Há horas malditas. Como quando se arranca a vida a outro sem intenção de assassinar. O pesadelo guarda-se em gavetas fundas de silêncio e disfarça-se com fugas desesperadas que ajudam a atenuar a dor da culpa. Que nunca passa, sente-a na alma quem convive com um trauma eterno.
Viriato foi solitário herói lusitano contra exércitos romanos e é nome próprio de um cidadão comum que convive com outros exércitos – de fantasmas que teimam em invadir-lhe a mente, toldar-lhe otimismos, roubar-lhe alegrias (“Só a minha netinha me dá motivos de sorrir, aquela pequena com dois anos”), proibir-lhe uma vida sem amarras àquela noite quente de agosto de 2003, a noite que nunca mais se lhe findou. A vida de Viriato, deste Viriato, não consta dos livros de História.
Natural de Penalva de Castelo, apaixonou-se novo por moça de Almeidinha, ali para Mangualde, e por amor foi para lá morar. O parto do primeiro filho correu tão mal que o bebé foi parido com oxigénio a menos no cérebro e deficiente ficou. Uns anos mais tarde, por 1992, azarado acidente com um carro de trabalho atirou-o para operação complicada à coluna, traduzida em incapacidade parcial que lhe toldaria para sempre apoio e movimento da perna direita e o assaltaria de dores insuportáveis vindas sem aviso e piedade.
E depois há o tiro, aquele tiro maldito que Viriato pensou ter acertado em cheio em animal de caça grossa e acabou a matar o melhor amigo – “um pai, era um pai”, corrige ele -, estraçalhando-lhe o corpo com três chumbadas de zagalote. A esse pai de quem ainda hoje ouve as últimas palavras, derradeiras golfadas de vida – “Ai Viriato, o que nos havia de ter acontecido”.
Breve discurso de despedida antes de vir o sangue, de fecharem os olhos perdidos no nada, da ambulância que nunca mais chegava, do corpo ao colo em desespero, da confirmação do pior. Um amigo, o melhor amigo, morto acidentalmente por Viriato – “um pai”, volta a lembrar -, começo de uma existência de solitários sofrimentos.
Era sexta-feira, o último dia da caça ao javali e constou que andava um perdido naquele pedaço de montanha pedregosa pejada de pinheiros finos e mato rasteiro – foi tudo levado pelo grande fogo de 2017, renasce agora devagar, provam aqueles troncos finos todos negros de chamusco de onde brotam pinhas reluzentes, qual milagre a provar que a natureza vence sempre quem a desafia.
Ali, mesmo atrás da Serra da Estrela, uns poucos minutos de carro até chegar ao ponto mais alto de Portugal Continental. A terra tem um nome, chama-se Almeidinha, nem meia dúzia de quilómetros desde Mangualde, sede de concelho e de freguesia, cinco mil almas, vida renovada depois de uns quantos trabalhadores da internacional PSA Peugeot Citröen – autêntico balão de oxigénio e de postos de trabalho em região tão embrutecida de desemprego e perspetivas, 700 salários pagos em média – construírem quarteirão inteiro de moradias onde se instalaram e de onde nunca mais pensam sair assim a fábrica não lhes dê o desgosto de encerrar.
Almeidinha é poiso de ninguém a não ser dos locais, que se tratam por apelido ou alcunha, caras de todos os dias, histórias que se cruzam, qual família grande sem sangue a unir-lhes laços. O sossego quase provocador – daqueles sossegos feitos de permanentes silêncios ruidosos – é apenas perturbado quando ao grande solar que se anuncia nas placas a caminho da aldeia acorrem convidados em multidão aos casamentos e batizados lá abençoados. De resto, o mesmo todos os dias.
Um quase nada de bulício, um praticamente sempre de agitações breves, gente que ainda tem no campo sustento, outra gente que durante o dia trabalha em Mangualde, a grande cidade satélite e referência de Almeidinha, esse pedaço de terra perdido em acessos de estrada lenta guardado por muralhas de monte rude, que no verão anima com os imigrantes que vêm de fora contar como foi o ano estrangeiro e matar saudades em abraços aos seus.
“Ele mexeu-se, o azar foi esse”
Tem 56 anos Viriato Cabral, tinha 40 na noite do tiro que lhe levou a alegria. Eram umas 22 horas quando foi desafiado por Francisco, 73, – “o Tio Chico, meu segundo pai”, não cansa de sublinhar a tinta grossa – para ir aos javalis. A hora tardia não os assustou, eles que não guardavam segredos com aqueles montes.
“Combinámos um sinal, um assobio que desse conta que vinha aí o javali.” Cada um para um lado, “30 metros de distância um do outro”, quietos para não espantar o bicho, luz apenas “a do luar que tudo alumiava”.
Nas mãos, as espingardas armadas com zagalotes, munições ilegais que haveriam de tramar Viriato em tribunal – dois anos de pena suspensa, ditou o juiz que o condenou -, cartuchos que guardam múltiplos pedaços de chumbo de diâmetro superior a 4,5 milímetros, pedaços grossos que desfazem a sorte do corpo que atingem. Proibidos por isso mesmo, diz a alínea A do número 3 do artigo 79.º do Decreto-Lei 202/2004, que estabelece regras para o exercício da caça pelos aficionados da dita.
Sentiram os passos do javali, assobiaram, prepararam a mira, apontaram, veio o disparo. “Ele mexeu-se do sítio, o azar foi esse. Não tivesse mexido e não tinha havido desgraça. Pelo menos eu penso assim”, rebobina Viriato, quase tentativa de desculpar a realidade.
“Peguei nele, não sei onde fui buscar força para aqueles oitenta e tal quilos, levei-o uns 20 metros até ao carro. Arranquei e não parei. Só berrava, gritava e chorava. Até que vieram o socorro e a GNR.” Parece que foi ontem, “a GNR a levar as armas, a dizer para eu ter calma e a transportar-me para o posto”.
“Só pedi para me deixarem ver o Tio Chico mais uma vez.” Não deixaram, meteram Viriato num carro, aceleraram para o Hospital de Viseu, pediram-lhe testes de alcoolemia e estupefacientes (que deram negativo). “Foi lá que me confirmaram que o Tio Chico tinha mesmo morrido. ‘Tem muita força, Viriato’, disseram eles.”
Voltaram para Mangualde no carro da guarda, duas noites numa cela fechado à espera que segunda-feira seguinte fosse apresentado a juiz. Explicou tudo bem explicado, que fora um acidente, que não tivera culpa alguma. Os argumentos colheram e ficou obrigado apenas a apresentações semanais até à data do julgamento, o tal que lhe valeria dois anos de pena suspensa por causa dos malditos zagalotes que abateram Tio Chico – “o meu segundo pai, era meu segundo pai”, parece mantra.
Todos os casos de mortes acidentais acabam em tribunal. Sem exceção. Os autores acabam, geralmente, encaixados na mesma tipologia de acusação pelo Ministério Público: homicídio qualificado com dolo eventual. “Depois, durante o julgamento, acaba-se, geralmente, por provar que não houve intenção de matar. E a absolvição é a sentença mais comum”, explica o advogado Luís Vaz Teixeira.
“Penso nisso, penso, então não penso?”
Olhos azuis, pele queimada como se o sol lhe batesse inclemente qual castigo, rubra a pele, Viriato lacrimeja sem que lágrimas lhe caiam. É da voz que lhe sai o choro, sentido, arrependido, sofrido. Mas calado, sempre calado o choro deste funcionário da Câmara Municipal de Mangualde, horário por turnos na medição da qualidade das águas que abastecem a rede pública. Ora de dia, ora de noite é o emprego de Viriato. Sempre noturna é a sina que carrega. Foi há quase 16 anos a tal noite desgraçada, nunca mais lhe amanheceram os dias.
“Penso nisso, penso, então não penso? Apanhei uma depressão, nunca passou. Fiquei tempos que nem parecia eu. Não desfazia a barba, nem me vestia. As pessoas deram-me muita força, coitadas, mas aquilo está sempre aqui comigo.” E toca com o indicador na testa. “Ainda agora é assim. Estou melhorzinho mas nunca mais fui o mesmo.”
E ajuda, Viriato, pediu? “Nunca tive acompanhamento no Centro de Saúde. Só da minha autoria. Ando num psiquiatra, ainda lá vou de quando em vez. São 70 euros cada consulta, veja lá. Três tomas de medicamentos por dia não falham, ainda. Se não, volto a ir por aí abaixo outra vez.”
Acresce a indemnização, outra dor de alma para Viriato. “De início eles não queriam nada e uns anos depois foram para tribunal com processo cível.” Eles são a família da vítima, do Tio Chico – “quase meu pai”. “Fiquei de lhes pagar 74 747,48 euros”. O valor sai-lhe da boca ao cêntimo e saiu-lhe do bolso pago de uma só vez através de seguro. “Agora sou eu que tenho de dar esse dinheiro à companhia, uns 300 e tal euros todos os meses. Já viu a minha sorte?”.
“Como quem participa numa guerra”
Viriato é um caso à parte. Matou por acidente, sem culpa alguma, e fala. Aliás, desabafa, quase catarse daquela noite que nunca mais o largou. O silêncio é regra e código não escrito de todos os que passaram pelo mesmo, como que a desejar arrumar apenas em si memória negra que os de fora não têm que conhecer e compartir.
“Quem passa por uma situação do género desenvolve quadro de stresse pós-traumático, tal qual como quem participa numa guerra”, enquadra Marques Teixeira, há três anos presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental. São normais os silêncios, entendíveis os muros de solidão, compreensíveis as recolhas em si próprio enquanto parede contra trauma forte. “Os indivíduos vivem momentos de negação, de bloqueio. Situações que funcionam como defesa, uma reação patológica normal”, acrescenta o clínico.
Rute Agulhas, psicóloga, psicoterapeuta e docente no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, constata que a culpa é sempre indissociável destes processos. Apesar de a pessoa “dizer constantemente a ela própria que não teve culpa alguma”. Isso e a vergonha de abordar o assunto. “Vergonha e culpa andam sempre de mãos dadas neste tipo de casos.”
E há os que fogem, que vão refazer vidas longe do cenário da desgraça, afastados dos olhares, do diz que disse, dos dedos apontados, das conversas em surdina. Como aquele homem, chamemos-lhe Tiago, que em terras altas do Norte, numa caçada com o amigo que considerava irmão, como Viriato considerava o Tio Chico segundo pai, acertou-lhe tiro fatal ao pegar em caçadeira que julgava descarregada.
“Ficou mal, bem mal, da cabeça. Andava por aí desaustinado, nem parecia o mesmo. Passado um ou dois anos foi para Inglaterra e nunca mais ninguém o viu”, contam amigos, que não querem identificar-se – “para quê?, perguntam, isso é coisa do passado, o melhor é deixar estar o homem”. O pesadelo para trás das costas, lá está. Sempre presente, mas, se não o virmos diante dos olhos, melhor. “A necessidade de fuga está relacionada com a censura social, que pode ser explícita ou não. É como escapar a um contexto de reprovação”, observa Rute Agulhas.
“Ir para fora, o melhor”
Depois de estrada de curvas e contracurvas, assoma à janela quem conhece Carlos (também o nome não é verdadeiro) desde o colo. E quem lhe testemunhou o desespero nos dias, meses e anos que se seguiram àquela brincadeira de adolescente que acabou trágica. Andava de arma na mão, uma pequena 6,35 milímetros, perseguia amigo de longa data em brincadeira de aventura. Julgava-a inocente de balas, descarregada. Enganou-se e a pistola disparou, tombando para a morte o companheiro.
“Nunca mais se concentrou, chorava, desencontrou-se na escola”, conta quem com ele lidou. Cresceu desorientado Carlos, não conseguiu terminar o ensino superior, ficou refém do dia terrível. Até que apareceu proposta para emigrar. “Aceitou logo, foi com pessoas de confiança, próximas, fez-lhe bem a mudança.” Raros são os dias em que regressa ao cenário do tiro, o refúgio é outro, longe de negras amarras de territórios malditos. “Fez-lhe bem ir para fora, o melhor que lhe poderia ter acontecido.”
A fuga é outra reação razoável de quem apresenta situação traumática que lhe marca a vida, constata Marques Teixeira. “Mais uma defesa, tal como o silêncio. Há que integrar memórias dentro de um quadro depressivo grave, que muitas vezes não é acompanhado. E a melhor reação encontrada é a distância”, defende o presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental.
Quem também fugiu da terra onde a desgraça lhe bateu à porta na primeira pessoa foi André (outro nome fictício). A aldeia que o viu nascer e crescer e que testemunhou o acidente fatal agora só o encontra por alturas do Natal e das férias de verão. “Foi para a França”, conta quem o sabe bem. Foi lá que preferiu deitar para trás das costas e da lembrança o dia em que mostrava uma caçadeira escondida em casa a um primo e a maldita soltou chumbada sem aviso. “Acertou-lhe na nuca, o miúdo esvaiu-se em sangue, ainda foi levado para o hospital, mas não demorou a morrer”, rebobina a testemunha.
Eram adolescentes os dois. O que atirou sem querer ficou desorientado para a vida. Mudou para escola distante, continuou a ser cochichado na mesma, comentado a toda a hora. Só queria fugir, “passava a vida a dizer à mãe que queria sair da terra, ir para fora quando fizesse os 18 anos”. Foi mesmo. Abalou sem olhar para trás, tentativa de esquecer de vez a casa onde o terror aconteceu. “Tem trabalho e uma namorada, está bem, coitadinho.” E tem um passado que a distância ajuda a mitigar.
“Lembrar coisas tristes”
Foi também arma proibida julgada guardada em armário inviolável que levou à curiosidade de dois irmãos – a curiosidade dos putos é perigosa, dizem os livros e confirma a realidade. Aproveitando uma nesga de tempo em que o pai se evaporou de portas, foram-lhe os dois ao quarto em busca da caçadeira que tanto já tinham cobiçado mas nunca experimentado.
Foram lá direitinhos os manos Rui e Pedro (nomes fictícios), como íman a chamá-los, desafiante. Rui pegou nela, qual adulto feliz, poderoso, cheio de mundo dentro dele. Na cartucheira cheia nem lhe tocaram Rui e Pedro, queriam era brincar com aquela caçadeira que parecia saída dos filmes de domingo à tarde na televisão. Era o aniversário de Pedro, tudo parece legítimo em dia de festa.
A brincadeira acabou mal, bem mal, quando Rui apontou a arma em direção ao corpo de Pedro e premiu o gatilho. Esperou o som seco de disparo de câmara vazia. Ouviu o estrondo de cartucho a rebentar sem dó. Pedro caiu no chão. Morto. A aldeia toda em alvoroço, luto carregado.
“Tentou fazer vida, anda cá e lá. É homem casado e com filhos. Nem lhe tocamos no assunto para não o lembrar de coisas tristes, muito menos ele puxa o tema”, contam vizinhos. De Rui apenas se sabe que a ajuda nunca foi muita. É homem feito e de família e negócio formados, desgraçada foi aquela noite, “agora é tempo de olhar em frente e deixar que saúde não lhe falte”.
Riacho de dor
E há o rapaz cujo rosto se transfigura – não é figura de estilo, a feição muda mesmo de forma para registo de desgraça, qual máscara de teatro a representar a morte – que, em tarde de caça, alvejou o irmão de 40 anos por engano. Julgava ele que o familiar estava longe, afinal tinha-o em mira sem contar.
“Ui, que o homem, coitado, ficou sem se poder. De certeza que não quer falar nisso”, diz-nos um vizinho – a aldeia é tão pequena, três ou quatro correres de ruas em pedra, que todos são vizinhos de todos. E não quis mesmo. Apenas baixou os olhos na direção do riacho e nunca mais de lá os tirou. Em silêncio. Sempre.
As expressões alteradas, a memória revolvida, o tempo a regressar àquele verão de há quase dez anos que nunca deveria ter passado pelo calendário. E sempre o riacho enquanto ponto de escape fugaz para lembrança de dor. “Isto custa-lhe muito, já se percebe”, reconhece o amigo e amparo, antigo polícia que voltou à terra depois da reforma.
Na aldeia minúscula, onde só se chega através de caminho apertado a brincar ao asfalto, o isolamento é companheiro permanente. Fez-se pacto de silêncio não celebrado, quase nunca se toca na ferida que, por mais escondida, continua sempre lá. O luto de um só é o luto de todos. Em comunidade unida na dor. Com os olhos assentes no riacho de água gelada.
Quem também nunca fugiu de onde a desgraça lhe bateu à porta na primeira pessoa e com isso convive com dificuldade é aquele homem a quem um acidente de trabalho lhe levou pai e razões de alegrias. Trabalhavam juntos a manobrar máquinas, equipa familiar pequena mas eficaz. João (nome fictício) fez marcha à ré que lhe apanhou quem não vira estar atrás, veio o acidente e a fatalidade.
Desfeita a manobra, desfez-se-lhe a alma. Não reparara que o pai, provavelmente por distração, estava atrás da máquina e recuou como se nenhum obstáculo lhe pudesse travar a intenção. Só se apercebeu dele já prostrado no chão, morto, atropelado inadvertidamente.
Fala a custo do sucedido, só sabe que ainda hoje “é doloroso” pensar no infortúnio. “Custa muito, mesmo muito. Nunca mais fui o mesmo, vou tentando ser”, admite. “Há que tentar continuar a viver, se estiver quieto é que é pior”, sentencia. Pede desculpa por não dizer o nome – “Não vale a pena falar mais do assunto, para quê?”. O silêncio, sempre o silêncio.
“Nunca mais tive razões para alegrias”
Voltemos a Almeidinha. Viriato continua de olhar perdido. Vai ao monte encontrar a serenidade desaparecida há muito, disparar aos tordos e às lebres e aos coelhos, às vezes às perdizes. Soltar os cães de quem cuida como quem conserva relíquias, deixá-los correr atrás das presas, vê-los livres naquela liberdade infinita da serra.
“É a única coisa que me relaxa, sabe?”. “Nunca mais tive razões para alegrias. Nem regressei alguma vez ao lugar onde aconteceu o que aconteceu com o Tio Chico, que era quase meu pai. Nunca mais.” Ele sabe que a fatalidade vai atordoá-lo até ao fim dos dias. A paz de quem mata por acidente é utopia, espécie de prisão perpétua em liberdade.