Moçambique: na terra onde passou o inferno, há um céu a precisar de ajuda

Ciclone Idai deixa o orfanato municipal da Beira ainda mais desvalido, a precisar de obras e equipamentos. Entre as 78 crianças abandonadas há uma história aterrorizante de bruxaria e mutilação.

Ruben tem 17 anos e é a única criança grande – a deficiência cognitiva conserva-lhe um cérebro infantil – que vive ali. Ele vinha todo desembaraçado a caminhar pelo corredor a sentir a brisa que entra da praia quando pressente a presença da Paula.

Pára, chega a sua cara à cara dela e diz-lhe de rompante bastante alto: “Está bonita hoje, titia!”, e abre um sorriso cheio de marfim que fica ali a irradiar na obscuridade do corredor. “Oh, como é que sabes isso?”, devolve-lhe a Paula a fingir surpresa mas não embaraço. “Porque está sempre, titia, sempre bonita”, e nisto a Paula puxa-o logo para si, cerca-o cheia de braços e diz: “Tu é que és, meu querido Ruben, tu é que és sempre lindo”, e os dois ficam agarrados, as duas caras coladas à banda a sorrir.

Depois Ruben sai para a visita ao médico no hospital central, desce as escadas com cuidado, vai levado por alguém, a Paula fica a vê-lo ir, recompõe-se, passa a mão no cabelo curto, solta um ai, e dirá que é ali que vê todos os dias o céu.

Nunca viu a Paula, o Ruben, quando ali chegou acabara de fazer 11 anos e já não tinha olhos, só duas covas que lhe escaveiram a cara, a mesma cara cega com que estava há pouco a sorrir.

Ali, numa casa verde descolorada de dois andares com um muro alto adornado de desenhos infantis, mesmo em frente ao mar Índico, é o Infantário Provincial da Beira – Os Continuadores, uma instituição estatal de Moçambique que abriu em 1975, logo depois da independência de Portugal e ainda antes da guerra civil moçambicana que grassou de 1977 a 1992.

Há 44 anos que acolhe crianças órfãs dos bairros da cidade da Beira e de todas as províncias de Sofala, sobretudo as agora mais afetadas pelo ciclone Idai, que são Buzi, Nhamatanda e Dondo, albergando hoje 78 infantes que têm idades dos zero aos 12 anos. A maioria são muito pequeninos, metade ainda está no berçário, são crianças que perderam de muitas formas o pai e a mãe.

Nem todas são órfãs: há também crianças vítimas de maus-tratos pelos pais, violência física ou psicológica, crianças abandonadas, deficientes mentais ou motoras, crianças perdidas, filhos de pais presos, filhos de pais drogados, crianças mutiladas que foram vítimas do tráfico de órgãos.

Ruben ficou sem o pénis e os olhos. O tio cortou-os à navalhada para os vender a um feiticeiro do Malawi.

Paula, portuguesa, é o dínamo de tudo

É uma regra estrita para toda a gente, seja quem for: antes de se adentrar na casa passa-se por dois tapetes molhados que desempoeiram os pés e é obrigatório lavar as mãos no bidão de água acre com cloro que aparece logo à entrada em cima de um banco por pintar.

Entra-se e aparece logo Paula, Ana Paula Salgado, portuguesa emigrada da Parede, Cascais, coordenadora do projeto social do infantário que foi para ali em 2000 e nunca mais dali largou – ou melhor, tentou largar uma vez, umas semanas cheias de contradição, insónia e vazio, e Paula teve de voltar para o infantário puxada pelo peito a pulsar.

É uma leoa, é parecida com a Dama Paula Rego, a sua voz rouca é igual à da pintora devota de Diego Velázquez e Carlo Crivelli, e até fala como ela com a boca cheia de coração. “É a minha vida, nunca seria capaz de abandonar estas crianças, todas elas já foram abandonadas uma vez, nunca, nunca, não sei se voltarei alguma vez a Portugal.” É casada com um médico moçambicano, tem dois filhos maiores, um na Cidade do Cabo, África do Sul, outro a trabalhar na City, Londres, capital do reino inglês.

Cabeça daquele projeto tentacular, Paula responde perante a diretora nomeada pelo Estado, a moçambicana Célia Dias, é ela o dínamo que põe tudo a andar numa equipa que envolve um pequeno exército de 68 pessoas entre técnicas de ação social, cuidadoras, enfermeiras, médico, administrativas e pessoal de cozinha e limpeza.

“Trabalhamos 24 sobre 24 horas, 365 dias por ano, nunca na nossa história fechamos a porta, é um orgulho, nem no dia do ciclone. Temos agora aqui 78 crianças, as últimas 12 já vieram dos Centros de Acolhimento espalhados por toda a Beira, vieram depois do Idai de 14 de março, não se sabe ainda o número de crianças que perderam os pais, estamos preparados para ver a nossa população aumentar, haverá muitas mais, temos aplicado um plano de urgência que se irá estender seguramente até ao final deste ano”, diz Paula com os olhos muito abertos a olhar diretamente para nós.

“Atendemos uma média de 400 crianças por ano – este ano serão seguramente mais, todos os dias decorrem levantamentos -, trabalhamos com o Tribunal e a Procuradoria, os líderes comunitários locais, os técnicos oficiais de ação social, temos crianças em famílias de acolhimento, elas são um braço do infantário, também em famílias de adoção e ainda mães de acolhimento temporário. Atualmente são 12 as crianças prontas para adoção”, relata Paula com toda a precisão.

Ela fez parte da equipa emergente que se levantou logo na urgência do dia a seguir ao ciclone, 15 de março, chovia ainda torrencialmente, choveu durante cinco dias seguidos, e ajudou a definir estratégias imediatas para proteção especial das crianças.

É já hora do almoço, lá fora estão 31 graus, o ar martela com 67% de humidade, um ar grosso, pegajoso, um ar que quase se consegue apalpar, corre só uma pontinha de vento e a coordenadora sobe ao 1.º andar onde as paredes estão também cheias de bonecos da Disney, da Marvel, da DC e de outras cosmografias do imaginário infantojuvenil.

Nas escadas descem três crianças corridas, Paula alarma-se, “cuidado, meninos, cuidado”, e depois abraça-os um a um, a Estrela, o Xirico, o Manuce, e as crianças repetem dengueiras o epíteto que ouvimos primeiro da boca do Ruben, “titia, titia”, e Paula sobe as escadas a transbordar e a sorrir um sorriso maior do que cara.

Numa sala estão três cuidadoras e 21 crianças pequenas, dois, três, quatro anos de idade sentadas e alinhadas numa mesa comprida com pratos e colheres de plástico às cores. Comem arroz de tomate fresco com pedacinhos de sardinha de lata e uma criança que tem uma carinha de adulto, posta muito séria e que não estava a comer, desata a chorar, lágrimas grossas a correr e a cair no prato sem proteção. Ato imediato duas crianças à frente dela começam também a chorar, a abanar as colherzinhas vazias na mão.

Ana Paula Salgado, portuguesa emigrada da Parede, Cascais, coordenadora do projeto social do infantário.

Ao lado é o berçário, faltam-lhe as portadas da grande janela que caíram com os ventos ciclónicos do Idai e que agora tem só uma rede fininha a ampará-la, está lá a titia Sara, de pé. É a cuidadora mais velha, tem 70 anos, carrega uma criança que dorme nas suas costas enlaçada num pano capulana de cores camaleónicas, num braço tem outra criança, é pequenina, sossegada e está atenta a tudo o que se está a passar, e ela curva-se para acarinhar a barriga de outro bebé que acordou mesmo agora e se pôs a agitar os braços e a chorar – ao sentir o afago da mais velha titia, o bebé, que veste um babygro demasiado grande e que fica a pender nas pontinhas dos pés, tem no peito estampadas as letras “Daddys little ghoul” (“o monstrinho do papá”). Ao lado dele, num tapete estampado com um jogo de corridas, dormem mais cinco bebés. Estão regalados de barrigas para o ar.

Nos bercinhos ao lado estão mais 13 bebés, uns a dormir, outros despertos com as perninhas a pedalar o ar, sossegadinhos, carinhas rosadas, o babygro de um deles diz no estampado “Mommy loves me” (“a mamã ama-me”). Passam por eles e por nós dois pequeninos de cabelinhos arrepelados a gatinhar no mármore fresco, parecem concentrados numa corrida particular ao ralenti e Paula pega num deles, enfia-lhe o seu nariz na barriga, faz um som cómico a expulsar o ar e a criança desata a rir toda aberta.

Continuamos para o dormitório, a hora da sesta é já a seguir e quatro meninos mais velhinhos estão muito agitados entretidos a correr entre as salas e a mergulhar nos seus berços – alçam um pé na base da cama, içam-se num supetão, upa, e depois mergulham de cabeça no colchão, estatelados no riso fofo. E ali ficam, crocantes, os risos cascados, a repetir a brincadeira vezes sem conta. Em todas as divisões da casa zumbem moscas estonteadas ou paradas na parede rugosa, muitas, e também para elas está demasiado calor.

Ruben: “Dás-me um rádio?”

No pátio cá de fora metidas num círculo largo estão cerca de três dezenas de crianças sentadas na sombra do chão. Jogam a um jogo da lengalenga e da apanha e repetem com palmas compassadas “o ratinho está na mão/ele vai cair no chão” – e quando o ratinho cair, o ratinho é um boneco de pano, a criança que está mais próxima tem que o recolher e apanhar a criança que o largou, correndo à volta do grande círculo. Entre elas está o Ruben que bate palmas a balançar a cabeça e ele está sempre a sorrir.

É uma história de terror, foi varado pelo diabo, Ruben, a sua vida dilacerada é um poço intérmino de piedade que começou num horror impossível de esquecer: Ruben também não tem pénis, foi cortado à navalhada por um tio, a lâmina entrou nas cavernosas, Ruben perdeu o pénis para sempre, foi o mesmo tio que lhe arrancou os olhos vivo, os globos oculares cilíndricos inteiros ainda com a cauda do nervo ótico a pender, tudo metido num saco que o tio levava na mão.

Foi quando Ruben, que não tinha pai nem mãe, foi levado na promessa, “anda, vamos aos passarinhos”, e o levou, ignóbil, rastejante, traiçoeiro, até junto da fronteira de Moçambique com o Malawi. O tio queria vender a mercadoria a um feiticeiro daquele país africano de bruxarias negras que fica colado pela parte oeste a Moçambique. Era intenção do tio deixar o Ruben ali esventrado para morrer. O tio foi apanhado, julgado, está preso e assim vai continuar.

Foi salvo pela bondade dos estranhos, Ruben, eles ouviram a sinistra conversa do homem mau e denunciaram-no à polícia. Um esforço conjunto das autoridades moçambicanas e do Malawi capturou o tio, correram com o Ruben para um hospital malauiano, era o que estava mais perto, e estancaram-se as hemorragias. No dia seguinte foi transportado para o Hospital Central da Beira, foi de novo operado e depois colocado num plano de emergência médica que já envolveu duas visitas a Portugal onde está a ser tratado no Hospital Dona Estefânia, em Lisboa.

Naquele primeiro momento em que Ruben surgiu na escuridão do corredor e percebeu que havia ali gente de Portugal, repetiu logo “Portugal, ahh, minha terra” e bate com a mão direita no peito, toda a cara dele se engrandece a sorrir. Logo depois, Ruben disse aquilo que diz a toda a gente (diz a Paula): “Dás-me um rádio, dás?”. E a Paula explica que na confusão do ciclone a ferver o rádio se perdeu e que ele gosta muito de música, está aliás a aprender a tocar piano num órgão pequenino de ébano e branco com umas pernas pretas de montar.

Inácia Tomé é mais uma das cuidadoras. Tem quatro filhos “mais os 78” do Infantário Provincial da Beira.

“Damos o futuro a quem não tinha futuro nenhum”

Paula nem se quer lembrar do ciclone, nem ela nem ninguém, o doutor Donaldo Airone, que chegou ali há duas semanas e vai ficar três meses, o Alfredo Laitone, adjunto da Direção, a cuidadora Inácia Tomé, que tem quatro filhos seus “e mais os 78 filhos que tenho aqui”, a Maria Silvana, assistente de recursos humanos que foi a primeira a chegar no dia seguinte à calamidade, “tive que trepar várias árvores que tinham voado e estavam caídas mortas na estrada”. Mas todos falam no som furioso zumbado, na chuva que tombava como ferro e corria a mais de 200 km/hora, nas árvores enlouquecidas, na noite da tormenta que todos queriam mas ninguém consegue esquecer.

“Esta casa está abençoada”, diz o doutor Donaldo que anda de bata branca com um estetoscópio pendurado e um boneco de um coala agarrado ao fio, “está abençoada porque só perdemos umas telhas e duas janelas mas com a graça de Deus ninguém, nenhuma criança se feriu”.

“Quando aqui cheguei na manhã do 15, estavam todas as crianças a cantar”, diz Alfredo Laitone sem esconder a comoção, “foi muito bonito, nem imagina o meu alívio”, diz o homem de cara obsequiosa e cortês. “Talvez sejam os espíritos das mães dos meninos que partiram que nos estejam a proteger”, junta Paula.

“Foi Deus a proteger, quem havia de ser?”, diz Inácia Tomé, que também trabalha com crianças em ação social na Igreja Adventista do Sétimo Dia. É dela a melhor definição daquilo que ali se faz: “Aqui damos futuro a quem não tinha futuro nenhum. Isso é lindo, não é? Quando se chega aqui entra em nós uma alegria que não sabemos compreender, é uma alegria que nunca senti em lado nenhum”.

O infantário, que se gere com parcos recursos, precisa de ajuda. Imediatamente: água potável, água engarrafada, alimentos, fraldas e ainda mais urgentemente um gerador. “Ajudar hoje já é tarde, mas não demasiado tarde, esperemos que haja muita gente a pensar em nós e a querer”, espera Paula que afaga a cara a acusar o cansaço das horas mágicas do fim da tarde.

Vai cair a noite – “cair” é aqui uma expressão levada à letra: o sol cai e de repente a noite já está cerrada. Em frente ao infantário, é só atravessar a estrada que ainda está cheia da areia que voou, coqueiros partidos, casuarinas de enormes raízes aranhentas erguidas da terra, palmeiras nuas, acácias desgrenhadas, é a praia e o mar do Índico com as suas ondas paradas na água espumada.

A água é quente como uma sopa, cerúlea acastanhada, a areia amarela farinada fina está cardada de plásticos, vidros partidos, desperdícios, galhos emaranhados, todo o tipo de lixos e corvos que rasam e param a grasnar.