Rui Cardoso Martins

Ler e esquecer

Ilustração: João Vasco Correia

Quem somos nós quando, como diz o povo, não estamos em nós, ou ele não estava nele, ou eu não estava em mim? Lucas veio no seu fato de treino barato do Hospital Prisão de Caxias, tiraram-lhe as algemas e pediram-lhe para resumir a vida. Nasceu em Lisboa em 1975 (ano quente), é filho de pai incógnito e há um filho de 22 anos distante como outro planeta:

– Tem contactos com o seu filho?

– Não.

Antes de ser preso, com quem contactava regularmente (em termos por assim dizer familiares) eram traficantes de rua. Nos últimos 20 anos, tinha sido assim. Lucas é daqueles homens-rapazes, de pele negra e lisa, magro e elegante, que deve envelhecer de súbito no dia em que decidir: agora sou velho. Mas dentro do seu corpo uma panela ferve, perde vapor há décadas.

– Consome o quê, cocaína e heroína?

– Ultimamente era cocaína. Fiz um tratamento em 2009. Depois tive uma recaída em 2015. Em 2016, fui outra vez para uma comunidade, mas desisti.

Ainda fez faxina de rua, mas voltou ao seu círculo de giz negro, cercado como um peru, parado na droga. Até à noite em que assinou a confissão na esquadra de polícia. Apanharam-no numa rusga, quando inalava por uma nota de banco. Depois do interrogatório, denunciou o traficante que acabara de lhe vender cocaína. Os polícias que o prenderam foram para casa felizes. Mais tarde, em julgamento, a testemunha do crime de tráfico Lucas desmentiu tudo, não conhecia o homem. Foi acusado de falso depoimento, de perjúrio. Agora aqui estava ele no banco dos réus, meses depois, desalgemado e muito certo da sua desmemória. Agora entrávamos na matéria de facto:

– Não quero falar sobre isso. A única pessoa que eu conheço nesse processo é o Chico, que também é consumidor como eu.

– Diz aqui, o juiz, que o senhor comprou cocaína ao M. Djaló através do senhor Mário, conhecido como Chico.

– Eu disse à meritíssima que encontrei o Chico na rua, que tinha a branca, e que a consumimos os dois juntos.

– Só sabe que é através dele, do Chico…

– Sim.

– Quanto àquilo que assinou nos autos, diz que assinou sem ler, é isso? Mas o senhor sabe da advertência que lhe foi feita, que tinha que falar verdade. Portanto, assinou sem ler.

– Sim, sim.

– Só sabe que o Chico o levou àquela pessoa e consumiram os dois.

– Sim, sim.

Deu-se uma pausa na verdade para ouvir a mentira, ou vice-versa.

– E o senhor com a alcunha Tupac? Era o senhor Djaló? Quando disse em inquérito que já tinha comprado a esta pessoa cerca de 50 vezes, falava de quem?

– Possivelmente, poderia ter dito que já consumi 50 vezes com o Chico.

Pouco depois, o advogado de Lucas veio ajudá-lo:

– Tinha a consciência do que estava a declarar?

– Não.

– Então diga a razão para assinar.

– Estava sob o efeito de estupefacientes… ou estava perdido.

– O senhor foi levado para a esquadra logo após os outros terem sido detidos na rua e foi inquirido logo depois?

– Sim, sim.

A procuradora pediu condenação por “falsidade de testemunho”. As “letras da declaração são grandes e fáceis de ler”. Foi uma tentativa “algo comum” de ilibar o traficante. Pena de prisão, “eventualmente suspensa”.

O advogado de Lucas: “Certamente que a inquirição é tomada nesse sentido, o de assinar rapidamente.”

– Ele nem sequer caiu em contradição. Em sede de julgamento, nem sequer nega que conhece Chico, diz que conhece Chico como alguém que é consumidor como ele. Na altura, agiu sem consciência do que estava a declarar, porque estava sob o efeito de estupefacientes. Os agentes da PSP deveriam identificar a testemunha e, em sede de inquérito, interrogá-la. Não em sede de detenção. Se a testemunha estivesse acompanhada por advogado, isto não teria acontecido.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)