i3S: o dia a dia do instituto que vira o cancro do avesso

Oito investigadores, sete mulheres e um homem, reúnem-se no início da semana para partilhar o que cada um anda a fazer nos seus projetos de investigação à volta do cancro da mama. Computadores, gráficos, testes, resultados, experiências com sondas e com ratos, um artigo para submeter a uma revista internacional, uma intervenção para preparar. A conversa ocupa a manhã, discutem-se métodos e caminhos, é melhor fazer assim, insistir aqui e ali, investigue-se o silenciamento de células, isolem-se vesículas, continue-se a usar o metabolismo das moléculas tumorais.

A chuva não pára de cair e, para lá desta sala, há centenas de investigadores debruçados nas suas áreas de estudo. É mais uma semana que começa no i3S – Instituto de Investigação e Inovação em Saúde, o maior instituto nacional de investigação em ciências da saúde, um dos maiores da Europa, que resulta da união de três dos mais conceituados centros científicos do Porto: Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (IPATIMUP), Instituto de Biologia Molecular e Celular (IBMC), e Instituto de Engenharia Biomédica (INEB).

São cinco pisos, um à superfície do solo, dois para cima, dois para baixo. Laboratórios, bancadas de trabalho, estantes com livros, fotos de família e de amigos, e toda uma parafernália de equipamentos e tecnologia de ponta. O edifício de betão por dentro e por fora, de 18 mil metros quadrados, construído de raiz no polo universitário da Asprela, é um super-laboratório que junta debaixo do mesmo teto massa crítica, ideias, sinergias, parcerias. As portas não se fecham à chave, a tecnologia está à disposição de quem precisa.

Conversa-se nos corredores, a cantina enche-se à hora de almoço, os auditórios Mariano Gago e Corino de Andrade são para ocasiões especiais, a biblioteca é um luminoso espaço de trabalho com revistas científicas e poucos livros. Os cartões de acesso aos laboratórios andam presos num colar ao pescoço dos cientistas, estudantes de mestrado e doutoramento, investigadores. São 1 399 colaboradores, 533 investigadores doutorados, 67 grupos de investigação, 28 nacionalidades ali dentro. O conhecimento faz-se dessa massa uniforme à primeira vista, mas tão particular e única. Foram três dias nos bastidores do i3S. E a chuva não parou de cair.

O biotério fica no piso -2. O acesso é restrito, apertadas normas de segurança para as salas de experimentação com ratos e ratinhos. Sofia Lamas, veterinária, explica que os animais são monitorizados pelos investigadores. Estão livres de parasitas, bactérias, vírus, geneticamente modificados, à disposição da ciência no estudo de cancros, infeções, doenças de ossos, tantas outras complicações de saúde. Teresa Summavielle, neurocientista, lidera um grupo de investigação em biologia de adição, observa o comportamento de ratos em testes de cognição, aprendizagem, memória, faz experiências sobre o uso de drogas de forma continuada, testa se determinado fármaco é eficaz. “Só com evidências suficientes passamos para o modelo animal”, adianta.

Há mais salas, mais experiências. Mónica Sá, aluna de doutoramento, anda a tentar perceber o que o parasita da malária faz antes de chegar ao fígado e, nesse sentido, anda a seguir ratinhos para monitorizar a infeção. Há outros testes em ratos como, por exemplo, o que acontece à mobilidade depois de uma lesão medular. O biotério do i3S é o único no país com o selo de qualidade da AAALAC, que avalia e acredita internacionalmente os laboratórios que usam modelos animais.

Anna Olsson, investigadora e especialista em bem-estar animal, garante que as experiências cumprem escrupulosamente o que está estipulado para que os animais não sofram, não tenham dor. “Antes de a experiência começar, é feita a avaliação do uso de animais. Recebemos o pedido, o plano detalhado do projeto, qual o objetivo científico, que tipo e número de animais são necessários, o que se vai fazer com eles e qual o impacto.” Tudo analisado ao pormenor.

Ratos, moscas, peixes, embriões de galinha

A sala de trabalho da bioquímica Marta Teixeira Pinto tem ovos à disposição da ciência. Os embriões de galinha são um modelo sem restrições éticas, mais barato do que os ratos, com tempos de experimentação mais curtos. “É um modelo mais simples e mais atrativo”, refere. Os ovos estão guardados a 38º C. Ao terceiro dia, abre-se uma janela retangular no ovo, com uma semana injetam-se as células no embrião para ver um tumor crescer, mais três dias e veem-se vasos novos.

“Inoculamos as células e deixamos crescer o tumor.” A estrutura do tumor do embrião da galinha assemelha-se à estrutura do tumor humano e quem se debruça em cancro, em regeneração de tecido e biocompatibilidade de materiais, tem um modelo vivo para analisar. É um modelo in vivo que permite refinar tamanhos, não geneticamente modificado, e os indicadores estatísticos são “muito bons”. “Faço um desenho experimental diferente para cada pergunta para definir as condições experimentais e otimizar os ensaios.”

O zebrário fica no mesmo piso do biotério. Uma sala com milhares de peixes-zebra, 25, não mais, em aquários de três litros. São pequenos, não passam dos cinco centímetros, crescem depressa, aos três meses são adultos, por dentro são parecidos com os humanos, e são requisitados para experiências diversas, como diabetes ou cancro pancreático. Os embriões são manipulados, injeta-se o que se pretende. “Há alterações que nos indicam que o doente vai ter a doença”, revela Joana Marques, bióloga.

No laboratório do bioquímico Eurico Sá, trabalha-se com moscas. Os investigadores tentam perceber os mecanismos básicos das células, como se dividem, como se interligam, e as moscas da fruta são como um avatar que se disponibiliza para o estudo do cancro, doenças neurodegenerativas, entre outras. “É um organismo que permite perceber processos funcionais, um modelo muito barato, e não há restrições éticas.” A hereditariedade é rápida, ao décimo dia passa-se para a geração seguinte, induzem-se alterações, aplica-se um tratamento para ver como funciona.

Cristina Barrias, bioengenheira, anda à volta de modelos in vitro 3D, alternativas ao modelo animal. Esferoides, organoides, células dentro de um hidrogel. Com ferramentas de bioengenharia e engenharia de tecidos é possível ter diferentes tipos de modelos 3D com células humanas “que se organizam em estruturas que mimetizam tecidos humanos”. “Os modelos 3D são fisiologicamente mais relevantes do que os 2D, fazendo a ponte entre o modelo clássico e o modelo in vivo, melhoram a qualidade dos testes in vitro, substituindo parcial ou totalmente os modelos animais”, salienta a investigadora.

Doenças raras, cancros hereditários, biópsias

Antecipar o que interfere na saúde é um trabalho diário. Não há salas fechadas, nem hipóteses arrumadas definitivamente. O orçamento anda pelos 20/25 milhões de euros por ano, cerca de seis milhões da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Tudo o resto é financiamento competitivo, contratos com a indústria, patentes, prestação de serviços.
A equipa da bioquímica Isabel Cardoso anda a estudar o papel de uma proteína neuroprotetora na doença de Alzheimer e em diferentes modelos, em tubos de ensaio, ratinhos, em condições que mimetizam a doença.

É importante perceber como esta proteína se comporta, como a sua atividade pode ser recuperada, quando no Alzheimer há uma membrana que se torna mais espessa e cria uma fronteira física que impede a filtragem de moléculas para o sangue. Há aqui uma lógica de prevenção da doença. “Esta proteína também tem alguma relevância na parte vascular cerebral”, diz Isabel Cardoso.

Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (Foto: André Gouveia/Global Imagens)

O i3S está ligado ao edifício de tijolo do IPATIMUP por um corredor que desagua numa sala de espera. A partir dali, o acesso é restrito. Há compartimentos com tecnologia de ponta, sequenciadores de nova geração, amostras de sangue a 4º C (são centenas de milhares em caixas pequenas com 92 amostras cada), espaços para biópsias da mama e da tiroide, testes genéticos e de paternidade, bancadas de trabalho e equipamento digital para o diagnóstico pré-natal. O IPATIMUP Diagnósticos trabalha para todo o país, recebe amostras de hospitais, clínicas, centros de investigação. São mais de 50 mil exames por ano.

Credencia médicos e formadores nacionais e internacionais, é contactado para dar segundas opiniões por mais de 40 países. Na anatomia patológica, as peças das biópsias são cortadas em pedaços mais pequenos que passam para blocos de parafina, que depois são cortados em placas mais finas que passam por um banho de cor conforme o que se pretende ver, paredes celulares, tecidos, o que for, nos microscópios ou nos scanners. Os dados ficam armazenados para sempre. Nas portas, o símbolo de qualidade CAP, do Colégio Americano de Patologistas.

Paulo Canedo, biólogo, gestor do IPATIMUP Diagnósticos, conhece os cantos à casa que também se dedica à investigação e diagnóstico de tumores pediátricos, síndromes genéticos para doenças raras, cancros hereditários, e onde se fazem biópsias líquidas, a primeira a fazê-lo em Portugal. Numa sala de genética médica, há mais amostras em blocos de parafina. “Aqui há um circuito único para evitar contaminação”, avisa.

Sobrinho Simões, professor, patologista, investigador, passa normalmente as tardes no seu gabinete do IPATIMUP, anda pelo i3S, por vezes almoça na cantina. “É um edifício lindo de morrer, não é? Talvez lhe falte um bocadinho de cor”, comenta. Está “felicíssimo” com a união, inédita no país. “Juntar é muito raro.” A tradição da colaboração prévia ajudou. “Estas junções não são fáceis de conseguir se não tivéssemos a noção de que íamos dar um salto em frente.” E assim nasceu uma estrutura de referência com três histórias bem solidificadas.

“É um mundo, uma experiência única.” Sobrinho Simões pensa alto sobre o que é preciso fazer. “Temos de ter uma maior ligação às universidades, aos hospitais, ao IPO”. “E devíamos ter mais gente a fazer uma espécie de reflexão sociocultural sobre os nossos achados.” Não só publicar nas melhores revistas, mas pensar no que isso quer dizer e significa. “Somos tão eficientes e vencedores na ciência, devíamos ser melhores na civilização.”

De portas abertas às escolas

Prevenir cancro é mais barato do que tratar cancro. Está provado. No cancro hereditário difuso do estômago e do cancro da mama, em que há síndrome genético, os negativos custam cerca de 400 euros ao Estado, duas consultas e um teste genético. Os homens portadores assintomáticos, que têm riscos, custam quatro mil euros, as mulheres o dobro por serem dois cancros, do estômago e da mama. Os doentes homens custam 50 mil euros e as mulheres 100 mil. E estas quantias não contabilizam custos infraestruturais. “Está tudo pensado ao contrário. Este é um alerta porque ninguém acredita em prevenção”, observa Carla Oliveira, investigadora do i3S, bioquímica, doutorada em genética humana.

Os resultados desta investigação, que contabilizou todos os procedimentos clínicos de cada doente e custos associados, estão a ser escritos a seis mãos. Carla Oliveira, Luzia Garrido, enfermeira do centro da mama do Centro Hospitalar São João, e Liliana Sousa, aluna de doutoramento em Gestão de Saúde, mostram que prevenir é o melhor caminho, que é possível estancar a doença, que ao descartar os negativos reduzem-se cuidados. Esta é a tradução da realidade e mais real seria impossível.

A bióloga Catarina Leite Pereira estuda patologias que dão origem à dor lombar. À sua frente, na bancada de trabalho, tem material acabado de recolher, uma amostra de um paciente, disco vertebral que suporta todas as cargas da coluna, como um pneu que acabou de romper. Separa um tecido esponjoso para analisar o que lhe interessa, identificar biomarcadores para tentar prever como a patologia vai evoluir. “Queremos perceber como as células do sistema imune podem contribuir para a regressão da hérnia”, avança. Maria Inês Almeida está neste grupo que estuda doenças osteoarticulares, tenta encontrar terapias para a regeneração do osso. Interessa-lhe perceber a resposta inflamatória, acelerar a regeneração do osso.

No dia do open day das 13 plataformas científicas, as portas abrem-se à comunidade científica, professores, investigadores, alunos. María Gómez Lázaro está na Bioimaging, sala que trabalha com pouca luz, com aparelhos avançados que permitem, por exemplo, ver as estruturas internas de um cancro do pulmão, a topografia de células e tecidos. Frederico Silva coordena a plataforma Biochemical & Biophysical Technologies, que produz proteínas para estudos, análise estrutural de biomoléculas e a sua estabilidade e caracterização de interações moleculares.

Todas as semanas, o i3S recebe alunos do Secundário e do Ensino Superior e todas as semanas os designados embaixadores da ciência vão a escolas. Os jovens investigadores Henrique Duarte e Ana Rita Araújo falam dos seus percursos, do seu trabalho. Inês, 16 anos, do 12.º ano do Colégio do Rosário, está atenta, faz algumas perguntas. “Tenho quase a certeza de que quero seguir Medicina e quero ver o que há na área de investigação”, revela depois da conversa.

O i3S é muito mais do que um edifício de betão. A ciência acontece em cada sala, há compartimentos únicos no país. Numa sala com muito pouca luz, faz-se microscopia de alta resolução e microcirurgia, contam-se cromossomas e células, vai-se a detalhes impensáveis a 50 nanómetros. Ali perto, fica a sala de lavar, esterilizar, secar todo o tipo de material. As máquinas trabalham das 9 às 17.30 horas, são 20 a 25 por dia, com ciclos que variam conforme o conteúdo de frascos, pipetas, tubos, pontas de micropipetas.

Grupos de investigação reúnem-se semanalmente para partilhar ideias, definir métodos, orientar pesquisas. (Foto: André Gouveia/Global Imagens)

Alexandre Quintanilha, cientista, doutorado em Física, esteve à frente do IBMC e acompanhou a génese do i3S. Da criação de laboratórios associados no Porto, sob a tutela do então ministro Mariano Gago, e que envolviam o IBMC, o INEB e o IPATIMUP. Há caminho feito lado a lado e histórias em comum antes do i3S. A oportunidade de um consórcio entre os três institutos surge no fim da primeira década deste milénio. “Fazia todo o sentido, até pelas experiências acumuladas e variadíssimos projetos conjuntos entre estas instituições. Projetos não só de investigação como de treino a nível graduado e pós-graduado, de aquisição partilhada de grandes equipamentos, de transferência de tecnologia e de divulgação de conhecimento.”

Mariano Gago ainda assistiu à assinatura desse consórcio em janeiro de 2008. “Foi mais um passo na construção de massas críticas no Porto, agora com uma fortíssima componente clínica adicional.” A construção do novo edifício começa em 2013, empreitada de 21,5 milhões de euros, a inauguração acontece em maio de 2016 com o presidente da República e o primeiro-ministro.

Quintanilha admite que a génese de instituições de investigação é complexa, mas o avanço do conhecimento e a tentativa de solucionar problemas são feitos dessa fibra. “A construção de sinergias entre domínios do conhecimento distintos nunca é fácil e nunca pode ser imposta. Hoje, ninguém duvida que muitos dos desafios científicos mais interessantes surgem nas interfaces dos domínios do conhecimento. O diálogo e as colaborações não são fáceis porque exigem a aprendizagem de linguagens diferentes e ter curiosidade ativa pelo trabalho do ‘outro’. Mas, quando é possível, abre horizontes novos fascinantes.” O i3S é a prova de tudo isso. E de uma riqueza colaborativa singular.