Maria de Lourdes Modesto: “Ainda tenho a maior curiosidade do mundo”

É uma mulher sem idade. É uma mulher atenta, cheia de curiosidade, generosa sem abdicar do rigor e da exigência. Mantém a perspicácia, cultiva o sentido de humor, fala das suas flores e das suas compotas, únicas, com o mesmo enlevo e reconhece: a solidão pesa. Combate-a olhando para amanhã. Por isso, prepara mais um livro.

Maria de Lourdes Modesto e a encantadora caniche, relação de seis anos e “um amor incapaz de se explicar”, recebem-nos na varanda envidraçada, um viveiro de belas orquídeas, rasgado para o jardim, também ele muito cuidado.

São três da tarde e em Alapraia, Estoril, o dia está quase de verão. Mas nem o sol ou a curta sesta atenuaram as dores no corpo. “Hoje sinto-as.” Acha natural, não se queixa. “Sabem que idade já tenho?” Maria de Lourdes nasceu em 1930. Ninguém o diria. Tem muito de menina. Menina coquete. “Fui ontem ao cabeleireiro, por vós”, diz, referência maior da nossa gastronomia, estrela da televisão a preto e branco, autora do incontornável Cozinha Tradicional Portuguesa.

Vive com as memórias, mas olha para o dia seguinte. Sem pressas. A conversa corre devagar: “Gosto muito de pessoas. De conversar, de receber”. São, a cabo-verdiana que é companhia diária, oferece um café irrepreensível. Como não podia deixar de ser.

“A senhora está lá fora a cuidar do jardim”, disseram-me, quando telefonei para combinar a entrevista. É um cuidado diário?
Atualmente, por razões de saúde, não posso gabar-me de o fazer todos os dias, mas é uma coisa de que gosto muito e o jardim tem a minha visita garantida, várias vezes por dia. Embora pequeno, o ano passado esteve lindíssimo, teve muita flor. Conheço-lhes os nomes. Quanto vem um jardineiro novo fica espantado. São nomes que por vezes ele próprio desconhece.

Quais são as favoritas?
Até há pouco podiam ver-se no jardim: as estrelícias. De tal maneira, que cheguei a tê-las na tela que forrava os maples. Têm uma vida tão misteriosa que vale bem a pena conhecê-la. Ultimamente, tenho uma outra paixão que é a gerbera. Cultivam-se aos milhões no Montijo, temos de todas as cores e vão pelo mundo inteiro.

Aos 88 anos, como passa os dias?
Há uma característica minha que o meu marido criticava muito – ter de estar sempre a fazer qualquer coisa. Sobretudo à noite, dá-me uma tristeza enorme porque fecho a TV, pergunto-me “o que fiz hoje de útil?” e chego à conclusão que nada fiz.

Quando marcámos a entrevista disse que não queria lamechices.
Atualmente há uma série de programas televisivos em que se metem muito na vida das pessoas, que são levadas a contar coisas do passado que as comovem. A televisão não é ombro em que queira chorar.

Pensa muito no passado?
Sou obrigada. Porque o que se passa é para mim tão estranho, tão feio, tão desagradável, que consigo arranjar algum conforto nas minhas memórias.

O que a desagrada assim tanto?
Na televisão, muita coisa. Tudo o que devia meter muito sentimento é tratado de uma maneira mercenária. As pessoas estão naqueles programas, a fazer aquelas figuras e naquele fingimento por dinheiro.

Fama. A Maria de Lourdes nunca quis ser famosa.
Não sei se não quis ou se não me calhou. Se fosse a Angelina Jolie tinha de carregar com a fama. Mas fui casada com uma pessoa muito comedida, que conhecia o meio porque trabalhou na televisão. Sempre que me via satisfeita com um programa dizia-me “olhe que isso não vale nada”. Uma vez por outra, achava que tinha feito uma obra de arte. Numa dessas vezes, era ainda meu namorado, arriscou: “O seu programa de hoje foi muito apreciado em A dos Alguidares”.

Incómodo pela notoriedade da namorada, não seria?
É capaz. Os homens são capazes de ser todos iguais.

Tem noção de que é uma comunicadora maior? Diva, para Miguel Esteves Cardoso. Amália da cozinha portuguesa para os portugueses.
A Amália era de facto uma diva. Eu só fui uma diva na escrita do Miguel (Esteves Cardoso). Mas, sim, Carlos Cruz dizia que o meu trunfo era a comunicação.

O que é que ainda hoje vê na TV?
O canal 24Kitchen já foi interessante. Hoje vejo menos. Como sou surda e tenho alguma dificuldade em perceber o que se passa em conversas cruzadas, faço leitura labial. Vejo os pivôs e quando estou sozinha o Mezzo dá-me uma boa ajuda.

Como lidou com a surdez progressiva tão precoce?
Quando, em 1987, o médico me aconselhou um aparelho, surpreendi-me. “Pôr um aparelho, eu?” Mas segui o conselho, fui sensata. E posso dizer que tem sido um bom parceiro. Sempre tirei do aparelho um rendimento que chegou a surpreender os fabricantes. No entanto, considero a surdez uma desgraça. Porque perco muito. Há muita tradição oral na cozinha portuguesa e foi dessa forma que aprendi muita coisa. Agora, não aprendo mais nada. Tenho pena.

“Um dia vi na televisão uma fotografia de um pastel de bacalhau a vomitar queijo. Era uma imagem pornográfica”

Hoje, o que a leva à cozinha?
Peço desculpa, mas faço muito bem compotas, sabe? As pessoas ficam admiradas. A de alperce é o suprassumo. Mas também a de abóbora e a de tomate. De vez em quando, faço uma experiência.

Ainda à procura de novas maneiras.
Ainda tenho a maior curiosidade do mundo.

Falaremos mais à frente dessa curiosidade. Por agora, qual é o segredo de uma boa compota…
Cada compota tem a sua individualidade. Eu fui professora e, portanto, tem de ser tudo à risca. Os passos que dou para fazer um doce de fruta são sempre os mesmos. Só quando quero fazer uma nova experiência é que mudo qualquer coisa.

Imagino esta casa a cheirar a compota.
A casa fica a cheirar muito bem. Sinto-me bem a mexer nas coisas de que são feitos os doces, na fruta. E depois tenho um presentinho para dar aos amigos.

Quem cozinha no dia-a-dia?
Uma empregada cabo-verdiana que tem muito jeito, mas já lhe ensinei algumas coisas, naturalmente.

Aceita o que vai tendo de comer no dia-a-dia, provavelmente alguma dieta?
Não, não aceito nada. Custa-me muito comer peixe congelado, por exemplo. Nessas alturas tenho a ajuda da minha Migalha (cadela caniche).

O saber é fundamental em qualquer idade?
Embora tenha as minhas limitações, não sou fanática da saúde. Por exemplo, esta história das alergias. Eu não sou alérgica a nada também porque não me dou a isso, mas vejo pessoas alérgicas ao glúten, à lactose, a isto, a aquilo, a tudo. Devem ter uma vida tristíssima. E é que estão a estragar a nossa cozinha.

O que não pode faltar na cozinha da Maria de Lourdes?
Um descascador de batatas. O meu é do tempo em que fui para a televisão, 1958, veja bem. E ainda descasco batatas ou fruta com ele. É dos mais simples, já tem uma grande greta e, portanto, leva a casca um bocadinho mais grossa para meu gosto, mas ainda o uso. Outra coisa que não pode faltar é arrumação. Sendo eu desarrumadíssima, na cozinha tenho de ter tudo limpo e arrumado. Só então consigo cozinhar.

Tanto programa, tanto chef, tanta exposição mediática, tanta espuma, emulsão, camas disto e daquilo. Como vai a cozinha tradicional portuguesa? Porque não usou a palavra trapalhada?
É a palavra certa. Há tanta trapalhada que penso que eles próprios já não sabem qualificar a cozinha que fazem. Tanto é de fusão, como é contemporânea, como é Nouvelle Cuisine, enfim, uma trapalhada. Dou por mim a achar graça à maneira como eu própria tenho evoluído. Quando se apresenta um prato português, a maior parte das pessoas que procura a inovação quer acrescentar. Nem que seja uma flor, e às vezes até são venenosas (ri). Eu não. Só encontro coisas para tirar: menos gordura, menos sal, menos açúcar. É possível fazê-lo, continuando a respeitar a matriz da receita.

Por exemplo, acrescentar queijo da serra aos pastéis de bacalhau.
Um dia vi na televisão uma fotografia de um pastel de bacalhau a vomitar queijo. Era uma imagem pornográfica.

Para atualizar sem desvirtuar é preciso conhecer a matriz tradicional.
É preciso conhecer a receita e ter dado, se possível, uma voltinha por aquela terra. Porque a emoção é algo de muito importante na alimentação. Há uma relação muito forte entre a comida e as pessoas.

Com a tal trapalhada, o prato tradicional português tende a desaparecer?
Na semana de gastronomia do Porto, um chef e o grupo dele resolveram fazer-me uma homenagem. Vieram aqui, a minha casa, e trouxeram-me um prato de que gosto muito – tripas à moda do Porto. Devo dizer que devo ter comido as melhores tripas da minha vida. Mas, sabe, quando me disseram que a pessoa que fez aquelas tripas se dedica à cozinha de autor caiu-me tudo ao chão. Como é possível que quem faz um portento daqueles esteja a fazer cozinha de autor, a tal em que para encontrarmos a cenoura descrita no título temos de andar a esgravatar.

Muitas vezes saímos sem saber o que comemos.
Quando me dizem “fui ali e comi muito bem”, pergunto sempre: “Diga lá o que ele comeu…” Resposta: “Isso não me pergunte que eu não sei.” Enquanto na cozinha portuguesa, bem ou mal feita, se a matriz foi respeitada, sabe-se sempre o que se está a comer. Faz impressão que quem faz uma maravilha daquelas, umas tripas portentosas, esteja a dedicar tempo à cozinha de autor que ninguém sabe o que é.

Pode haver uma complementaridade entre a cozinha tradicional e a moderna?
Não são compatíveis. Deixem a cozinha tradicional portuguesa ser como é. Quando muito tirem-lhe gordura porque tem de facto muita. Tirem-lhe também quantidade. Como dizia há pouco, admiro-me como é que fui aceitando, aceitando, aceitando, até ao ponto de dizer que da cozinha tradicional à portuguesa só tenho coisas para tirar.

Come-se muito.
É um dos defeitos dos portugueses. Comemos muita quantidade.

Quem vê tanto chef pensa que temos grandes escolas de hotelaria?
Fui sempre muito próxima da Escola de Hotelaria de Lisboa. A antiga. Mas fiz há pouco tempo uma exposição numa escola de hotelaria sobre a marmelada de Odivelas. E encontrei alunos sequiosos de aprender a história dessa marmelada e por que razão fica branca. Quando o tradicional é explicado e percebido, é respeitado.

Quando entra num restaurante é seguramente mais temida do que um crítico gastronómico. Sabe isso?
Eu não faço crítica, faço reparos. Por vezes provocações. (ri)

Sempre deu muita importância à cozinha familiar. As pataniscas, os empadões, o arroz de feijão estão a ser substituídos pelas massas. Chegará o dia em que a cozinha italiana terá o nome de cozinha universal.
Está em toda a parte. Desde que se saiba cozer massa, é uma cozinha muito fácil e barata. E depois temos a sorte de ter por aí os queijos italianos. O parmesão é uma coisa extraordinária, temos de reconhecer.

Aguentará a comida familiar portuguesa o embate?
Sabe que a nossa cozinha tem uma grande virtude. Serve para todas as ocasiões, e para todos. Aquelas tripas que me trouxeram: bom, fiz questão de as servir em terrina e com uma tigela de arroz porque, na realidade, a mesma comida depende da apresentação. Acho que a cozinha portuguesa vai aguentar.

Já experimentou McDonald’s?
Quis mesmo experimentar e até nem era mau. Mas há muito pouco tempo fui a um drive-in e a refeição era hambúrguer. Nem queira saber, não fui capaz de o comer. Em contrapartida, sou capaz de comer uma má pizza. Há relativamente pouco tempo fiz uma viagem a Roma e ia daqui com a ideia de experimentar uma pizza margherita, na Piazza Navona. A minha vinha queimada. Não me apeteceu ralhar com o empregado. Não disse nada e comi.

Tem uma comida de conforto especial?
Quando estou mais deprimida, gosto, primeiro, de ir para a cozinha fazer compotas. Mas no respeito pelas regras: durante 15 dias não se toca naqueles doces. É necessário deixá-los assentar e quando estão bem relaxados, então, sim, podem comer-se. São imensas as oportunidades de utilizar as compotas que fazemos. E não é à maneira portuguesa. Eu não gosto da maneira portuguesa de fazer os doces. Prefiro a maneira francesa, porque nessa os frutos são minimamente sacrificados. No doce de framboesa, por exemplo, o fruto ferve exatamente dois minutos, de forma a respeitar o sabor e a cor.

Quando pensa em comida portuguesa pensa imediatamente em que sabor?
Depende muito da hora. Porém, há um sabor que me apanha a qualquer hora que é o da açorda alentejana. Aliás, não devia dizer alentejana porque para uma alentejana açorda é aquela açorda. Só há uma. Mas há vários sabores que me ocorrem. Gosto de comida que leve cebola – a cebola é, regra geral, por onde tudo começa: um fiozinho de azeite no fundo do tacho, a que se junta a cebola picada e só depois se desenvolve a receita. Gosto também muito do sabor do alho, que deve ser “degerminado”, e gosto de tomate.

A cozinha é lugar de superstições. Tem alguma?
Superstição, não. Mas tenho uma enorme admiração por quem criou alguns pratos e nesse lote de pratos, que não é grande, está o bacalhau à Brás. Acho o bacalhau à Brás uma perfeição. Equilíbrio, bom gosto, tudo. Um trunfo nosso que devíamos defender melhor, não aceitando que nos sirvam um bacalhau à Brás frio ou duro. É o meu prato favorito.

Não tem, então, superstições culinárias.
Nenhuma. Nem benzo o pão. A propósito de pão, também anda a irritar-me muito a quantidade de pães que já não sabem a pão, tal é a variedade. Outro dia, tinha um bom queijo, um queijo amarelo da Beira Baixa que estava num ponto fantástico e tive de pedir pão, pão. Aquele pão que as pessoas da Beira Baixa gostam de comer com o seu magnífico queijo amarelo.

Muitas variantes de pão e, também, de bolos…
Passei em muitos lugares e nunca vi um éclair enfeitado. Em Portugal há quem o enfeite com bolinhas brancas e até pimenta rosa (que nem sequer é uma pimenta, mas enfim). Aquilo tem alguma graça? A França inteira devia revoltar-se, esses coletes amarelos deviam revoltar-se. Tive uma autêntica fúria quando vi os éclaires amacacados. Já não lhes toquei.

Como sabe quando um prato está pronto?
Alguns que têm tempos marcados. Quando faço risoto, digo que a cozedura é entre 15 e 18 minutos. Aos 18 minutos tem de estar pronto. Em regra, a intuição tem muita importância. E, claro, o gosto da cozinheira.

Há pouco disse que a cozinha italiana é fácil. Mas cozer massa é um problema.
É um problema, sim. É muito difícil, mas é algo que se ganha com o treino.

Um erro técnico impensável?
A última fúria foi com o éclair enfeitado.

Como se recupera um prato que ficou salgado?
Não há solução. Pode acrescentar-se água, batata, se a receita o permitir, mas tirar o sal é impossível.

Prova muitas vezes?
Mando a empregada provar. Tem muito bom paladar.

Nunca prova?
Se estiver a fazer um molho, provo, mas, muitas vezes, pelo cheiro sei se está bem.

Uma opinião positiva da Maria de Lourdes sobre determinado chef é um certificado de qualidade. É muito solicitada?
Aceito alguns convites, mas não vou a todos. Até porque apaparicam-me tanto que fico sem margem para dizer o que quer que seja. Eu vou aos pormenores que são importantes. Comi há muito pouco tempo no restaurante do Vítor Sobral, de quem gosto muito porque tem evoluído sem estragar, um escabeche de peixe que era uma coisa absolutamente extraordinária. E o que é que me encheu as medidas? A cebola. Estava mal cozida. Quer dizer, não estava caramelizada. Gosto muito de Avilez, que me trata por avó. O José é um fora de série na cozinha e como pessoa.

Que importância atribui às estrelas Michelin?
Quando o meu querido José Avillez ganhou a primeira estrela, eu disse “ai ai ai”. E porquê? Porque temo que a pressão que as estrelas Michelin fazem sobre o chef o levem a fazer coisas que não queira nem goste. Para a crítica são muito importantes.

Nunca teve um restaurante. Porquê?
A certa altura o (cineasta e produtor) António Cunha Telles teve a ideia de a Amália e eu termos um restaurante. E ainda formos à procura de casas. Mas a Amália embicou na casa dos bicos e o presidente da Câmara de Lisboa da altura não acedeu. Acabámos por não encontrar casa e eu digo “graças a Deus” porque não tenho vocação. Não tenho jeito para o negócio.

O que trouxe de novo à cozinha portuguesa?
Por vezes, nos meus tempos de televisão, faziam-me críticas que achava injustas – “então eu fiz tudo tão bem e criticam”, pensava. Depois, cá em casa, nunca tive “um ai que bem”. Sempre crítica. Pensando hoje nisso, dá-me impressão que aconteceu o seguinte: a televisão era muito “ganté”, luvas e gravata, tudo muito sério e, de repente, eis que aparece uma pessoa que não podia estar com essas coisas. Lembro-me do primeiro programa. Queria ir-me embora, perdi a fala, não foi fácil, naquele tempo não havia teleponto. Mas pensei na minha mãe, que estava a ver-me, e lá engatei a conversa.

Recebia muitas cartas?
Aos caixotes. A pedir receitas, a perguntar onde comprava a roupa – recordo-me de ter comprado em Paris uma camisa leopardo e não imagina as cartas que recebi -, por vezes a corrigirem-me. E por vezes até tinham razão.

Entrou para a televisão pela porta do teatro. Porque deixou a representação?
O teatro fascinava-me, mas a instabilidade da profissão assustava. Era professora no liceu francês (trabalhos manuais), já sabia o que era ter um ordenado fixo e como não sou rica precisava de trabalhar. Mas, como digo, fascinava-me e cheguei a receber convites da Senhora D. Amélia (Rey Colaço) e do Fernando Frazão, que tinha uma peça para encenar. Queria-me a mim e à Amália. Foi aí que Domingos Mascarenhas, fiel da balança do bom gosto em televisão, disse “já temos uma atriz a representar mal, não precisámos de duas”. E não me deixou ir. (ri)

“Acho o bacalhau à brás uma perfeição. É o meu prato favorito”

A televisão representou financeiramente uma mudança enorme…
Comecei a trabalhar com 19 anos. Ganhava 25 escudos à hora, em lições. Nove anos depois, recebi pelo primeiro programa 400 escudos. Fui para casa a pensar “esta gente enganou-se”. Nunca pedi um aumento, mas andava sempre a par com o Sousa Veloso, que tinha um programa (TV Rural) também com muita difusão. O máximo que ganhei foram 1 500 escudos por programa, em 1970. Mesmo comparando com a época eram valores muito longe dos que hoje existem. Essa Cristina Ferreira deve ser uma mulher muito inteligente. Mas chia de tal maneira que não se pode.

Nunca foi fustigada pela crítica. Nem pelo temido Mário Castrim…
O Mário Castrim não deu só pancada. Evitou que muita porcaria fosse para o ar. Hoje, as pessoas gostam de dizer que não ligam a críticas. Olhe, eu ligava. Na véspera da crítica do Mário Castrim não dormia com os nervos.

Como preparava os programas?
Era o que mais me preocupava. Estava sempre a achar que nada do que fazia interessava ao menino Jesus. Um dia, fiz um belíssimo programa sobre as várias maneiras de cozinhar arroz. No final do programa achei que aquilo não tinha tido interesse algum. E depois tinha as críticas do meu marido.

A Maria de Lourdes é insegura?
Sim, sim. Sabe, quem faz televisão deve ser um bocadinho inseguro. A televisão pode ser um empecilho muito grande na vida de uma pessoa. A minha grande preocupação era fazer alguma coisa de novo.

O programa era seguido também por homens.
O meu moinho da noz-moscada, que ainda hoje uso, foi-me dado por um senhor de Coimbra, que de resto nunca conheci.

Doze anos depois, em 1970, retirou-se da TV. Teve vários convites para regressar, que nunca aceitou. Porquê?
Sim, vários convites, sobretudo da querida Maria Elisa, mas nunca quis voltar. Porque achei que era capaz de ser mais do mesmo, que um regresso não acrescentaria nada à minha vida. E, sobretudo, porque acreditava que fora da televisão também se podiam fazer coisas importantes. Foi então que tive a sorte de encontrar o Miguel Esteves Cardoso.

O encontro com Miguel Esteves Cardoso, na revista “Preguiça” de “O Independente” (anos 2000) foi importante. Para os dois.
Escrevi na revista “Preguiça” de boa memória. Acredito que a revista divertia os leitores, mas também nos divertia muito a nós, que a fazíamos. Foi realmente uma sorte minha.
O que disse o Miguel que a convenceu a regressar à escrita nos jornais? Comecei por dizer que não, mas depois de ler o primeiro número decidi entrar na brincadeira. E não estou nada arrependida, antes pelo contrário. O contacto com ele e com equipa foi muito bom. Estou-lhe grata.

A autossuficiência financeira é importantíssima para uma mulher, disse numa entrevista. Essa noção vem de ter sido criada por uma mãe separada, com três filhos a cargo?
Foi a realidade. Fiz um curso de professora de economia doméstica. Vim do Alentejo estudar para São João do Estoril (mal imaginava que viria cá parar muito mais tarde) porque tinha muito jeito de mãos. E gostava muito de trabalhos manuais. Como aprendi a bordar a ouro, queria muito ser restauradora do Museu de Arte Antiga. Era o que queria ser. Depois, vieram as aulas de culinária em Lisboa. É então que chego ao mercado de trabalho a ganhar os tais 25 escudos por lição. Mas só trabalhava dois dias por semana.

Não aprendeu a cozinhar com a mãe.
A minha mãe não me ensinou. Eu vi-a a cozinhar e achava que tudo o que fazia exigia muito esforço. Dava uma tareia na massa tenra que eu sei lá. Esforço e saber. Sabe, a minha mãe não pesava nada. Com a mão sabia quanto levava. Eu peso. (ri)

Da mãe refere sempre “a contenção e a enorme sabedoria”. O que tem dela?
(pausa) Um bocadinho da opressão. Ela trazia as rédeas bem curtas, não ia nessa conversa das atrizes que tanto me fascinavam e recortava dos jornais e das revistas. Não alinhava comigo.

O teatro era um gosto de infância?
Sempre gostei dos artistas. De tal maneira que sempre paguei a quota máxima à Casa do Artista e agora até dou um subsídio anual. E nunca lá fui.

Qual era o preferido?
A Beatriz Costa. Até me penteava como ela.

O que tem de alentejano, Maria de Lourdes?
(longo silêncio) Agora vai ficar muita gente zangada comigo, mas tenho de dizer que não tenho aquela paixão concreta pelo Alentejo. Por aquelas casinhas em fila, uma porta/uma janela, uma porta/uma janela, uma porta/uma janela, com toda a gente a saber o que se passa no monte. Não. Mas reconheço que é muito bonito, reconheço que tem uma belíssima cozinha, reconheço que tem uma belíssima doçaria. Disso não há dúvida.

O marido, Carlos Assis de Brito, era de onde?
De Lisboa e completamente lisboeta. Conheci-o na televisão.

Os homens prendem-se pelo estômago?
O meu marido era um gourmet e, apesar de me fazer muitas críticas, apreciava a minha cozinha. Nesse campo, não nos entendíamos num só ponto: a lampreia. Eu não gosto; ele era um grande admirador.

É uma mulher romântica?
Muito romântica. Sou capaz de me comover a ouvir as músicas do passado. Comovo-me frequentemente. Mas não sou muito afetuosa. Tenho muito convívio com algumas jovens, algumas das quais gostaria de ter como filhas, tenho amigas de há 60 e tal anos, mas não sou muito afetuosa. Ou melhor: dou abraços à séria, mas é agora. Não era.

As pessoas eram ensinadas a esconder a emoção, a evitarem a exteriorização do afeto.
A esconder tudo. Até a barriga da gravidez.

Voltando aos seus dias de hoje. Ainda borda?
Infelizmente, estou a perder a agilidade. Fiz muito tricô, tanto que estraguei o pulso. Dar umas agulhadas relaxa.

É capaz de jantar num tabuleiro?
Tenho uma mesa de colo. Sabe, estou sozinha. E estar sozinha não é bom. Não gosto.

Posso escrever que tem uma vida boa?
Não sei se uma pessoa sozinha pode dizer que tem uma vida boa. No inverno, chegando a hora a que o meu marido regressava a casa, sete, oito da noite, há sempre qualquer coisa que me emociona.

Porém, todos referem a vivacidade rara.
Sabe, sou um mistério para mim mesma. Chego a estar a cair, chegam-me pessoas a casa e fico viva que eu sei lá. Gosto de gente. E procuro não ter inimigos.

Confessa que não sabe estar parada e que tem uma curiosidade permanente. O que vem aí?
Gosto muito de transmitir. Aliás, o que eu gostava era de ser professora. Estou a tentar fazer um livro de crónicas, coisas que escrevi aqui e ali. Mas devagar. Estive muito mal na passagem de ano, a tal ponto que estava a ver que o médico me passava a certidão de óbito. Sabe, estava doente há muito tempo mas quem acredita nas queixas de uma mulher que mal lhe entra alguém pela porta fica toda contente, como se não tivesse nada? Quem a leva a sério?

Sabe que continua uma mulher muito bonita?
Tive sempre muito cuidado com a imagem. Ontem, fui ao cabeleireiro para vós. E, sabe uma coisa, no outro dia, vi-me na televisão, muito magrinha, uma tábua, mas pela primeira vez achei que aquela imagem não era nada desagradável.