Lítio: o medo mora em Trás-os-Montes

Nas entranhas do subsolo de Montalegre e Boticas, há um metal precioso cada vez mais usado nas baterias. Num dos maiores depósitos da Europa, a extração mineira é uma forte possibilidade. As populações batem o pé, atormentadas com o que aí virá: poeiras, contaminação de rios, destruição de baldios. Desígnio nacional ou luta sem fim?

Três mulheres encontram-se numa rua da aldeia de Morgade, em Montalegre, distrito de Vila Real, deitam o olho a uma árvore de cerejas brancas, apanham-nas em cachos às mãos cheias, comem-nas devagar e, com a barragem do Alto Rabagão nas costas, falam do que aí virá. “Não queremos poluição, se não íamos para a cidade”, diz uma.

“Levam a água toda e ficamos sem nada. Como vão ficar as nossas terras? Como vão ficar as nossas águas? É uma tristeza”, atira a outra. E mais uma acha para a fogueira. “Não queremos a mina, vamos lá ver o que acontece. Com 300 metros de fundura, fica tudo sem água. Temos medo, claro que temos medo. Como vão ficar as nossas hortas?”. Não querem nomes, não querem fotos, partilham consumições.

As conversas inflamam quando se fala das minas de lítio, o coração ao pé da boca. “Não vai trazer benefícios. Sempre vivemos sem o lítio, o que é que o lítio nos vai trazer? Antigamente, o Governo não olhava para a aldeia”, comenta Teresa Nóbrega, do lado de dentro do balcão do café, a dois passos da Junta de Freguesia de Morgade. Catarina Peirezo, mãe do recém-nascido Dinis, o mais novo habitante da aldeia, concorda. “Agora é que têm interesse, é que se lembram de nós, e isto vai afetar a natureza, o oxigénio, o futuro.”

Lá em cima, num triângulo da paisagem, encaixado nas aldeias de Morgade, Carvalhais e Rebordelo, património agrícola mundial, estatuto atribuído pela FAO, agência das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, estão montinhos de cimento no chão com círculos metálicos com letras e números gravados. Debaixo do solo está um dos maiores depósitos de lítio da Europa, estimam-se 30 milhões de toneladas, e as protuberâncias de betão indicam os locais de prospeção do cobiçado metal das baterias do futuro – dos smartphones, computadores, carros elétricos -, usado no fabrico de eletrodomésticos, na cerâmica e na medicina – em medicamentos como antidepressivos.

Mas Morgade não quer que lhe arranquem o lítio das entranhas. No muro de pedra da junta de freguesia, está uma faixa que diz “Não à mina, sim à vida”, letras a preto, letras a vermelho. Na vedação de um campo sintético de futebol, mais uma tarja: “Não à exploração mineira ‘sim à vida'”. Há mais cartazes espalhados pela aldeia de fontes de água fresca, tanques públicos e forno comunitário.

A associação “Montalegre com Vida” desdobra-se em ações de sensibilização, protestos na sede do concelho, participações em encontros dedicados ao ambiente. Vítor Santos, engenheiro eletrotécnico, técnico de manutenção das eólicas da região, nascido e criado na aldeia, agricultor no tempo que lhe sobra, não tem dúvidas do impacto da mina. “Um buraco com 350 metros de profundidade terá impacto nos recursos hídricos, contaminará grande parte dos regadios. Teremos escombreiras à porta de casa, camiões 24 horas por dia, 365 dias por ano, teremos pó. E não há justificação para isto.”

“Um buraco com 350 metros de profundidade terá impacto nos recursos hídricos, contaminará grande parte dos regadios.
Vítor Santos
engenheiro eletrotécnico

Faz parte da associação e está na luta. Hoje, dia 21 de julho, organiza-se uma caminhada pelos montes a partir das 9.30 horas, almoço no final. “Na fase de prospeção secaram três nascentes”, constata Vítor Santos, que anda preocupado com o futuro do filho Vicente, de ano e meio. “Não quero que o meu filho herde um buraco e águas contaminadas.”

A paisagem de Covas do Barroso depois dos “buracos” feitos no solo à procura de lítio

O contrato de exploração dos depósitos minerais de lítio em Montalegre está assinado. Fala-se num investimento de perto de 500 milhões de euros, na criação de cerca 500 postos de trabalho. O estudo de impacto ambiental está a ser feito, deverá ser apresentado no final do ano, ficará em consulta pública. A concessionária Lusorecursos considera que é prematuro falar do assunto antes do estudo de impacto ambiental, se será em túnel ou a céu aberto. Em todo o caso, tem duas minas de referência, uma no Canadá, outra na Finlândia, e não está nos seus planos construir uma aldeia mineira, nem usar explosivos.

“Qual a câmara do interior que rejeita um investimento de milhões?”, questiona, com alguma ironia, Domingos Pinto, presidente do conselho diretivo dos baldios de Morgade. O problema é tudo o resto, o que vai acontecer aos 190 hectares de baldios, aos 80% dos habitantes que vivem da agricultura, aos 78 compartes. “Como podemos ser a favor?”, repara Domingos Pinto, que não quer deixar a aldeia, não quer que as terras sejam remexidas.

Armando Pinto, porta-voz da “Montalegre com Vida”, adianta que 60% da freguesia está concessionada à exploração mineira. “Como vamos conseguir viver com uma mina aqui? Com uma mina com diâmetro de 800 metros, 350 de profundidade, vamos deixar de ter aquelas florestas, vamos ficar sem baldios, sem pastagens para o gado, a agricultura vai desaparecer.”

O responsável, professor de Educação Física, teme escorrências com uma barragem perto, com o que poderá tornar-se um problema de saúde pública. Teresa Dias, professora, também faz parte da associação e comenta que ali ninguém é perito em minas, mas entender o que é uma mina a céu aberto não é assim tão complicado. “Não somos contra só porque somos contra. Não precisamos de um estudo credenciado para perceber como as aldeias vão ficar com a mina. Estamos a defender a nossa terra. Aqui há vida. O que será destas populações que vivem aqui? O que vai ser feito do entulho que vão retirar, onde o vão colocar?”.

Nas eleições europeias de maio, votaram apenas quatro pessoas em Morgade, entre cerca de 200 eleitores. A associação pediu abstenção como sinal de protesto pela mina de lítio. O cenário poderá repetir-se nas legislativas de outubro. “A população está apreensiva e está contra a exploração. Estamos a falar de uma exploração com uma dimensão completamente desproporcionada em relação à área e ao sítio em questão”, vinca José Nogueira, presidente da Junta de Morgade.

“A mina irá obrigatoriamente ter repercussões no bem-estar, na saúde pública e nos lençóis freáticos”
José Nogueira
presidente da Junta de Morgade

“A mina irá obrigatoriamente ter repercussões no bem-estar, na saúde pública e nos lençóis freáticos”, sublinha o autarca, que teme a contaminação da água e que alerta para os ares que costumam dar o ar da sua graça. “Os ventos vão levantar poeiras e micropartículas que têm os seus efeitos.” Há medo? “As pessoas têm receio por tudo o que possa acontecer”, responde.

A faixa da Junta de Freguesia de Morgade resume o sentimento do povo da aldeia. Nas últimas eleições europeias, votaram quatro pessoas, depois de vários protestos contra a instalação da mina. Nas legislativas de outubro, o cenário poderá repetir-se

José Carlos Castro, responsável pelos baldios da aldeia de Carvalhais, é um rosto desse medo. “Apreensivo é pouco, estou assustado. Vão destruir tudo, o impacto é impressionante, as aldeias ficam sem condições de existência. Toda a gente está preocupada porque vai afetar a nossa forma de ser, a nossa forma de estar.” A esperança, garante, é a última a morrer. “É uma luta entre David e Golias, não é fácil não.”

Peladas castanhas no verde da paisagem

A meia hora de Morgade, a andar bem, mais a sul, fica Covas do Barroso. À entrada da aldeia, a cerca de 20 minutos de Boticas, sede do concelho, também património agrícola mundial, está uma faixa pendurada no alto, à largura da estrada, com uma vontade estampada: “Não à mina sim à vida”. Mais adiante, a prospeção de lítio deixou marcas na paisagem, peladas castanhas no verde das serras, plataformas de terra batida. O povo da aldeia, com cerca de 180 habitantes, não se conforma e a Associação Unidos em Defesa de Covas do Barroso nasceu para contestar a exploração do minério.

Nelson Gomes, agricultor, vai no trator para o campo apanhar feno. É o presidente da associação que escreveu ao ministro do Ambiente e Transição Energética, Matos Fernandes, a dar conta do descontentamento, da prospeção feita “de forma agressiva, extensiva e a um ritmo acelerado com mais de 300 furos e 30 mil metros de perfurações que implicaram a decapagem de mata e terrenos agrícolas em grande parte dos mais de 500 hectares”.

Nelson Gomes fala em montes desmatados e dragagem de estradas, garante que 23% da aldeia está concessionada às minas, lamenta que a população não tenha sido ouvida. “A mina é um buraco a céu aberto. Vivemos neste sossego e tudo o que vai trazer são barulhos, poeiras e a destruição da paisagem”, assinala. A mulher, Aida Fernandes, também não se convence. Olha para os vales onde há tempos andaram máquinas a furar o solo, abre um mapa com os planos para aquele pedaço de terra, diz que a área concessionada entra em Romainho, não se conforma com o destino que querem dar aos baldios, desabafa que a “situação é grave” com minas ao pé da porta, alterações no relevo do solo, tratamento e lavagem do minério que poderão contaminar o rio Covas.

“O que está em causa é a anexação de 25% do nosso baldio, quatro minas à nossa porta a trabalhar 24 horas por dia com toda a transformação do produto no local, com lavaria e um rio a poucos metros.” Aida Fernandes é agricultora, trata do gado, anda com as vacas pelos lameiros. “Aqui é o epicentro do furacão”, indica com os olhos nos rasgos feitos nos vales. “Não podemos baixar os braços, a esperança é a última a morrer, e a guerra faz-se de batalhas.”

Paulo Jorge anda a pastar as ovelhas pelos montes antes que o sol do meio-dia estale. As minas de lítio ocupam-lhe os pensamentos, anda apreensivo. “O que aí vem estraga a natureza, o ar puro, os rios, o silêncio, desvia as águas.” O que vai ouvindo não o anima. “Parece que vão fazer muito fundo. Fui criado toda a vida com este sossego, não modifiquem o que está bem.”

Lúcia Mó, presidente da Junta de Freguesia de Covas do Barroso, entende os receios da sua gente e mandou parar as prospeções nos terrenos da autarquia quando um pedido para “uns buraquinhos” se transformou em 36 plataformas. “Quem percebe e consegue entender o alcance do projeto pergunta se terá de sair daqui, se pode continuar cá. Há medo, sim.”

A autarca é contra a exploração mineira. “Queremos o nosso espaço tal e qual ele é, pomos a boca num rego e bebemos água, e não é o dinheiro, as contrapartidas, que nos vão fazer felizes, não colmatarão o nosso bem-estar. As minas destroem a fauna, trazem poluição, barulho, contaminam as águas.”

As prospeções realizadas em Morgade estão registadas em pequenos montes de betão

A Savannah Resources, que tratou da prospeção de lítio em Covas do Barroso, está a fazer o estudo de impacto ambiental e já anunciou os seus planos. Uma exploração mineira para aproveitamento de minerais de lítio para a indústria de baterias elétricas, respeito pelas práticas ambientais, 300 postos de trabalho diretos, mais de 500 milhões de euros de investimento.

David Archer, presidente executivo, apontou o próximo ano para o início da exploração com uma unidade industrial em funcionamento e revelou que o que existe no subsolo da aldeia dará para produzir baterias para entre 250 a 500 mil carros por ano. “Todas as questões ambientais estão a ser analisadas, identificando potenciais riscos e medidas de mitigação”, garantiu à Lusa.

Entre o coração e a razão

O Governo está interessado na extração de lítio, em criar um cluster de transformação, da origem ao produto final, e demarcou 12 locais de mineração. João Galamba, secretário de Estado da Energia, tem-se multiplicado em explicações e tem sido claro. O lítio é um investimento estratégico para o país que quer posicionar-se na área da transição energética. É um desígnio nacional.

O discurso de Orlando Alves, presidente da Câmara de Montalegre, oscila entre o coração e a razão. “As preocupações da população são naturais e legítimas. O que se perspetiva, à primeira vista, é algo absolutamente assustador. Mas isso é estar a trabalhar com o coração e avaliar a situação partindo de notícias e de imagens que são veiculadas pelas televisões – imagens de outros trópicos, de outros continentes. Não acredito que seja isso que se perspetiva.”

O autarca destaca o lado da razão, da ciência, o investimento, a criação de riqueza, os postos de trabalho, a fixação de pessoas. “Uma mina a céu aberto não terá impacto a nível de saúde, poderá ter impacto paisagístico e ambiental”, admite e lembra a exploração de volfrâmio e de estanho nas minas da Borralha, em Montalegre, ainda no seu tempo. “Era uma espécie de Nova Iorque dos pequeninos, com uma vida vibrante, um território que nunca dormia”, recorda.

Orlando Alves tem dificuldade em escolher um lado, mas avisa que uma eventual impugnação ou providência cautelar poderá ter custos que a Câmara não tem meios para suportar, caso haja pedido de indemnização, e realça que uma sociedade dependente das novas tecnologias, dos telemóveis e dos carros, tem de consumir produtos que vêm de dentro da terra. “A população age com o coração, com emoção. Temos de pôr alguma racionalidade na abordagem, que é o que se exige aos autarcas.”

Em Boticas, a posição é só uma. Fernando Queiroga, presidente da Câmara local, é contra a exploração de lítio, não tem dúvidas dos impactos que o negócio do novo minério trará para o concelho. “Não estão salvaguardadas as questões ambientais e de saúde. Na forma de extração de lítio, é preciso esmagar uma tonelada de pedra para conseguir um quilo, e esse pó fica”, refere e ainda acrescenta que o rio Covas desaparecerá. O autarca não perde de vista três fatores: a saúde pública, o impacto ambiental, as contrapartidas financeiras.

“Este território não pode ser constantemente prejudicado e o povo não é ressarcido.” Boticas será compensado pela redução da pegada de carbono? É a pergunta que faz. E se há tanta inovação tecnológica, porquê uma mina a céu aberto? Fernando Queiroga fala numa “situação cinzenta”, informações que não chegam, contactos que não são feitos. A Câmara não foi consultada para o alargamento da área de prospeção de 70 para perto de 600 hectares, depois da licença de exploração de quartzo e feldspato em 2004. “E por obra do espírito santo aparece também o lítio”, atira.

“Tem de haver diálogo e informação”

O lítio é um elemento químico, um metal alcalino que alimenta as baterias do futuro. Chamam-lhe ouro branco, o novo petróleo. “É um elemento que está na moda porque a tecnologia precisa dele”, considera Fernando Noronha, professor e investigador da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, doutorado em Geologia, responsável por levantamentos geológicos feitos em Montalegre. Tece algumas observações pelo que sabe, pelo que vê.

Morgade e Covas do Barroso não podem ser metidos no mesmo saco porque os minerais e os métodos de exploração, se a extração avançar, são diferentes, continua a haver “pouca informação e muita desinformação”, não se deve meter o carro à frente dos bois. É preciso esperar pelo estudo de impacto ambiental para perceber o que há em concreto e o que se pretende fazer, e se vai haver exploração.

Nelson Gomes, agricultor, está à frente da associação que em Covas do Barroso, Boticas, contesta a exploração mineira

“Quando uma pessoa não está suficientemente informada tem sempre receios.” O lítio, esclarece, não é venenoso, não é tóxico, e uma mina tem sempre impacto, como quando se faz uma cova no jardim de casa. O importante, em seu entender, se a extração avançar, “é minimizar todos os impactos.” “Tem de haver diálogo e informação e é isso que falta atualmente”, conclui.

Ana Maria Antão, professora do Instituto Politécnico da Guarda, licenciada em Geologia, mestre em Engenharia Civil com especialização em mecânica dos solos e rochas, doutorada em Engenharia Geológica, é a favor do tratamento do minério para produção do lítio, defende que as empresas devem explicar as suas pretensões sem uma linguagem demasiado técnica, e que as populações devem exigir o cumprimento da legislação ambiental “bastante apertada” para as explorações mineiras. Em seu entender, o tempo do lítio é agora e deve ser aproveitado.

“Vejo uma oportunidade agora, não daqui a 50 anos, do ponto de vista energético. É uma mais-valia para a região que pode lucrar muito e de maneira diferente das barragens.” Nesta exploração, sustenta, “Portugal teria todo o interesse em ficar com grande parte da cadeia de valor” e a população deve exigir contrapartidas para o território. “Dizer que o lítio é tóxico é tão aberrante que isso nem se pode descrever em termos científicos”, assegura, acrescentando que o modus operandi e os impactos não são diferentes dos das pedreiras que existem na região transmontana.

O minério, que pode ser o novo petróleo nacional, está debaixo de fogo. A Quercus – Associação Nacional de Conservação da Natureza afirma que há uma “corrida ao lítio em Portugal e que 10,1% do território nacional está sob ameaça” de projetos de mineração.

Recomenda precaução ao Governo e atenção para os interesses ambientais e para as populações atingidas. Em Morgade e Covas do Barroso, as faixas estão firmes, o povo tem as mangas arregaçadas, a luta continua. O tiro de partida está dado.