Texto de Ana Sofia Rocha | Fotos: Pedro Correia/Global Imagens
Os aviões a cruzar o pequeno céu de Santa Cruz do Bispo não chegam a abafar as risadas. A canalha corre da casa miniatura para o escorrega. É o que sabe fazer e por ali é coisa séria. A manhã vai a meio, faz sol, pode aproveitar o ar puro. As mães estão a trabalhar. Ou estão na escola ou nas oficinas de arte.
Podia ser o retrato de um dia-a-dia normal não fossem os muros que, camuflados com pinturas infantis, fecham o dito céu. Estamos na prisão. Aqui, os dias vivem-se naquele limbo entre o conforto de ter uma criança por perto e a angústia de ter deixado as outras para trás. É o que mais pesa quando se fala em arrependimento. É não poder ser mãe de todos os filhos. É ter de escolher um para que cumprir a pena seja menos penoso.
É a primeira vez que Carolina está numa prisão por culpa própria. Mas, ri-se, é reincidente. Aos 18 meses entrou na cadeia nos braços da mãe, Agostinha. Viveu os primeiros anos de vida a saltitar entre a liberdade e a reclusão. Como a filha dela, agora. Tudo na vida de Carolina anda a passo acelerado e no rosto carrega alguns golpes do destino. Aos 23 anos, tem três filhos e um rol de histórias para contar. Não se lhe vê tristeza nos olhos apesar de, tão jovem, saber o que é estar condenada a 11 anos de prisão. Passaram já quase dois.
“Não deixem que ela me veja.” Carolina receia que a filha de três anos lhe queira correr para o colo. Sabe que àquela hora não é suposto estarem juntas. Estaria a trabalhar se não estivéssemos à conversa, a espreitar o pátio do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo – Feminino, em Matosinhos, onde Carolina e outras 301 mulheres cumprem pena. Doze delas acompanhadas por filhos.
Hoje, mãe, filha e neta partilham – Agostinha também está ali – alguns dos espaços da Ala 1, a mais calma de todo o “EP”, como todos ali chamam à prisão. Nas Caldas da Rainha ficaram as duas filhas mais velhas. As visitas são esporádicas. São demasiados os quilómetros que as separam.
Carolina consome-se com a falta delas sabendo que pouco falta para ficar sozinha. O sistema legal português permite que as crianças permaneçam nos estabelecimentos prisionais até aos três anos. Excecionalmente, até aos cinco, em nome do bem-estar dos pequenos. Resta a Carolina ano e meio na companhia da menina.
Três gerações. Três histórias
O som dos aviões interrompe pensamentos, deixando no ar a memória do que é a liberdade. Os rostos na sala da creche são diferentes, mas as histórias parecem repetir-se vezes sem conta. Gerações juntas a cumprir pena. O passado é o presente que poderá ser o futuro. É o que liga Carolina a Joana. Ambas têm mãe e filha no EP.
Três gerações. Três histórias. “Foi um choque muito grande quando a vi aqui.” Manuela, mãe de Joana, não queria isto para a filha, mas “as ciganas não têm oportunidade nenhuma”.
Aos 32 anos, Joana – que não se chama assim, mas não quer dar o nome verdadeiro porque “lá na terra” acham que foi trabalhar para o estrangeiro – viveu a segunda gravidez atrás das grades. “Estava de seis meses e meio quando entrei.” Um momento que por tantas mulheres é recordado como o mais bonito da vida foi, para Joana, de desespero. “O dia do nascimento foi muito complicado. Para mim e para o meu marido.” Não que tenha sido maltratada, mas a experiência “foi horrível”.
O pequeno tem agora um ano e quatro meses e acompanhará a mãe até ao fim da pena, daqui a um ano. “Custa-me ter aqui o meu filho, mas é a minha companhia.” E a alegria da avó: Manuela cumpre pena por tráfico de droga.
“Uma criança aqui é meia cadeia passada”
Para a sociedade, o facto de uma criança viver dentro e fora do estabelecimento prisional pode ser visto como egoísmo maternal, explica Carlos Poiares, professor de Psicologia Forense. “Mas a situação não pode ser entendida assim. Interromper o vínculo materno separando a mãe da criança pode ser prejudicial para ambas. Separá-las pode criar frustrações.”
Uma noção bem clara para Maria. “Estarmos juntas ajuda a fortalecer os laços e por isso é que eu a trouxe.” Era nova quando casou pela primeira vez. Divorciou-se, refez a vida, voltou a casar e deixou tudo para trás, mas o crime acabou por apanhá-la. Acusada de cumplicidade por auxiliar o ex-marido numa “cobrança”, foi condenada a seis anos e meio de prisão. Aos 39 anos, cumpre uma pena do passado. Agora, conta com a ajuda da filha no exercício inútil de fazer o tempo voar.
A pequena entra na creche às 9 e sai às 17.30 horas. Pelo meio, juntam-se apenas para almoçar. “Durante o dia estou a trabalhar, mas a partir do momento em que saio venho buscá-la à creche e dedico-me a ela até ir dormir. As horas passam mais rápido. É mais fácil para mim tê-la aqui. É um apoio. Uma criança aqui é meia cadeia passada.”
Ter os filhos ao lado durante o tempo de reclusão ajuda, também, a manter as crianças longe de condições de vida no exterior que nem sempre são as melhores. “O fundamento para a permanência das crianças nos estabelecimentos prisionais prende-se exatamente com a importância que os primeiros anos de vida têm no seu desenvolvimento”, contextualiza Margarida Santos, professora assistente na Escola de Criminologia, na Faculdade de Direito da Universidade do Porto.
Não é o caso de Maria, que considera que tem em casa mais e melhores condições para a filha. Ainda assim, faltaria a figura materna. O marido tem horário de trabalho noturno. A criança teria que ir para o infantário e, à noite, ficar com a avó ou a tia. Prefere tê-la consigo.
Prossegue Margarida Santos: “A reclusão constitui, quase sempre, um desafio à capacidade de desempenhar o papel de mãe, não só devido ao afastamento geográfico, mas também à incapacidade de assumir responsabilidades na vida quotidiana da criança”.
O tráfico de droga suspendeu o percurso de Porfíria Monteiro, 33 anos, pela segunda vez. Foi criada sem mãe e sem pai. Jurou que os filhos nunca passariam pelo mesmo. Para trás, em Águeda, deixou o mais velho, cinco anos e meio, entregue à madrinha.
“A vida lá fora não tem nada a ver com isto. Apesar de a família lhe dar tudo o que ele quer, amor e carinho… uma mãe é uma mãe.” Está arrependida dos crimes que cometeu e o olhar foge-lhe para o chão quando pensa que teve de escolher entre filhos e deixar o mais velho sozinho. Sem mãe. Sem pai. Ambos presos. Exatamente o que ela não queria.
“Há quase sempre uma manutenção da preocupação e uma expectativa de reunificação após a libertação. Esta expectativa, este desejo, pode mesmo consubstanciar uma catapulta para a mudança de comportamento e para a prevenção da reincidência, influenciando a forma como a mulher experiencia esta reclusão”, defende Margarida Santos.
Ter os filhos por perto é um fator amenizador que ajuda a cumprir o tempo de pena e liberta as reclusas de ansiedade. Mas também pode provocar stresse e angústia por obrigar aquelas que têm mais do que uma criança a escolher entre elas.
Na primeira vez que foi presa Porfíria não tinha filhos, nem marido. Nem nada. Tinha 18 anos. “Agora é diferente. Custa-me quando o meu filho me vem visitar e pede para ficar comigo ou então diz: ‘Manda a mana para a rua para eu ficar contigo!’ Ouvir isso dói-me muito.”
Queria ter feito melhor, mas a vida trocou-lhe as voltas e voltou a colocá-la atrás das grades. Sofre mais com as saudades do que com a pena. Essa, ameniza-a com o trabalho, com as atividades, com o convívio com a prima – Carolina – e a tia – Agostinha.
Trabalhar para mandar dinheiro para casa
Há 11 anos no EP, Paula Leão encabeça a direção desde 2016. Passa descontraidamente pelos corredores da Ala 1. Sorri, acena. Atira comentários. O tom é alegre. Às vezes, traçado com ironia. E a cada meia dúzia de metros é abordada por uma reclusa que quer dar-lhe “uma palavrinha”. Conhece bem os contextos daquelas mulheres. Muitas estão ali pela segunda, terceira vez. E espera que nenhuma daquelas crianças ali torne.
Uma prisão feminina é muito diferente de uma prisão de homens. Paula Leão sabe-o bem. Iniciou o percurso pelos estabelecimentos prisionais em Paços de Ferreira. Em Santa Cruz do Bispo, “as senhoras entram com as responsabilidades de lá de fora”. Não deixam de ser mães. Não deixam de ser esposas. Trabalham para mandar dinheiro para casa.
“Muitas têm mais do que um filho e foram obrigadas a escolher um deles para as acompanhar. É também diferente, por exemplo, do Estabelecimento Prisional de Tires, onde o regime permite que as mulheres tenham com elas até duas crianças”, explica a diretora.
Testemunha da dureza de deixar um filho para trás é Isabel do Carmo. Há 41 anos foi presa no pós-Revolução dos Cravos. Levou consigo o filho de oito meses. Do lado de fora ficou a filha mais velha (ver caixa). Os tempos de hoje são outros, mas a dinâmica é semelhante. Para as reclusas, cujo nome é comummente substituído por um número, é muito difícil gerir este cenário.
Tem 30 anos e cinco filhos. Não quer ser fotografada porque lhe faltam os dentes, apesar de Paula Leão lhe ter conseguido uma placa. Não tem o cabelo arranjado. Manuela está detida pela primeira vez. Ainda não tem pena efetiva, está a aguardar julgamento há já um ano e cinco meses.
Na hora de escolher, deixou a mais nova em casa e optou pelo rapaz, que tem agora três anos. “Trouxe este filho comigo porque era o mais velho e sentia mais a minha falta. A outra só tinha nove meses quando fui detida e não sentiu muito. Os meus três filhos mais velhos estão com o pai. A menina está com uma irmã minha porque o pai também está preso.” São filhos de pais diferentes.
As portas fecham-se às 19 horas
As celas do rés-do-chão são apertadas. Cabe a cama da mãe e o berço. Dois armários para a roupa e uma casa de banho sem porta com sanita de metal sem tampa. Num olhar conhecem-se os quatro cantos do quarto. Os carrinhos de bebé ficam à porta.
Poderiam ter uma cela maior, admite a diretora. Mas as que foram originalmente criadas para mães, num canto do terceiro piso, “têm uma cancelinha. Então aí é que parecia que as crianças estavam presas”. Paula Leão nunca colocou lá nenhuma reclusa com filho por ser demasiado perigoso. No rés-do-chão caminham livremente.
“Este não será o espaço indicado para ter uma criança, mas elas têm ótimas condições aqui. Vão duas vezes por semana à piscina, têm duas semanas de praia no verão, vão à Lipor, vão ao cinema.” E, às 19 horas de todos os dias, recolhem-se atrás de uma porta fechada. Até o sol voltar a brilhar.
“Ser mãe aqui custa imenso porque temos os meninos fechados muito tempo. Às vezes, quando nos fecham as portas, querem sair e começam a chorar, mas tem de ser. O espaço é muito pequeno, não dá para eles brincarem lá dentro.” Para lá dos muros, poucos são os que podem ajudar Manuela (a segunda). Não tem ninguém no Porto.
“Andava aqui na escola, mas preferi trabalhar porque não tenho grandes ajudas de fora. A minha família não é de cá e se quero fazer comprinhas para o meu filho tenho de trabalhar. E assim também não ficamos fechadas nas celas toda a tarde.”
Lamenta ter o filho com ela. Pesa-lhe a alma por fazê-lo pagar pelo crime que cometeu. “Mas acontece. Dá-me mais ajuda.”
A cela cheira a lavado
Maria entretém-se na oficina de artes. Desde peças de decoração a bijuteria, é uma especialista. Ajuda-a a passar o tempo e também a ganhar algum dinheiro para poder comprar comida ou até produtos de beleza. Vende as peças a outras reclusas.
Na cela, faz questão de cobrir as paredes do quarto com fotografias de toda a família. Dá-lhe outro ar para disfarçar o facto de estar presa. Tudo é decorado a cor-de-rosa forte, lantejoulas e pedras a imitar diamantes. Decorou as paredes e os móveis com molduras e caixinhas estilo guarda-joias. Cobriu a janela virada para o pátio com uma cortina. Quase parece o quarto de uma princesa, daqueles que aparecem nos contos infantis.
A cela cheira a lavado. Os lençóis da cama estão puxados. Os bonecos da filha estão todos sentados nos cantos da cama. Tudo tem o seu lugar.
É a cela mais asseada de todo o EP, conta a diretora. E Maria orgulha-se disso. Comenta que nem todas são como a dela. Cobiça as fotografias dos filhos mais velhos e do marido. Lamenta ter suspendido a vida daqueles que ficaram lá fora, que nada têm que ver com o que fez no passado. “O meu filho devia ir para a faculdade, mas não vai poder porque eu estou aqui.” O dinheiro não chega.
Para Paula Cristina Martins, professora na Escola de Psicologia da Universidade do Minho, também importa perceber as relações e os laços que as reclusas têm no exterior. “Nas fases mais precoces de uma criança, os passos a ser dados são sempre em torno da mãe. A criança pouco sente as restrições de espaço.”
Ali, as mães têm à disposição todo o tipo de apoio médico. Da saúde física à saúde mental. E as crianças com menos de seis meses não podem estar na creche, “para incutir nas mães algumas responsabilidades parentais”, diz Paula Leão. “Estamos aqui também para isso, para reeducarmos estas mulheres, para que de alguma forma saiam daqui melhores.”
Um desafio de Paula será reeducar uma mulher com oito filhos. Sandra, 41 anos, é a mais calada de todas as que conhecemos. E a que traz consigo o ar mais pesado. Talvez seja tristeza. Talvez a idade que lhe marca o rosto. O desemprego levou-a ao tráfico de droga. “No momento, a pessoa não pensa bem. Depois vem para aqui, vai andando e percebe as consequências do crime.”
Foi detida, ela e o pai dos filhos, em 2017 e teve, já no EP, a oitava filha. “Quando entrei, os meus outros filhos reagiram mal, mas agora…” Perde as palavras. “Custa-me que não tenham os pais. A minha mais velha tem 23 anos e quando vem aqui, vai sempre embora a chorar.”
Sandra distingue-se das outras reclusas por ter encontrado, ali, em Santa Cruz do Bispo, uma segunda família para a filha. A miúda é o contrário da mãe. Alegre, despachada. Todos gostam dela, orgulha-se Sandra. Dois guardas prisionais são padrinhos da menina.
Invisibilidade preocupante
Cada caso é um caso, insiste Carlos Poiares, e deve ser analisado como tal. Ainda assim, acredita que as coisas poderiam ser diferentes para estas reclusas. A justiça podia fazer-se cumprir em prisão domiciliária, com condições melhores, para a mãe e para a criança. De todas as formas, num jogo de ganhos e perdas, será sempre mais vantajoso mantê-las juntas. A separação é um golpe muito grande para ambas.
Às crianças ressalva-se a possibilidade de saírem e entrarem sempre que as mães entenderem. Podem ir passear e voltar ao fim do dia. Podem ir passar o fim de semana, ou até mesmo a semana inteira, com outros membros da família. Sabem o que há para lá dos muros. Mas retornam sempre aos braços das mães para dormir numa cela apertada.
As reclusas têm cinco minutos diários para telefonar para o exterior. O tempo é cronometrado e muitas vezes não chega para falar com todos os filhos. Maria já não fala com o filho mais velho desde que entrou, há praticamente um ano. “Cinco minutos não chegam para falar com toda gente e tenho de optar com quem quero falar.” Quando as crianças estão institucionalizadas, as mães têm uma chamada extra. Tudo é feito para amenizar o peso da pena para as crianças, garante Paula Leão.
Preocupante é a invisibilidade destas crianças aos olhos do sistema, avisa Paula Cristina Martins. “Deveriam ser sinalizadas pela Comissão de Proteção de Menores para assegurar o futuro da criança, quer saia com a mãe ou antes de ela ser libertada.” Porque não deixam de estar presas. Nem as mães. A maternidade ameniza a dor e, ilusoriamente, faz o tempo correr, iluminado pelos risos de crianças. Risos que também partem corações, porque repetem o antes e antecipam o depois.
Carolina é a imagem deste destino que se repete sem piedade. Do tempo em que cumpriu com a mãe, não se lembra. Espera que a filha esqueça também. “Não é uma história que lhe vou contar. Vou dizer-lhe que cometer crimes não compensa, mas não lhe vou contar que esteve aqui dentro.”