Texto de Sara Oliveira
A caminho dos 20 anos, Miguel Cruz entra em casa dos portugueses como Gonçalo na telenovela da TVI “A Teia”, estreando-se, assim, na representação com uma personagem que é surda, tal como ele na vida real. Mais do que o papel e a história imposta pelo guião, o jovem abriu portas à língua gestual na ficção nacional, despertando o público e até os outros atores para essa realidade.
“Muitas pessoas nunca tinham tido contacto com a língua gestual. Quem vê a novela fica certamente mais desperto e curioso para uma língua que é desconhecida da maioria”, reconhece.
A oportunidade para entrar no projeto surgiu através da intérprete Paula Teixeira, que sugeriu à TVI que fosse “um surdo a interpretar a personagem”, pois representaria o papel “de forma mais natural e verdadeira e dominaria perfeitamente a língua gestual”. “A Paula convidou 13 rapazes surdos, somos todos amigos, para irem a um casting e eu fui o escolhido”, recorda Miguel, que há muito gostava de experimentar a representação, embora nunca tivesse conhecido “um ator surdo em Portugal”.
Conseguiu e não duvida que a sua experiência “também é importante para a comunidade surda – adultos e crianças -, que se vê dessa forma retratada na televisão, fazendo acreditar que tudo é possível”.
A verdadeira paixão de Miguel Cruz é a natação pura. Federado, representa o Belenenses e é com afinco que cumpre os nove treinos semanais, alguns deles realizados de madrugada. Aos três/quatro anos, na Casa Pia de Lisboa, onde estudava, começou por ter aulas da modalidade. Com 12 anos, apurou-se para o Mundial para surdos, em Coimbra.
Aos 15 anos, mudou-se para o Belenenses, emblema que ainda representa. Agora, entre as gravações da novela, não esquece a natação e luta por um lugar no Mundial para surdos que em agosto se realiza em São Paulo, no Brasil. “O meu objetivo é disputar a final”, assume, garantindo que “é um orgulho representar a seleção nacional”.
O atleta não ouve a ordem “aos seus lugares” – há um mês, foi mesmo desclassificado por falsa partida no Meeting Internacional de Lisboa -, mas tem uma estratégia para ultrapassar as barreiras impostas pela surdez: “Sei que tenho de ir para o meu lugar porque o árbitro faz um sinal com o braço e porque vejo e imito o que os meus colegas fazem. Há piscinas que têm uma luz que dá a partida. Quando não há essa luz, é o árbitro que faz o sinal com o braço, mas não é a situação ideal porque nos obriga a olhar para o lado e a perder algum tempo. O sinal luminoso nas piscinas é essencial para os atletas surdos”.
Independente, no dia-a-dia não sente grandes limitações. Conduz, viaja e sai com amigos. Só quando é confrontado com a necessidade de comunicar sem intérprete com ouvintes que não conhece é que sente dificuldades. Os pais também são surdos e para os restantes familiares criou “uma linguagem própria”.
Com o 12.° ano concluído, decidiu fazer uma pausa, depois de não ter entrado no curso de Multimédia na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. A natação e a representação roubam muito tempo, mas também fazem sonhar. “Adorava apurar-me para os Jogos Surdolímpicos, em 2021, e gostava de ser ator, de continuar a trabalhar na TVI e, quem sabe, um dia ir para Hollywood.”