Joel e Catarina. Um casal no campo, uma peça de teatro

Texto de Sara Dias Oliveira | Fotos: António Araújo/Global Imagens

Às três da tarde do domingo anterior, o escritor andava a cortar os abrigos do seu jardim que, teimosos como são, faziam sombra e impediam a relva de espevitar e a magnólia de crescer à sua vontade. Tinha três horas de luz para a empreitada. Estava em casa, no campo, no lugar dos Dois Caminhos, freguesia de Terra Chã, na Terceira, Açores.

“Saltei para cima das faias da terra e podei-as. Esqueço-me que devia usar luvas e, portanto, fico com mãos de lavrador”, conta Joel Neto, escritor e jornalista, ao mostrar as marcas dos rasgos das mãos na sala de estar de um hotel na Póvoa de Varzim.

Joel é um dos escritores convidados do festival literário Corrente d’Escritas e, volta e meia, a nossa conversa é interrompida com luminosas saudações e simpáticos sorrisos e reencontros. No dia seguinte, estará no Cineteatro Almeida Garrett a defender as histórias.

“Eu acredito no poder das histórias, acredito que as histórias são redentoras e que têm um segredo. O papel do escritor é perceber o segredo dessas histórias. É das histórias que eu parto, não necessariamente das narrativas. Às vezes, trata-se de um cheiro, de uma imagem, de um objetivo, de uma rotina, de uma pessoa, de uma emoção.”

À noite encontrar-se-á com o elenco da peça que escreveu e que estreia na próxima quinta-feira, dia 21, na Casa das Artes de Famalicão. Os atores António Durães e Filipa Guedes e o jornalista e radialista Fernando Alves estarão em cima do palco. Esta é mais uma aventura do autor de “Arquipélago” e “Meridiano 28”.

“Eu acredito no poder das histórias, acredito que as histórias são redentoras e que têm um segredo. O papel do escritor é perceber o segredo dessas histórias.” (Joel Neto, escritor e jornalista)

A primeira obra de teatro de Joel Neto nasce nos Açores que o viram nascer, que o viram partir, e que o receberam de braços abertos. Em 2012, deixou Lisboa e voltou aos Açores. Comprou a casa do avô, a primeira grande figura da sua vida com todas as derivas geográficas e o recomeço de uma vida depois do terramoto de 1980, e mudou-se da cidade para o campo com Catarina Ferreira de Almeida, sua mulher.

Escreve livros, colabora com vários jornais do continente, planta hortícolas de diversas espécies, vai ao ginásio na orla da cidade, faz step com as raparigas, musculação com os rapazes, natação com os velhotes. Nunca deixou de gostar do inverno e da chuva dos Açores.

Terra Chã tem cerca de três mil habitantes. Terra outrora rica quando exportava citrinos e castanha para a coroa britânica no século XIX. Entretanto as pragas dizimaram os pomares, o chão empobreceu, a terra abanou em 1980 e depois do terramoto recebeu o maior bairro social da ilha.

Terceira é ilha de festa, com cerca de 50 mil habitantes, mais de 20 filarmónicas ativas com 300 elementos cada e à volta de 60 grupos de teatro amador. É aqui que tudo acontece e “A Vida no Campo”, o livro orgânico que se fez de registos de um diário e da coleção de crónicas publicadas no DN, tornou-se o gatilho para a peça com o mesmo nome da obra literária.

Escrita a quatro mãos, homem e mulher, na mesma casa em escritórios separados. É uma adaptação livre do livro, a história de uma crise conjugal, a vida urbana e a vida rural, um mundo feito de palavras que ora aproximam ora afastam duas pessoas. Uma peça sobre relações, casamentos, crises, construções. O desafio partiu da Narrativensaio. Joel disse logo que sim, apesar de nunca ter escrito para teatro.

“Francamente, não sabia como fazê-lo. Era uma linguagem pela qual me interessava como espectador, pela qual me interessava como criador, do ponto de vista de soluções narrativas, soluções cénicas, nomeadamente na utilização dos diálogos”, recorda. Demorou algum tempo a começar e levou Catarina consigo. A sua mulher Catarina, lisboeta de gema, com curso de Português/Inglês, tradutora. Não tem carta de condução, vai à cidade e ao ginásio de autocarro com as velhotas e velhotes que vão para o centro de saúde.

É também a sua estreia a escrever para teatro e arrepiou-se quando terminou a escrita dessa história construída do zero. “É uma coisa completamente em bruto, não havia memória para trás. Há outros casais que se vão identificar, que vão encontrar as suas fraquezas, os seus fantasmas, as suas culpas”, adianta Catarina que, neste momento, está a escrever o seu primeiro romance depois de ganhar uma das bolsas atribuídas pela DGLAB – Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas. No campo, na ilha.

Antes do desafio, houve um encontro num programa de rádio. Joel Neto falava de literatura e do seu “Arquipélago”, e Luísa Pinto, da Narrativensaio, encenadora e professora de teatro. Luísa ficou fascinada com a forma apaixonada com que o escritor falava da sua obra. No final, Joel ofereceu-lhe o livro e Luísa decidiu que tinha de levar as palavras carregadas de imagens para cima do palco.

Com “A Vida no Campo”, a certeza foi reforçada e reuniram-se as possibilidades para que essa vontade acontecesse. “O Joel escreve sobre a vivência humana de uma forma simples e profunda. Escreve sobre os cheiros da rua, tradições, hábitos. Tem esse lado romântico de escritor que escreve sobre coisas tão simples como o tempo que demoramos a observar”, diz a encenadora que foi encontrando respostas para as suas perguntas.

Como pôr em cena o silêncio e o verde das ilhas? Como preservar essas memórias visuais e olfativas? Como dar cor a essa valorização do território? “A Vida no Campo” está pronta a subir ao palco, com planos e quadros, como se de um filme se tratasse. “É um texto muito humano, muito sensível, muito bonito. É um texto que fala do amor”, realça a encenadora.

A vertigem de mudar o mundo

Um livro, uma peça de teatro, uma história de cumplicidade. Na arte e na vida. “Os Açores, ao contrário do que parece, não são uma terra pequena, são uma terra enorme. Se encararmos o mar como aquilo que nos une e não como aquilo que nos separa, são uma terra com um horizonte infinito, sem qualquer tipo de sensação de clausura. Há uma liberdade intelectual enorme”, garante o escritor.

Um outro ritmo, um outro ar, um outro tempo, e uma vida mais barata. “Com muito menos apelo ao consumo, com muito menos distância, com muito menos urgência de encontrar válvulas de escape para o stresse avassalador – e essas válvulas de escape custam muito caro nas grandes cidades.”

Joel queria voltar às ilhas e fazer o diagnóstico diferencial entre as ilhas que tinha na memória e as ilhas contemporâneas. Foi o que fez. Catarina precisou de imaginar a sua casa metida num contentor, malas feitas, a travessia pelo Atlântico. Não foi uma decisão de impulso. “Percebi que estava preparada para essa mudança e a decisão acabou por partir de mim.”

Havia muita expectativa. O plano era ficar quatro, cinco anos, passaram-se sete. Sete anos e várias fases. A fase do deslumbramento absoluto no primeiro ano. Uma certa deceção no segundo por não conseguirem estar em todo o lado na ilha, de corresponder à curiosidade e hospitalidade. “Depois passámos pela fase da reconciliação, depois pela fase da ternura absoluta, depois pela fase da dúvida sobre se viríamos embora ou não, e agora estamos na fase em que não estamos na Terceira, somos da Terceira, de alguma maneira”, vinca o escritor.

Catarina fala numa fase de maturidade na relação com a ilha. “Adoro viver numa casa com jardim e próxima da natureza. Pode ser um cliché, mas, para mim, é tranquilidade.” “A ilha, apesar de pequena, concentra muitas paisagens diferentes que em Lisboa só poderia alcançar se percorresse grandes distâncias. Em cinco minutos, estou na praia, na serra ou numa cidade. Usufruímos de coisas que custam o dobro do tempo, do esforço e do dinheiro em Lisboa”, acrescenta. Joel Neto fala de amor. “Somos felizes. Temos um jardim, temos cães, temos um pomar, as nossas carreiras profissionais não abrandaram, pelo contrário, aceleraram.” E aquele mundo cosmopolita não faz assim tanta falta.

Lisboa tem sempre o seu lugar. Joel de Lisboa, da vida burguesa dos restaurantes, dos teatros, dos cinemas, dos jogos de golfe. O regresso é sempre emotivo, comovido nos passeios pelo Chiado e pelo Bairro Alto. Uma relação sempre tensa. Catarina de Lisboa que se vai fazendo de momentos que têm a sua importância. “Sinto que já pertenço aos Açores. A adaptação a uma ilha é sempre uma memória que tenta sobrepor-se às outras. Mas não quero que o resto caia no esquecimento.”

Este ano será intenso. Joel começou 2019 a publicar o conto “Só Tinha Saudades de Contar uma História”, em maio lança o segundo volume de “A Vida no Campo” com o subtítulo “Os Anos da Maturidade”. Tem vários projetos jornalísticos, ou nas franjas do jornalismo, como o livro “Muito Mais do que Saudade” sobre a diáspora açoriana e portuguesa.

Na segunda metade do ano, apresenta um livro sobre a base das Lajes, “sobre essa longa história de amor entre Portugal e os Estados Unidos”. E continua a trabalhar numa reportagem vivida/ficção jornalística sobre os Açores contemporâneos, em que, conta, tentará “dar conta dos desastrosos índices de desenvolvimento humano que infelizmente temos nos Açores.”

Este ano ainda, no programa turístico “Viagens com Autores” da Pinto Lopes Viagens, em julho e setembro, acompanhará curiosos pelos seus Açores. “Serei uma espécie de conferencista residente.” Mostrará as ilhas pelos lugares dos seus livros e sob o ponto de vista de outros autores açorianos. Haverá passeios, literatura, gastronomia, paisagens deslumbrantes e até dança. E juntos, Joel e Catarina, mantêm o projeto As Palavras do Regresso, um blogue, um livro centrado em regressos, com os Açores em pano de fundo, um documentário. Sempre com uma certeza. “Nada me interessa se não for íntimo”, diz Joel.

Por todas as voltas que dê, há aquele contentamento e perceção de quem está a caminho dos 20 anos de carreira literária. “Continuo a viver a vertigem de mudar o Mundo, ainda quero mudar o Mundo, e continuo a fazer planos. Se eu consegui perceber alguma coisa sobre a vida foi só isto: é preciso fazer planos até ao último dia e tudo o mais, neste momento, parece-me secundário.” Seja no campo, seja na cidade.