Rui Cardoso Martins

No Dia dos Namorados

Ilustração: João Vasco Correia

Quem já o conhecia, diz que agora ele é outra pessoa. Quem não o conhecia, mas viu o que lhe fizeram, adivinhou que Luís poderia nunca mais sair daquela noite dos namorados. Que aquele homem frágil ficaria prisioneiro dessa memória. Ainda hoje, mais de um ano depois, Luís passa os dias a pensar na violência que lhe caiu em cima.

Entrei na sala do tribunal no momento em que ele dizia:

– Ainda hoje, doutora, eu sinto receio. Estou a ser seguido psicologicamente.

A voz de Luís era de uma delicadeza formal, hesitante, doce, como que tacteando os circuitos eléctricos entre o cérebro e a boca, entre o coração e a boca, tocando neles com cuidado para não causar curtos-circuitos. Pelo meio, quis agradecer a todos os que o apoiaram “naquele dia tão violento”, as pessoas que viram a agressão, o polícia, a família. Ainda vive estupefacto, não percebe tanto ódio.

– Pelas várias vezes que me agrediu, pelo tom de ameaça… Penso nisto todos os dias. Custa-me passar ali. Tive de tirar o dístico da Emel… Vou estacionar o carro noutro lugar. Na realidade eu sinto uma pressão, sinto um certo receio. Será que ele queria mostrar alguma coisa à acompanhante?…

Luís procura uma explicação. Foi a 14 de Fevereiro, toda a gente frisou isto em tribunal e a todos a procuradora perguntou:

– Como é que tem tanta certeza sobre a data?

– Era Dia dos Namorados.

Em Campo de Ourique havia trânsito, muitos casais tinham saído para jantar. À frente de Luís, estava um carro parado em segunda fila. Luís disse ao condutor que podia andar para a frente, pois haveria outros lugares. O outro saiu, a porta do carro ficou aberta. Havia uma mulher no banco ao lado do condutor.

A primeira testemunha, comentador desportivo, seguia no passeio:

– Ouvi dizer “não me conheces de lado nenhum para me estares a falar assim”. Isto ouvi. Atravessei a rua, ia entrar no café quando ouço um barulho, um estoiro. Volto atrás e vejo o Luís a cambalear, e ainda vejo o arguido a dar não sei se pontapé se murro, vejo uma agressão.

O agressor meteu-se no carro e fugiu. Mas não a tempo de evitar que outro homem tirasse uma foto à matrícula.

– Se me der licença, tenho-a aqui no telemóvel.

E a segunda testemunha leu as letras e os números no tribunal.

– Ouvi um barulho, uma conversa alta, um indivíduo caído no chão e outro junto dele. Quando me aproximei, vi que não era isso. Vi que era uma pessoa a tentar levantar-se com dificuldade, a tremer, e vi outra pessoa a dizer “mas queres mais?” e a desferir-lhe um murro aqui nas têmporas. E eu corri e disse “pare, pare!”

O agressor era “pessoa bem constituída, com cerca de 1,80 metros, entre 80 e 90 quilos, de barba aparada”.

– E o senhor caído no chão?

– Estava desorientado, não percebia o que se estava a passar, desatou a chorar à nossa frente. Acredito que a primeira agressão foi muito violenta. Na esquadra, o agente pôs-me diante de uma fotografia em que eu identifiquei o agressor.

Foi esta a táctica da defesa: desaparecer de vista, não responder às várias intimações do tribunal, aos mandados de captura e alegar que o agressor fora outro. Mas não restaram dúvidas. A procuradora pediu “pena de prisão, não de multa”, para um “crime muito grave”, um homem que “deu socos sem qualquer motivo”, já com antecedentes de falsificação de documentos, consumo de estupefaciente, condução perigosa. A advogada de Luís disse que, se não tivessem aparecido pessoas, o homem teria continuado a bater-lhe na cabeça.

– Uma pessoa tem de recear pela própria vida. É um indivíduo que não sabe, não vai parar e, provavelmente, vai piorar.

Hoje está cá a vítima para dizer o que se passou. Para a próxima, se calhar não vai estar.

Luís pôde contar o que se passou. Mas, sobre as consequências, falou melhor um seu amigo.

– É uma pessoa mais cautelosa, mais alerta, mais instável. Nota-se que ficou mais nervoso. Era uma pessoa alegre.

Olhei para Luís, sentado nas últimas filas com um sorriso estranho, como se falassem de outro.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)