Memória: não deixe de dar corda ao cérebro

Tem ideia da última vez que decorou um número de telefone? Lembra-se facilmente de datas marcantes da História de Portugal sem recorrer a motores de busca? E fazer cálculos sem o smartphone ao lado? A tecnologia está a alterar a forma como o nosso cérebro trabalha, mas isso não explica tudo.

Antes de ser tão fácil aceder a um volume de informação tão vasto, usávamos muito mais a nossa cabeça para guardar dados. Hoje em dia entendemos, ainda que inconscientemente, que não vale a pena decorarmos coisas que rapidamente podemos consultar online ou no telemóvel. Porque é de facto muita a informação que circula na rede e seria impossível absorvê-la toda com profundidade.

Por isso, o modo como gerimos tudo o que nos chega também tem de ser necessariamente diferente. Não se trata de não termos tão boa memória ou de sermos preguiçosos (embora também esteja a acontecer, já lá vamos). Será mais uma questão de não confiarmos tanto no que o nosso cérebro armazena, uma vez que não somos capazes de armazenar coisas em números inimagináveis na caixa com a etiqueta “guardar a longo prazo”. O que leva a servirmo-nos mais das muletas tecnológicas.

Dulce Neutel, neurologista no Hospital CUF Descobertas, em Lisboa, começa por reconhecer que “a tecnologia usada de forma passiva não permite o desafio ou estímulo úteis na manutenção de um certo bem-estar cognitivo”. Ou seja, “a tecnologia sob determinadas formas pode de facto levar a que a pessoa não pense ou não memorize nenhuma nova informação e desta forma não exercite a capacidade mnésica”.

A profissional de saúde dá como exemplo a visualização de programas de televisão sem conteúdo estimulante como uma forma de “tornar a memória preguiçosa, nomeadamente nos indivíduos mais velhos”.

“A tecnologia sob determinadas formas pode de facto levar a que a pessoa não pense ou não memorize nenhuma nova informação e desta forma não exercite a capacidade mnésica”

Atualmente sabe-se que “o exercício cognitivo pode ser uma boa ferramenta para manter uma boa memória”. Dulce Neutel argumenta ainda que os problemas da memória “estão mais acentuados” hoje em dia porque também “vivemos mais tempo”, o que “aumenta a probabilidade dos problemas relacionados com a memória se manifestarem”.

É uma espécie de pescadinha de rabo na boca. Ao aumentar a esperança média de vida, aumentam também as fragilidades na saúde, como o Alzheimer. As depressões e problemas relacionados com o sono multiplicam-se, implicando a toma de medicamentos que podem ter como efeitos secundários a perda de memória.

“Os estudos de fármacos são claros nos resultados – as benzodiazepinas podem afetar todos os domínios cognitivos incluindo a memória”, prossegue Dulce Neutel. “Os resultados de fármacos antidepressivos já não são assim tão definitivos – há estudos que demonstram que o seu consumo está relacionado com a perda de memória, mas é muito difícil distinguir o que é a perda de memória causada pelo consumo destes medicamentos, do que é a perda de memória associada ao quadro depressivo para os quais eles são indicados.”

No que diz respeito às doenças de sono, “o problema está muitas vezes na utilização incorreta deste tipo de medicamentos – seja porque foi feito um diagnóstico errado da causa que leva a que o doente não durma, seja pelo tempo excessivo de utilização do medicamento para dormir, ou mesmo por uma prescrição sem indicação”. A médica aponta mesmo que o mau sono “pode resultar em problemas de memória”.

Ginástica mental é essencial

Já João Gorjão Clara, professor catedrático convidado da Faculdade de Medicina de Lisboa, regente da cadeira de Geriatria e coordenador da consulta multidisciplinar de Geriatria do Hospital CUF Descobertas, não crê “que tenha fundamento a opinião de que a nossa memória tem limites e que preenchida com muita informação, como os computadores, fique ‘cheia’ e não possa reter mais conhecimento”.

Para o justificar põe a neuroplasticidade em cima da mesa, “uma capacidade cerebral, que alguns consideram uma das descobertas mais espantosas deste século”, que faz com que “o cérebro aumente o número das suas células e as ligações entre elas, sempre que estimulado e ao longo de toda a vida”.

Por isso, defende que a queixa de falta de memória dos jovens, por exemplo, não terá a ver com o excesso de informação disponível, podendo antes “ser causada pelo stresse, pela ansiedade, pela depressão, pelo álcool, pelo tabaco, pelas drogas,… por uma vida pouco equilibrada, desajustada das exigências do cérebro para funcionar bem”.

Depois há os problemas cognitivos dos mais velhos. Segundo o relatório “Health at a Glance” de novembro de 2017, a prevalência de demência na OCDE era de 14,8% e em Portugal de 19,9%. À volta de 50% das pessoas com mais de 85 anos pode apresentar algum tipo de compromisso cognitivo ou de demência. Os restantes não têm nunca esse tipo de problemas. Num outro estudo, coordenado por João Gorjão Clara, e que versava a população portuguesa, cujos resultados saíram no ano passado, 58% dos portugueses com 85 ou mais anos “não tinham compromisso cognitivo”.

Um dos fatores que mais prejudica a nossa memória acaba mesmo por ser a falta de uso. Que acontece com a “mudança de comportamento que nos leva a reduzir, por exemplo depois da reforma, a atividade intelectual”. Outros fatores são as doenças que comprometem a circulação cerebral e o equilíbrio metabólico, como a hipertensão arterial e a diabetes; além dos medicamentos, “alguns em particular e todos, quando se tomam muitos em simultâneo”, afirma o catedrático.

Se o leitor é das pessoas que se queixam que estão a perder memória, estas dicas são para si. É preciso exercitar o cérebro como fazemos com os músculos. “Todos os estímulos intelectuais são úteis: ler, escrever, discutir, participar na vida da família e da comunidade. Conviver com amigos antigos, criar novas relações sociais e praticar exercício físico. Sabe-se que a estimulação motora melhora a rendibilidade intelectual e previne a demência.”

Mas, se estiver mesmo a cismar no assunto, uma solução pode ser as clínicas com consultas a pensar na memória. Uma realidade que resulta de uma melhor informação da população mas também, como diz João Gorjão Clara, “da procura justificada de envelhecer com qualidade”. Ou então pode recorrer às vitaminas, mesmo que “por si só não sejam suficientemente eficazes”, argumenta o médico. Não se esqueça: o melhor, mesmo, é manter-se ativo.