barba – impedidos que ficaram pela lei de executarem sangramentos e outros atributos profissionais que até então lhes eram permitidos – os atirou para período de indefinição que os tornou alvo das mais diversas preocupações.
Desses tempos dá conta a relíquia “O Barbeiro Através dos Tempos e a Sua Decadência Económica”, de Américo da Graça, ele próprio barbeiro, edição limitada publicada pela Tipografia Leitão, Porto, nos idos de 1926 e na qual o autor destila o pessimismo que atravessava as perspetivas dos profissionais do setor.
“É necessário que o artífice se dedique com amor à profissão, criando gosto estético no trabalho que executa, para se fazer um artista nesta arte decorativa”, profetizava Américo da Graça, queixando-se do facto de ele e os colegas estarem a “perder recursos que lhes davam independência económica e consideração social”.
A culpa atribuiu-a a uma invenção então recente que a Europa importara dos Estados Unidos e que espalhava o caos e causava perplexidades várias entre quem tinha nas barbearias o ganha-pão. “O barbeiro ficou com as barbas e cortes de cabelo, mas a Gillette, com a intensa propaganda que os negociantes fazem desse aparelho, põe os barbeiros em estado de crise aguda”, lamentava.
“As barbearias do Porto, no coração da cidade, têm diminuído sensivelmente; e, no entanto, a população tem aumentado e nem por isso a clientela sobra. Porquê? Por causa da Gillette. É um caso de vida ou de morte”, dramatizava ainda Américo da Graça.
Pessimismo que a posteridade não veio a confirmar e que António Teixeira de Sousa não antecipa. “A profissão nunca vai morrer”, garante o homem que quer deixar como legado a história de uma arte que abraçou apertada e que nunca lhe largou o corpo, como se fosse amor preso em si para todo o sempre.