Crianças nascidas para acelerar

Notícias Magazine

O motor começa a roncar e o fumo do tubo de escape preenche o ar. Quando as rodas disparam na pista, a ansiedade dá os primeiros sinais e o nervosismo espalha-se pelo corpo. Não é uma prova qualquer. A conduzir vão crianças que sonham ser pilotos de alta competição.

Semanas antes da luta pelo pódio no Campeonato de Espanha, o kart de Maria Germano Neto parecia querer desistir. Por mais voltas que desse à pista, o carro não acelerava e a curva que se seguiu foi o apito final. A desilusão invadia o olhar da piloto à medida que se via obrigada a encostar à box.

Quando, por fim, travou, largou o volante contrariada. Levou as mãos à cabeça e, zangada, disse: “Não dá mais. Não consigo acelerar”. Com oito anos de idade, a vontade de ganhar está-lhe no sangue e as avarias nunca são bem recebidas. Enquanto os membros da equipa técnica explicavam que a vela do carro estava a falhar, desistir parecia ser o caminho mais fácil.

Mas foi a paixão pela velocidade desta “maria-rapaz”, como a caracteriza o pai, que a impediu de abandonar o kart. Permaneceu sentada, com o pé no pedal, à espera que a equipa remediasse a avaria e a devolvesse à pista.

Desde muito cedo que Maria Germano Neto e todas as crianças que sonham em um dia ser pilotos de alta competição lidam com a frustração. A velocidade corre-lhes nas veias e, por isso, parar não é opção. De norte a sul do país, até aos 12 anos, contam-se 122 pilotos inscritos na Federação Portuguesa de Automobilismo e Karting e 112 na Federação Portuguesa de Motociclismo. Treinam e competem debaixo do olhar atento dos pais, ao mesmo tempo que atingem 110 km/h.

Maria Germano Neto, 8 anos. Sempre preferiu os carros às bonecas. Agora, até já compete em Espanha (Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Há uma semana, um piloto espanhol de 14 anos morreu durante uma prova em Jerez de la Frontera (Espanha). Marcos Garrido era um dos participantes do Campeonato da Andaluzia de motociclismo quando teve o acidente fatal. Caiu e acabou atropelado pela mota de um adversário da mesma idade.

Ana Vasconcelos, médica pedopsiquiatra, deixa vários alertas aos pais dos meninos. Apesar do gosto que os jovens pilotos possam ter pelo desporto e pela velocidade, é preciso ter em conta as características das crianças: a capacidade de lidar com a frustração, o facto de poderem ser impulsivos e a dificuldade em ponderar certas situações.

“É preciso que eles saibam que o acelerar tem regras e que não é só a velocidade pela velocidade. Ser piloto exige uma grande capacidade de respeitar os adversários e eles têm de saber que, quanto mais fizerem bem, mais poderão ser premiados.”

A sede de vitória é partilhada por todos, mas há quem não fique desiludido por cruzar a meta em último lugar. Um ano mais velho do que Maria Germano Neto, Lourenço Vicente participa nas provas de motociclismo pela adrenalina que a velocidade lhe traz. A única estratégia que usa para tentar vencer os adversários é a forma como faz as curvas – técnica que o pai lhe ensinou.

Também é a emoção da corrida que chama Beatriz Ramos. E, apesar da vontade de fazer a diferença no mundo das motas, a jovem piloto de 12 anos tem já um plano bem traçado. Pôr os estudos de lado está fora de questão. Por isso, apesar de se manter focada numa carreira como piloto, tem o sonho de um dia ser veterinária.

Adrián Malheiro, 12 anos. Chamam-lhe “El matador” e tem como ídolos Ayrton Senna e Fernando Alonso (Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Adrián Malheiro e Guilherme Gomes, ambos igualmente com 12 anos, partilham a ambição de vencer de Maria. Da mesma forma que um toureiro consegue dominar um touro, também Adrián consegue vencer qualquer adversário. Por isso, chamam-lhe de “El matador”. O jovem piloto de karting vê-se como sucessor de Ayrton Senna ou Fernando Alonso. E Guilherme, com Miguel Oliveira como mentor, imagina-se a seguir-lhe as pisadas e a ser a próxima estrela portuguesa no MotoGP.

Há pouco mais de um ano no mundo do motociclismo, Guilherme percorre o país para participar na Oliveira Cup, a troféu-escola criada por Miguel Oliveira, onde disputa a categoria Mini GP. Mas o jovem ainda não descartou por completo o sonho do futebol, ao contrário de Adrián, que nunca imaginou fazer carreira com uma bola nos pés. Aos sete anos, o espanhol venceu o primeiro campeonato de karting que disputou em Portugal e, apesar de alguns acidentes lhe terem ficado gravados na memória, conquistou, mais uma vez, o primeiro lugar do campeonato nacional no ano passado.

Ver as provas de Miguel Oliveira na televisão foi o que bastou para Guilherme se apaixonar pelo motociclismo. A primeira experiência em excesso de velocidade foi aos nove anos, quando correu no kartódromo de Santo André. “Emocionei-me.” Dois anos depois, passou a fazer parte da Oliveira Cup e nem o nervosismo da primeira corrida o impediu de terminar em quinto lugar. No ano passado, subiu de categoria, para Mini GP, onde disputa as provas com adversários mais experientes. Apesar de difícil, “dá mais pica”. “Continuar a correr, seguir para o Mundial e ser como Miguel Oliveira” é o sonho de Guilherme Gomes.

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No entanto, nem sempre a primeira tentativa é sinónimo de sucesso. O início da experiência de Beatriz levou-a a ponderar a entrada num mundo que lhe parecia muito perigoso. “Não quero isto.” O barulho do motor era ensurdecedor. Mas a adrenalina convenceu-a a arriscar. A jovem decidiu não desistir. Agora, a alegria de correr sobrepõe-se a qualquer obstáculo.

Foram as motas do pai que a chamaram para as corridas. E é por lá que deseja continuar. Conta quedas atrás de quedas, só que o medo nunca a atirou ao chão. O conselho que Beatriz leva para cada corrida é “não pensar no perigo”. Lourenço conhece bem os riscos da competição. Os pais, comissários no Autódromo do Estoril, já presenciaram muitos acidentes. Por isso, encaram a participação do filho nas provas da Oliveira Cup como “uma brincadeira que só faz sentido enquanto ele se divertir”.

Beatriz Ramos, 12 anos. Foram as motas do pai que a chamaram para as corridas (Foto: Carlos Costa/Global Imagens)

Nas quatro rodas, Maria Germano Neto e Adrián Malheiro treinam juntos e levam a competição muito a sério. Se não for para ganhar, não vale a pena. Maria compete agora pela equipa de Fernando Alonso no Campeonato de Espanha. Conheceu a sensação de correr num kart aos cinco anos, em Fafe, acompanhada pelo pai. Desde aí, nunca mais largou o desporto.

A vimaranense corre ao lado de rapazes mais velhos sem nunca perder a confiança. Até porque, quando começa “a varrer toda a gente, o nervosismo desaparece”. Conquistou o primeiro lugar na categoria iniciação, uma vez no Campeonato de Portugal e outra na Taça. Em 2018, como cadete, também foi dela a Taça Bridgestone, em Viana do Castelo.

Adrián soma igualmente muitas vitórias. Foi a carreira do pai como piloto que semeou o prazer de correr e o jovem já se sagrou o piloto mais novo a vencer o Campeonato de Portugal de karting. Apesar de alguns acidentes lhe terem ficado na memória, nada o impede de seguir com a carreira, como naquele dia em que os travões falharam durante uma prova e bateu contra outro piloto: “Saí da pista a voar e fiquei na relva, mas sem me ter magoado”.

Protegê-los a mais de 100 KM/H

É impossível dissociar a velocidade do perigo. Daí, surgem as incertezas. O que acontece se tiverem um acidente? Se caírem? E se baterem num adversário e também magoarem o colega? As dúvidas são muitas, mas os pais preferem não pensar no pior. Têm confiança nos pequenos pilotos e torcem para que eles vençam.

Carla Ramos admite partilhar com a filha o gosto pelas motas. No entanto, só anda de mota quando é o marido a guiar. Já quando se fala na Beatriz, a fé é plena. “Ela é muito confiante e vence facilmente os medos”, afirma, lembrando que o desporto motorizado é tão perigoso como outro qualquer. “Só por ser motorizado parece mais perigoso? Não. Acho que fazer ginástica acrobática também é perigoso.”

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Lourenço partiu um braço durante uma prova e as corridas que se seguiram à recuperação foram acompanhadas por algum medo, rapidamente ultrapassado. A mãe, Nídia Moreira, garante que o pequeno voltou aos circuitos por vontade própria, mas o receio de um novo acidente não desaparece. Até porque a recuperação durou mais tempo do que o esperado – teve de ser operado.

“Se ele quisesse voltar, voltava. Se não, estava tudo bem na mesma. Mas ainda hoje eram seis da manhã e ele não queria dormir mais. Já estava pronto para a prova.” As corridas continuam a proporcionar muita alegria ao filho, que nunca se esquece dos deveres. Aos domingos, primeiro a catequese e só depois as motas.

Tecnicamente, as questões de segurança são salvaguardadas. As federações têm em consideração as idades dos pilotos e o perigo que acompanha as competições. No karting, os kartódromos são avaliados periodicamente, de forma a reunir todas as condições de segurança para receber as provas. Também os capacetes, o suporte de cabeça e pescoço (hans) e os fatos de competição são sujeitos a homologação antes de serem usados.

Lourenço Vicente, 9 anos. Aos domingos, começa por ir à catequese e só depois segue para o motociclismo (Foto: Carlos Costa/Global Imagens)

Ni Amorim, presidente da Federação Portuguesa de Automobilismo e Karting (FPAK), vê as crianças a correr a mais de 100 km/h com “a naturalidade própria e inerente ao desporto”. “A FPAK preocupa-se em regulamentar todas as competições com o mesmo nível de exigência. Sabemos que é um desporto perigoso e como tal temos de salvaguardar todos os aspetos.”

Manuel Marinheiro, presidente da Federação de Motociclismo de Portugal (FMP), partilha das preocupações de Ni Amorim. Lembra que as competições “são repartidas por classes de acordo com a idade dos pilotos e a cilindrada das motos” e que esses escalões “são definidos segundo critérios da Comissão Médica” federativa, que adota as orientações, princípios e regras da Federação Internacional de Motociclismo.

“A segurança é um dos fatores primordiais na organização de qualquer competição desportiva”, sublinha, lembrando que “a FMP exige que as organizações e clubes com os quais trabalha cumpram um exigente caderno de encargos o qual foca múltiplos aspetos relacionados com a segurança dos pilotos e dos circuitos (segurança ativa e passiva)”.

Acelerar e cruzar a meta em primeiro lugar é o objetivo de todos. Felizmente, até hoje, nada de grave lhes aconteceu. Maria já teve alguns acidentes: “Ainda não parti nada”. Os rasgões do fato, resultado do desgaste e de azares durante as provas, vão-se acumulando e constroem histórias para contar. Uma ficou-lhe na memória. Foi no Bombarral, quando saía para as boxes. “Bateram-me e tive de ir para o hospital. Mas só me aleijei num pé.”

Guilherme Gomes, 12 anos. Quer seguir as pisadas de Miguel Oliveira e ser a próxima estrela portuguesa no MotoGP (Foto: Carlos Costa/Global Imagens)

Também Guilherme já apanhou um susto. “Reduzi e a traseira saltou. Fui cuspido da mota. Mas, se tivermos cuidado, nada acontece.” O jovem piloto esperou muito até que os pais aceitassem a escolha. A insistência do filho foi decisiva. No entanto, a cada corrida, a mãe, Ana Gomes, vê-se obrigada a lidar com a aflição de pensar no que pode acontecer. Um sentimento que não diminuiu com o tempo.

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Os jovens pilotos, pela idade e pela vontade de vencer, encaram as corridas sem pensar no perigo. Um dia de prova é sempre especial. É para acelerar. E para ganhar. No caso de Maria, esse sentimento não nasceu agora. As primeiras aventuras foram nos passeios de Aver-o-Mar, na Póvoa de Varzim, onde a família passava o verão. Deixava as bonecas em casa e seguia sentada ao volante. Nessa altura, o sonho ainda era de plástico. Agora, já começa a ser real.