Na Arábia Saudita

Todos temos uma primeira recordação, uma careta brincalhona, os nossos pés na água, um sabor de gelado, um cão que nos ladra, mas a primeira recordação da filha de Sónia é um pequeno abismo familiar: estava ao colo da mãe e caíram as duas. Quase no fim do seu depoimento, a mulher disse:
– O primeiro estalo que levei ainda não tinha a minha filha mais velha. O segundo estalo a sério atirou as duas ao chão. Ela tem uma memória, que é improvável, mas lembra-se de estar ao meu colo e de cairmos as duas.
Pelas contas de Sónia, a menina teria um ano e meio, muito cedo para uma mancha destas no tecido da memória. Mas que sabemos nós sobre o sítio em que começamos como pessoas? E em que local iremos dar a última queda? O companheiro de Sónia durante 13 anos, o pai das filhas, gostava de lhe dizer:
– Em breve, a tua última morada vai ser na Quinta das Tabuletas.
E quando estava na Arábia Saudita a trabalhar, nos longos períodos fora, havia a cerimónia diária de terem que falar com ele pela internet. Com imagem. Duas vezes por dia. Falava a mãe, falava uma filha, falava a outra, uma rotina que se transformou em tortura. As saudades dele traduziam-se em violência, frases bizarras. Dizia Francisco (está no auto e Sónia repete em voz alta):
– Eu ando aqui há anos a levar no cu para vos encher a cona de dinheiro a vocês!
Era o que Francisco tinha a dizer às suas meninas. Sónia soprava as palavras, pedia desculpa, mas foi a juíza quem a obrigou a repetir. É preciso dizer, ou não se faz prova.
– Dar o cu para vos encher a cona, esta era sempre.
Quando Sónia entrou na sala, uma mulher parada numa espécie de juventude aliviada, isto é, imagino que quando era nova já envelhecera, e que está agora mais nova em quase tudo, perguntaram-lhe se queria que o homem saísse, para estar mais à vontade.
– É indiferente. Pode estar presente.
E contou das bofetadas, da expulsão da casa, da destruição de toda a comida que tinham no frigorífico, da dificuldade em se decidir:
– Ele dizia: “O que é que vais fazer? Não vais ter onde cair morta”… o medo… também gostava dele, não é, era o pai das minhas filhas… Eu consegui, consegui um bocado de paz. Não tenho memória de ter voltado ao meu quarto, desde os seis meses da minha filha. A humidade foi um bom aliado, no quarto de casal havia humidade. Mas eu não queria dormir com ele, não queria ter relações sexuais com ele.
– Ele partia coisas em casa?
– Eram as coisas de que eu mais gostava, nomeadamente as coisas da minha avó. Era mesmo vontade de partir.
E Sónia virou a cabeça para trás e olhou o homem. Mas não sabia o que ele tinha dito, pouco antes. A primeira frase de Francisco foi:
– Não é verdade o que diz aí.
E continuara explicando que a mulher lhe tentara esvaziar a casa de móveis contra o combinado, que os gastos eram sempre dele, que nunca lhes bateu, que jamais falou na Quinta das Tabuletas, e que a relação estava deteriorada, mas fora normal e “com carinho”.
– Não bati na minha filha.
– Consegue explicar as lesões que elas tinham naquele dia?
– Não.
O tempo não chegava, nesta manhã de tribunal, para o depoimento da filha. Sónia explicara que o pai lhe tinha provocado um problema clínico:
– As minhas filhas sofrem de uma coisa chamada desapego violento. Não querem ter nada dessa casa. Não ter nem a porcaria de um ó-ó para dormir.
A filha estava agora a 10 metros do pai, no átrio. Uma ruivinha pálida. Não olhava para ele, e o pai, com um sorriso repugnante, fixava-se nas setinhas do elevador. A mãe e a filha deixaram-no descer, com o advogado.
– Mas o que é que se passou, o que se passou, mãe?
– Não sei.
Um desconhecido falou-lhes do fundo do átrio. (Era eu, tinha de lhes dizer):
– Ele negou tudo, minha senhora, negou tudo.
– Obrigada.
Mãe e filha desapareceram no elevador.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)