Homicídios sem rosto

Jacinto e Lídia Correia ficaram sem o filho, Marlon. Lurdes Oliveira perdeu o marido, Manuel Mota. Joaquim Teixeira Alves enterrou a mãe, Odete. Todos estão reféns da uma dor que emerge a cada instante, condenados a um emaranhado de perguntas que ecoam sem resposta. Mataram-lhes os deles. E ainda hoje não sabem quem.

À cabeceira, uma camisola do Arcozelo, listas verdes e brancas, um 25 gordo nas costas a ecoar pela eternidade. À volta da cama, memórias compiladas em jeito de retratos e recortes de jornal emoldurados. Como aquele, ainda dos tempos da Venezuela, em que se pode ler: “Filho de emigrantes no livro de recordes da Liga.” Nas prateleiras, troféus, medalhas, louros de um percurso desportivo farto. Também há flores. Um macaco de peluche. E uma foto grande em que, trajado, com um monte de emblemas a sobressaírem na capa negra, Marlon sorri, sereno.

Mais de seis anos depois de o antigo estudante da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto ter sido assassinado a sangue frio, no recinto da Queima das Fitas, o quarto que era dele continua como sempre esteve, qual cápsula do tempo. É como se ali tudo tivesse ficado em suspenso. Como fica quem vê a vida de um ente querido levada por um homicida que não chega a ser identificado. Quem nunca conhece um culpado.

Como ficou Jacinto Correia, o pai. E Lídia, a mãe. Como hão de ficar as vidas de ambos até que o caso conheça um desfecho. “Não vou descansar a minha alma enquanto não souber quem foi.” Lídia fala com um ar grave, pesado, de quem se debate com uma dor insuperável. Essa, já sabe, vai carregá-la sempre. Mas a condenação dos culpados ajudaria a aligeirar o fardo. “Para desistirmos disto, o caso tem que chegar a um fim. Assim, nem o luto conseguimos fazer.”

Jacinto desabafa, consternado, obstinado. “Não me contento só com o facto de serem condenados os que lá estiveram. Têm de ser os que lá estiveram e os que pensaram naquilo.” E logo eles, que há quase 20 anos regressaram da Venezuela com a promessa da segurança debaixo de olho.

A angústia e a revolta misturam-se com as memórias daquela madrugada de 4 de maio de 2013 quando, na noite prévia ao arranque da Queima das Fitas do Porto, o filho acabou atingido mortalmente. Pouco tempo antes, tinha dito ao pai que já não devia tardar. Só que tardou. Eternidades. E os pais a ligarem-lhe insistentemente, sem que do outro lado chegasse uma resposta. “Ele tinha levado o carro. Achámos que tinha tido um acidente. Fizemo-nos à estrada, pelo caminho que ele costumava fazer.”

O caminho levou-os diretos ao Queimódromo, onde o aparato os fez temer o pior. Mas ninguém os deixava passar. Nem ninguém lhes dava informações. Ouviram falar em mortes. Até que Jacinto aproveitou uma aberta no perímetro de segurança para se esgueirar para dentro do recinto. Lá, encontraria o outro filho, porta-voz da notícia mais amarga que recebeu em toda a vida: Marlon havia sido baleado letalmente. Mortificado, cambaleante, dirigiu-se à esposa, já desfeita em lágrimas, como que a adivinhar o infortúnio. “A desgraça tocou-nos a nós.” O mundo de ambos desabava ali.

Os detalhes chegariam mais tarde. Aos poucos, foram sabendo que aqueles quatro encapuzados entraram no contentor – que, em dias de venda de bilhetes para a Queima, funcionava como espécie de tesouraria da Federação Académica do Porto (FAP) -, foram direitinhos ao local onde habitualmente estava o cofre com o dinheiro (naquele dia, tinha sido mudado). Que, ouvindo tiros, os cinco jovens que estavam a trabalhar para a FAP se precipitaram para a porta das traseiras.

Que Marlon cedeu passagem a todos os colegas e o altruísmo lhe saiu exorbitante: acabou baleado antes e depois de fechar a porta e tombou logo ali, um metro depois. Que ao longo de dois minutos de assalto, foram disparados 17 tiros. Que os seguranças da SPDE que se encontravam no local não conseguiram travar o ataque. Que a Polícia Judiciária chegou a interrogar dezenas de suspeitos e a fazer buscas nos bairros da Cruz de Pau e da Biquinha, em Matosinhos, sem sucesso.

Lídia e Jacinto Correia mantêm o quarto do filho Marlon como ele estava (Rui Oliveira/Global Imagens)

No interior da lavandaria da Rechousa (Gaia), que continua a ser o negócio da família, os pais de Marlon vão realçando pormenores, sem freio nem ordem. Como as perguntas sem resposta que lhes tolhem as entranhas. Como a mágoa que lhes vagueia o ser, sem nunca curar. Que só desvanece por momentos, mas logo emerge, revoltosa, conspirante. Jacinto e Lídia desesperam por novidades da PJ e clamam por justiça. Mas também apontam o dedo à FAP, que não só não parou a festa (“esses senhores não respeitaram a memória do meu filho”, acusa a mãe), como não providenciou a “segurança necessária”.

Jacinto indigna-se. “E ele achava que estava seguro, sabe?” Sabe-o porque, no dia anterior, qual sexto sentido de pai, tinha alertado o filho para os riscos. E ele dizia que não, que não havia perigo. “Até lhe disse: ‘Filho, no dia em que eles quiserem lá entrar, eles entram nem que sejam pelo ar, como as Tartarugas Ninja’. Lamentavelmente, 24 horas depois aconteceu aquilo.”

À tragédia, seguiu-se um mar de homenagens, da faculdade aos clubes de futebol a que estava ligado. O Arcozelo, o último emblema de Marlon, até retirou a camisola 25 (a tal que continua à cabeceira da cama, a ecoar pela eternidade), para garantir que ninguém mais a usaria. O funeral juntou milhares. E a certeza de que o filho espalhava afeto onde quer que fosse. “O facto de termos sido muito acarinhados, de percebermos o quanto as pessoas gostavam do nosso filho, preencheu-nos um bocadinho”, admite a mãe.

As memórias doces do jovem de 24 anos que era estimado por todos vão anestesiando o sofrimento. Mas enquanto a culpa teimar em morrer solteira, não há paz que valha a estes pais. “Estamos encurralados”, resume Jacinto, antes de apelar a quem quer que possa ter informações para que as partilhe com as autoridades. E a angústia segue, a dilacerar em surdina.

O capítulo eternamente adiado

Uma angústia que, em casos como este, tende a eternizar-se. Bruno Brito, psicólogo e terapeuta, mas também gestor da Rede de Apoio a Familiares e Amigos de Vítimas de Homicídio e Vítimas de Terrorismo, salienta isso mesmo. “Vou dar-lhe um contraexemplo. Se as situações de luto normal variam entre seis meses a um ano, que é o tempo médio que os enlutados levam a retomar as atividades normais, nos casos de homicídio há, regra geral, uma colagem ao processo. Ou seja, há um prolongamento do luto até à condenação. Ora, nas situações em que o agressor não é conhecido, não é incomum assistirmos ao perpetuar do luto. Fica a faltar um desfecho, um último capítulo.”

Sentada na poltrona da sala de estar da casa onde vive com um dos filhos, mãos pousadas sobre as pernas, Lurdes Oliveira, 74 anos, ainda anseia por esse derradeiro capítulo. Com a esperança possível ao fim de 14 anos, o tempo que passou desde que o marido, o taxista Manuel Mota, foi encontrado, dentro do carro, num descampado a fazer de parque, próximo do Campo Alegre (Porto), degolado, ainda hoje não se sabe por quem. Mas nem os anos a fio sem respostas, nem a idade, que se faz sentir com particular malvadez num dos joelhos, nem os muitos problemas de saúde que teve desde então, lhe roubam a memória daquele 1 de junho de 2005.

De manhã, tomou o pequeno-almoço com o marido. Café com leite e torradas, “era o que ele comia sempre”. Achou-o triste, lembra-se que o achou triste, mas não deu importância. À hora de almoço, esperou pelo marido, porque sempre que podia ele ia almoçar a casa. Naquele dia tardou. Lurdes lá lhe ligou, perto das duas da tarde. Nem sinal dele. Horas depois, o telefone tocava, assombroso. “Ligaram-me da Raditáxis, a dizer que o meu marido se tinha sentido mal e tinha ido para o hospital. E a pedir para ir tirar o carro do sítio onde estava.”

Mas estava a tomar conta das netas e não as podia deixar. Ligou ao filho. Não atendeu. Depois à nora, que lhe disse que falaria com o filho e resolveriam o assunto. O tempo foi passando, mais impiedoso a cada minuto. E as amigas foram-lhe aparecendo lá em casa, como que por improvável coincidência. “Mesmo uma que era raro visitar-me. Comecei a ter um sexto sentido, de que algo lhe tinha acontecido. Até porque eu sabia que se ele se sentisse mal e precisasse de ir ao hospital, a primeira pessoa para quem ligava era para mim.”

Tanto que quando, horas depois, o filho foi ter com ela a casa, já só constatou, impotente, a desgraça. “Mãe, já sabes, não é? O pai morreu.” Lurdes sabe que já tinha percebido. Não sabe exatamente como. As horas do luto tendem a ser enevoadas. Antes disso, o filho tinha rumado ao local onde o carro do pai ficara e tinha-se deparado com um improvável aparato policial. Disseram-lhe que não podia passar, mas ele nem ouviu. Foi dar com o pai dentro do carro, degolado, sem pingo de vida. Os olhos de Lurdes vão-se pondo mais raiados à medida que avança na história. Como se a dor e a saudade também tivessem estado líquido.

Foto: Leonel de Castro/Global Imagens

Manuel Mota tinha apanhado o último cliente em Santos Pousada. “Teria 20 a 22 anos, 1,60 a 1,62 metros de altura, apresentava lesões nos dedos, características de pessoas que roem as unhas e, na ocasião, vestia calças de fato de treino de cor e t-shirt de cor escura”, pôde perceber-se por um pedido público de colaboração que a Brigada de Homicídios do Porto lançaria no site da PJ, dias depois. Seria esse o principal suspeito. Fê-lo por dinheiro, supõe-se. O facto de a carteira do taxista ter desaparecido alimenta a tese. Lurdes tem as suas dúvidas. “Dizem que foi para roubar, mas não sei. Porque eles deixaram as alianças, deixaram tudo.” Certo é que o suspeito não mais foi encontrado.

Nos tempos que se seguiram, a viúva ainda ligou várias vezes para a PJ, em busca de uma nesga de esperança, mas, face ao riscar do calendário e à pouca vontade que encontrava do outro lado, acabaria por desistir. Desde então, correram 14 anos. E Lurdes ainda se debate com a teia castradora desse crime sem castigo. “A maior parte das coisas vai passando, mas isto está sempre presente, para mim e para os meus filhos. É uma ferida que nunca está sarada. Um trauma que fica. E o que dói mais é não saber quem foi. Nem porquê.” E assim vive, atormentada, com uma mágoa que não pode ser calada, mas agarrada a uma fé que a faz mover. “Eu não vou à missa, mas confio em Deus. E acredito que não há crimes perfeitos.”

As datas numa agenda, umas escutas caídas do céu

E, no entanto, não há inspetor da PJ que não tenha casos por resolver. João Morgado, 66 anos, sabe do que fala. Entre Lisboa e Porto, foi inspetor da Brigada de Homicídios durante mais de três décadas. “Nos casos em que não há uma relação direta, causal, entre a vítima e o homicida, pode tornar-se mais difícil descobrir. Se for um indivíduo que mata uma única vez ainda mais. Há sempre uma linha de investigação que é seguida. Quando à primeira não dá nada, tenta-se a segunda. Ou a terceira. Mas a dada altura já não há muito mais por onde ir.”

É possível, ainda assim, resolver um caso anos depois. “Ou porque o homicida desabafou com um amigo e ele se enche de coragem e vai contar tudo. Ou porque o próprio assassino não consegue viver com a culpa e acaba por se entregar.” Pelo meio, vão-se trocando as equipas, na tentativa de que uma visão mais fresca possa traduzir-se em resultados mais certeiros. E há os casos em que, muito tempo depois, por acidente ou sorte, uma ponta solta vem à tona. Seja uma prova científica para que finalmente se encontra correspondência ou algo que se apanha numa escuta telefónica de outro qualquer processo.

“Lembro-me de um caso de duplo homicídio na década de 1970 que já tinha sido investigado e que acabou por passar para as nossas mãos. Por sorte, dias antes, tinha sido detido um indivíduo que tinha anotado na agenda as datas dos dois crimes. Acabámos por apanhá-lo”, recorda João Morgado, admitindo, ainda assim, que “quanto mais tempo passa, mais difícil é”.

Até porque, a dada altura, os próprios procedimentos criminais acabam por prescrever. No caso da Justiça portuguesa, todos os homicídios com penas de prisão superiores a dez anos prescrevem ao fim de 15. Findo esse período, o processo é definitivamente arquivado, sem hipótese de julgamento, mesmo que os culpados venham a ser descobertos. Pelo meio, a prescrição pode ser suspensa ou interrompida, mediante dadas circunstâncias.

Joaquim Teixeira Alves, 69 anos, viu a mãe ser brutalmente assassinada há 16. Por isso, afirma, consciente e resignado, que sabe que “já ninguém vai cumprir 25 anos” por tirar a vida à mulher que lhe era tudo. Mas não sossega enquanto não vir um culpado ser encontrado. Até porque a história continua a martirizá-lo como se fosse hoje. Estava ele a trabalhar quando, perto das seis e meia da tarde, o pai lhe liga. “Disse-me que não sabia se a minha mãe estava viva se estava morta.”

E ele arrancou a todo o gás, rumo à casa dos pais. Quando lá entrou, deparou-se com a imagem que ainda hoje traz cravada na memória. A mãe, Odete, deitada muito direita no sofá, mas com sinais inegáveis de um espancamento brutal. Um olho fora da órbita, os dentes todos partidos, um pedaço de massa encefálica saliente, na parte de trás da cabeça. Desesperado, ainda tentou a respiração boca a boca. Em vão. Lembra-se que, às tantas, uma técnica do INEM o demoveu. “Não vale a pena. Ela à primeira pancada ficou logo.”

Lembra-se que, quando cedeu à certeza do fim, mergulhou num choro descontrolado. E que, aparentemente, o pai se manteve sempre impávido e sereno. Lembra-se de ainda ajudar a transportar o corpo para a ambulância. E de pouco mais.

Joaquim Teixeira Alves continua a não saber o que aconteceu à mãe (Fábio Poço / Global Imagens)

Quem foi o causador de semelhante golpe nunca soube. Sabe que havia muita gente a dever dinheiro aos pais, que vendiam ouro. Sabe que a casa dos pais – onde não mais conseguiu voltar a entrar desde que ajudou a transportar o corpo da falecida mãe para a ambulância – estava, toda ela, repleta de ouro. Sabe que, naquele dia, terá desaparecido também um livro preto, onde constavam todas as dívidas. E sabe, porque conhecia a mãe de ginjeira, que o assassino “só pode ter sido alguém conhecido”. “A minha mãe nunca abria a porta sem espreitar antes, para ver quem era.”

Angustiado, pesaroso, o desalento todo a vir à tona, Joaquim quase desmorona quando lembra que lhe levaram “o pilar” da vida dele. E garante que não deixará de viver atormentado enquanto não souber quem o fez. “Isto não é difícil. É muito mais do que isso. Eu se morrer, morro com isto. Se encontrassem o culpado para mim era um porto de honra. Não um ponto de honra, um porto de honra. Era um nó que me saía da garganta.” O mesmo nó que sufoca Lurdes. O mesmo nó que carregam Jacinto e Lídia.

No quarto de Marlon, a vida continua em suspenso. A mãe jura que de cada vez que lá entra sente uma paz interior a mitigar-lhe a dor. A paz que nunca terá enquanto não vir o crime que lhe levou o filho ser punido. Seis anos depois, Jacinto e Lídia ainda esperam pela Justiça. Na ânsia de que ela lhes dê, por fim, um assomo de paz.