Texto de Salomé Filipe
Sempre que mudava o ano, logo em janeiro, Sofia Macedo olhava para o calendário e percebia que feriados espreitavam, onde poderia tirar férias e, consequentemente, marcar “uma viagem grande” para o maior período de descanso. Depois, mal chegava ao destino, tinha um pensamento recorrente: “Que bom seria poder fazer isto com mais frequência ou até para sempre”.
Sofia, 33 anos e natural de Coimbra, é licenciada em Comunicação Social, fez mestrado em Relações Interculturais e trabalha em marketing digital, por conta própria, estando sediada, a nível fiscal, em Berlim, na Alemanha. Mas, desde fevereiro do ano passado, já viveu em Espanha, em Itália, em Portugal, no Japão, no Vietname, na Tailândia, no Laos, no Camboja, na Malásia, em Singapura, na Colômbia e na Bolívia.
Confuso e estranho? Nem por isso. Sofia é nómada digital. “A ideia surgiu com o meu namorado, que é “developer”, quando estávamos ambos a trabalhar em Berlim. Se havia outras pessoas que viajavam e trabalhavam, isso também poderia ser possível para nós”, recorda Sofia Macedo. E assim foi. O casal estabeleceu-se como “freelancer” e, seis meses depois, estava a deixar Berlim, de mochila às costas, rumo ao Mundo que os esperava.
O nomadismo digital é um estilo de vida relativamente novo, consequência das facilidades inerentes à evolução das novas tecnologias. “O início do conceito está relacionado com duas dimensões. Por um lado, a portabilidade das máquinas existentes hoje em dia. Por outro, a ubiquidade do acesso à Internet. No caminho entre o centro comercial e a minha casa, por exemplo, tenho wi-fi em todo o lado”, refere Fernando de Pina Mendes, professor do IADE – Faculdade de Design, Tecnologia e Comunicação e fundador de dois espaços de “cowork” em Lisboa, o Coworklisboa, na LX Factory, e o Now, no Beato.
“Mais do que andar sempre a mudar de sítio, para mim, o nomadismo digital é ter a liberdade de se viajar sempre que se quer.” A definição é dada por Krystel Leal, de 27 anos, “marketeer” e atualmente a residir em Palo Alto, na Califórnia. Natural da região de Lisboa, Krystel rumou a Paris, França, para ingressar no ensino superior, no curso de Comunicação. Queria ser jornalista. Mas aos 19 anos já estava “presa” à rotina “trabalho-escola, escola-trabalho”. “As pessoas diziam-me que eu era uma sortuda por estar em Paris, mas eu não me sentia como tal, porque não aproveitava nada da cidade”, relembra.
Por isso, depois de dois estágios em jornais e um numa agência de comunicação, começou a pesquisar o que poderia fazer para trabalhar a partir de casa, com horários menos rígidos. “Conheci o marketing digital e um site sobre nomadismo digital, do Brasil, cujos fundadores foram os meus mentores. Passei todo o ano de 2015 entre o trabalho e a escola, a aprofundar o tema e a perceber como poderia trabalhar remotamente”, conta. Até que, em fevereiro de 2016, acabou o curso, entregou as chaves do apartamento e percorreu várias cidades da Europa.
Obstinada, Krystel traçou um plano de trabalho. Bateu a inúmeras portas para encontrar clientes. Criou o blogue “Nomadismo Digital Portugal”, que ainda gere. Singrou na área e há um ano que não tem necessidade de recrutar clientes novos. Foi para os Estados Unidos porque o namorado arranjou lá trabalho, como engenheiro informático, em Sillicon Valley. E fez de Palo Alto a sua base, apesar de não estar lá sempre. “Tenho viajado muito na Califórnia, sempre sozinha e sempre com o trabalho às costas. Isto não foi uma coisa que aconteceu da noite para o dia. Eu sou contra as técnicas mágicas de ganhar dinheiro. É fácil ganhar dinheiro rápido online, mas em coisas que não são sustentáveis a longo prazo”, revela.
A confiança dos clientes
Conquistar a confiança dos clientes é um dos desafios com que os nómadas digitais se deparam. Aconteceu tanto a Sofia como a Krystel. Mas já há muitas empresas, quer em Portugal, quer no resto do Mundo, que estão familizaridas com o conceito e que o aceitam. Sérgio Fernandes, 39 anos, licenciado em Informática, está a desenvolver um projeto focado, precisamente, “no trabalho remoto, nos benefícios para o trabalhador e para as empresas, na felicidade no trabalho e no desenvolvimento profissional”. Sérgio considera-se um “seminómada” digital.
Foi ele que criou, em 2015, a primeira comunidade lusa do género, “Digital Nomads Portugal”, na qual trabalhou até ao final de 2017 e que, atualmente, é gerida por um empreendedor americano. Ele que, em 2012, decidiu “mudar de vida e trocar o fato e a gravata por calções e chinelos”, saindo de Lisboa e regressando ao Algarve, para trabalhar como freelancer. “Existem muitas profissões que podem ser exercidas através de trabalho remoto. Quero que as empresas entendam que é benéfico, até porque podem descentralizar, reduzir custos e ter trabalhadores mais felizes. Uma função administrativa e de secretariado, por exemplo, pode ser feita remotamente”, explica Sérgio.
Krystel Leal também assegura que “todas as áreas profissionais dão para trabalhar remotamente”, fazendo a ressalva de que “nem todas as profissões dão”. “Há médicos, por exemplo, que conseguem fazer tarefas remotas, dando consultas via Skype, por exemplo, ou fazendo relatórios médicos.” Mas a realidade é que a maior parte dos nómadas digitais trabalha em áreas relacionadas com o design, a informática, as novas tecnologias de comunicação, a comunicação e o marketing.
Jóni Oliveira, de 26 anos, é um desses exemplos. Natural de São Mamede, na Batalha, vive na Tailândia e é empreendedor digital. “Comecei a minha carreira profissional a solo quando tinha 17 ou 18 anos, com uma pequena rede de blogues e um negócio de alojamento e criação de sites. As coisas expandiram-se e agora tenho uma equipa de mais de dez pessoas a trabalhar comigo, em três continentes”, revela.
Jóni não sabe o que é trabalhar de outra forma. “Nunca tive uma rotina comum de emprego ou trabalho. Já em Portugal trabalhava a partir de casa, a gerir os meus sites e blogues. A decisão de me mudar para o Brasil aos 19 anos, e onde morei durante dois, abriu-me as portas para perceber que poderia fazer o meu trabalho em qualquer lugar do Mundo com uma simples ligação à Internet”, explica o jovem empreendedor. Do Brasil rumou à Tailândia. E gostou tanto do país que decidiu ficar por lá. Nos últimos três anos, já viveu em mais de cinco cidades. Atualmente, está em Banguecoque, mas continua a deslocar-se ao Brasil, onde tem uma equipa fixa a trabalhar para si, na sede da empresa.
Férias? “Não”
“Estás sempre de férias” é das frases que os nómadas digitais mais ouvem. Jóni desmistifica por completo essa ideia. “Como trabalho muito com o mercado sul-americano, com uma diferença horária de praticamente dez horas, por vezes tenho que ficar a trabalhar durante a noite, madrugada e manhã e dormir à tarde, acabando por não aproveitar muito dos lugares por onde passo.” Sofia corrobora: “Como freelancer, é impossível desligar. Mais ainda quando conseguir e manter clientes se deve apenas e exclusivamente ao nosso trabalho. Se não trabalhamos, não recebemos. Se não encontramos novos clientes, não entra mais dinheiro. Se não trabalhamos, os clientes que temos vão embora”, resume Sofia Macedo, que vai contando a experiência como nómada digital, regularmente, num espaço do site “Meios & Publicidade”.
Bali, na Indonésia, é vista como a Meca dos nómadas digitais. Mas outros países, como Tailândia ou Brasil, são também muito procurados. E, nos últimos anos, Portugal entrou nesse roteiro. Nomeadamente Lisboa. “No Coworklisboa, temos espaço para 150 pessoas. Atualmente, mais de metade são estrangeiros”, revela Fernando de Pina Mendes, que se tem dedicado a estudar essa nova realidade do mercado de trabalho. Segundo ele, “a crise global” de há alguns anos contribuiu para que muitos jovens, “da geração sub-35”, procurassem outras formas de trabalhar. E nasceu uma nova realidade.
“Há uma globalização dos gostos e das necessidades. Funciona quase como um movimento. São pessoas que antecipam e planeiam os passos a dar. Antes de virem, fazem uma publicação nas redes sociais, num dos grupos portugueses de nomadismo digital, a dizer que querem vir para Portugal, o que devem fazer. A partir daí, há sempre alguém a ajudá-los, a sugerir locais onde podem instalar-se para trabalhar e o que devem fazer”, explica Fernando. “O nível de barreira entre as pessoas, hoje em dia, é mínimo. Mas a verdade é que falamos de uma nova geração muito tolerante entre si, que se rege por valores de entreajuda, e isso pode ser benéfico para o futuro da sociedade”, frisa.
De acordo com os testemunhos dados pelos nómadas digitais, no final há uma palavra-chave para todo o processo ser viável: organização. Perder-se na falta de uma rotina rígida pode ser fácil. E tanto pode resultar em excesso de trabalho como em défice. Sofia Macedo, por exemplo, estipula o seu quotidiano consoante o país onde se encontra. “Nas [ilhas] Phi Phi, na Tailândia, ia à praia de manhã e trabalhava à tarde. Na Colômbia, funciona melhor trabalhar de manhã, aproveitar a tarde e trabalhar mais uma horas à noite”, conta.
Na realidade, o quotidiano de Sofia, Krystel e Jóni pode parecer muito diferente de um trabalhador dito “comum”, em Portugal. Mas rege-se pelos mesmos objetivos: trabalhar no que se gosta, sustentar-se financeiramente e ser feliz. Une-os, ainda, uma paixão: viajar e conhecer o Mundo. “A verdade é que sou francamente feliz a viajar”, confessa Sofia, sem hesitar.