Hollywood: o princípio do fim da indústria de homens?

A personagem Thor, até agora um homem, será uma mulher no cinema. A atriz israelo-americana Natalie Portman irá segurar o martelo do Deus do Trovão na produção da Marvel, (Foto: Alberto e Rodriguez)

Texto de Sara Dias Oliveira

Muita tinta a correr, muitos comentários nas redes sociais, os fãs divididos entre críticas e elogios, e aquela pitada de suspense que mantém a implacável máquina de Hollywood sempre oleada. Se Daniel Craig arrumar de vez o fato de agente secreto depois do 25.º filme James Bond – cuja rodagem ainda decorre e a estreia está prevista para abril de 2020 – o Mundo vai falar numa revolução. O próximo agente 007 poderá ser uma mulher. Uma mulher negra.

A atriz britânica de origem jamaicana Lashana Lynch, que faz parte do atual elenco de James Bond, é o nome mais falado. Craig passará o testemunho depois da pele de 007 ser exclusivamente vestida por homens, desde 1962? Tudo indica que sim. Uma tentativa de travar críticas machistas e os comentários pouco abonatórios às bond girls como peças decorativas e descartáveis que passam pelos braços do homem com licença para matar? A igualdade de género entranhou-se na agenda da Sétima Arte. Um sinal dos tempos?

O cinema sempre foi uma indústria de homens. Uma história masculina. O Oscar de Realização foi entregue pela primeira vez a uma mulher em 2010, há nove anos apenas, à norte-americana Kathryn Bigelow, primeira cineasta mulher a conquistar a estatueta dourada com o filme “The Hurt Locker” (Estado de Guerra).

Mário Augusto, jornalista português que mais estrelas de cinema entrevistou para a televisão, autor e apresentador de vários programas de divulgação da Sétima Arte, vê nessa vontade de igualdade do género um sinal dos tempos. Mas não só. Vê mais do que isso. Vê uma tendência, uma estratégia, e vê medo. Muito medo. “A história de Hollywood é feita de receio e de sentido de oportunidade. Há uma tentativa de Hollywood de aproveitar essa tendência – e muito bem, a igualdade de género é importante – por medo do sistema”, refere.

Medo do dedo apontado à discriminação de género, minorias étnicas, orientações sexuais, temas quentes e atuais da discussão coletiva. “Na indústria do cinema americano é mais uma tentativa de não serem acusados de fazerem o que toda a vida fizeram, de serem uma indústria de homens.” E isso não é inocente, na sua opinião.

“A consciencialização para a igualdade de género existe no sentido da oportunidade para chegar a outro público e com medo de serem acusados de serem discriminatórios”, afirma. Para não parecer mal, e pelo sim, pelo não. Para Mário Augusto, o cinema europeu escapa de alguma forma a esta tendência. “Há grandes realizadoras com grande impacto no cinema europeu. Nunca tivemos esse preconceito exacerbado, sempre fomos mais equitativos, mas também é verdade que havia menos mulheres.”

A atriz norte-americana Tessa Tompsom vestiu o fato escuro, gravata preta, óculos escuros, para ser uma agente no filme “MIB: Homens de Negro – Força Internacional”, que estreou em Portugal em junho passado. É a primeira vez que uma mulher interpreta esse papel. No cartaz, a atriz aparece com os parceiros de aventura e o seu nome no meio de Chris Hemsworth e Liam Neeson.

A personagem Thor, até agora um homem, será uma mulher no cinema. A atriz israelo-americana Natalie Portman irá segurar o martelo do Deus do Trovão na produção da Marvel, da série de filmes de super-heróis americanos baseados em personagens que aparecem nas publicações da Marvel Comics. Portman será a primeira heroína com esse poder, depois de ter sido Jane Foster nos filmes do universo cinematográfico Marvel Thor.

“Thor: Love and Thunder” deverá estrear em novembro de 2021 nos Estados Unidos. A Thor do sexo feminino deu que falar quando se anunciou ao Mundo o que iria acontecer, embora não fosse muito surpreendente, uma vez que na história aos quadradinhos se percebia que esse poderia ser o caminho. Thor já não conseguia empunhar o seu martelo e Jane, a astrofísica, era a única com essa habilidade, a Deusa do Trovão, que ganha os mesmos poderes do herói homem, e ainda um capacete e uma roupa semelhantes aos de Thor.

A Marvel, conservadora na essência, moderna na aparência, não se fica por aqui, quer uma atriz para o papel da sua primeira heroína transgénero. O casting para a personagem já arrancou, os estúdios Marvel procuram uma atriz de qualquer etnia que tenha entre 20 e 30 anos. E mais uma novidade. O universo cinematográfico Marvel apresenta a primeira personagem LGBTQ+ da sua história. A atriz Tessa Tompsom volta a entrar em cena para interpretar Valquíria.

Para o sociólogo Albertino Gonçalves, professor da Universidade do Minho, investigador nas áreas de cultura e arte, os ventos que sopram de Hollywood são sinais dos tempos. “É um processo que se tem vindo a definir.” Mais protagonismo para as mulheres, minorias étnicas, homossexuais, lésbicas, todas as orientações sexuais. É uma tendência atual a ser tomada por organismos que não são movimentos feministas, mas que se comportam como se fossem, na sua análise. “O cinema vai criando os seus heróis e os heróis têm de funcionar, se não funcionam é uma tragédia”, considera. Tragédia de visibilidade, de público, de bilheteira, de muitos milhões.

A igualdade de género e a diversidade étnica e sexual deixaram de ser temas que causam “alergia” à sociedade e o que antes era visto como subversivo passa a ser olhado como normal. Será uma normalidade passageira, de dois ou três anos? Ninguém sabe. Uma coisa é certa. “Não temos, neste momento, movimentos distraídos”, avisa Albertino Gonçalves.

Lashana Lynch, atriz britânica de origem jamaicana, faz parte do atual elenco de 007 e é o nome mais falado para substituir Daniel Craig na pele de James Bond. (Foto: Mike Marsland)

Todas as oportunidades são aproveitadas e quando os Estados Unidos fazem barulho, o barulho é mundial. “O cinema, volta e meia, tem de provocar. Grande parte do discurso do cinema é o que fica na cabeça.” O que se diz mesmo antes de o filme estrear. A questão é se a receita continuará a funcionar ao longo do tempo.

Politicamente natural, obrigação social

Em Cannes, nunca, como antes, se sublinhou a presença feminina nos filmes, na apresentação do festival essa parte não escapa aos discursos da praxe. Nos países nórdicos, como Dinamarca e Suécia, há majoração nos apoios públicos às produções cinematográficas que tenham mulheres na ficha técnica. Uma evolução natural que reflete o que a sociedade quer? Forçar a igualdade de género para ficar bem na fotografia? Uma questão politicamente correta?

Uma questão politicamente natural para Daniel Ribas, professor de Cinema e diretor do novo mestrado de Cinema da Escola das Artes da Universidade Católica, programador do Porto/Post/Doc e do Curtas Vila do Conde, doutorado em Estudos Culturais pelas universidades de Aveiro e do Minho. “Depois do movimento #MeToo, e até um pouco antes, chega-se à conclusão que as mulheres estavam sub-representadas nos papéis de protagonistas, como atrás das câmaras”, sublinha. O cinema, lembra, “sempre foi uma história feita por homens e sobre homens, apesar de haver mulheres a fazerem coisas interessantes no passado”.

As mulheres conquistam espaço nos filmes americanos dos super-heróis e essa tendência sobressai na tela. Reflexo da sociedade, pressão social? O que acontece é, segundo Daniel Ribas, “a óbvia decorrência da sub-representação deste tipo de pessoas que não tinham voz”. E as quotas para mulheres no cinema são bem-vindas, na sua opinião, como “um esforço de forçar políticas para alterar o estado das coisas”, senão continua tudo confinado ao circuito alimentado por homens.

“O que não significa que tenhamos melhores filmes, isso é outra questão”, realça. A questão tem sempre dois lados: um mais comercial, filmes com mulheres na primeira linha têm potencialmente mais interesse; outro mais social, de dar visibilidade a quem habitualmente ocupa lugares secundários e mais decorativos. E a sociedade não perdoa.

O cinema português tem mulheres à frente e atrás das câmaras. O realizador Pedro Costa acaba de trazer o Leopardo de Ouro do Festival de Cinema de Locarno, na Suíça, com o seu filme “Vitalina Varela”, a história de uma mulher cabo-verdiana. “Sinto que há uma nova geração que vem provar que as mulheres têm algo a dizer e que estão a dizê-lo de uma maneira bastante vincada no circuito dos festivais”, assinala Daniel Ribas, que fala em Cláudia Varejão, Filipa César, Salomé Lamas.

A realizadora portuguesa Salomé Lamas mergulha no assunto, problematiza vários pontos, diz que primeiro é preciso discutir a igualdade de género na sociedade civil e só depois o tema chegar ao cinema. Pode-se falar de tudo, questionar o que se quiser, ir ao fundo ou ficar pela rama. “Tudo depende da intenção da fonte.” Trocar intenções por miúdos é complicado. “Se o trabalho é feito com seriedade, se tem impacto e se tem interesse, não é uma questão leviana”, frisa.

Há tempos, recorda, numa residência americana, alguém comentava uma notícia que contava os minutos de diálogo entre duas mulheres num filme, como o maior tempo de antena feminino. O que, em seu entender, “é significativo de alguma coisa”. Ou quando os jornalistas lhe perguntavam como era ser mulher e fazer documentários e curtas-metragens. As quotas e regras são bem recebidas se vierem regulamentar e depois, um dia, deixarem de fazer sentido e desaparecerem. O debate continua em Hollywood. E tudo o que gira em torno da igualdade de género e suas réplicas podem, para Salomé Lamas, ser contraproducentes e até perigosas se as análises e discussões forem “à boleia de qualquer coisa” que não se sabe muito bem o que é.

Para João Antunes, jornalista e crítico de cinema, que não gosta do politicamente correto, o mais importante nas artes é a qualidade. “Ver bons filmes, independentemente de serem feitos por homens ou mulheres.” A sua análise vai por outro prisma. “Tudo deve começar por outro lado, pela igualdade de oportunidades, se mulheres, negros ou de outras minorias têm igualdade de acesso à instrução de cinema.” Se não há obstáculos, pedras no caminho, a quem quer que seja, a quem quer fazer cinema, independentemente de tudo. Transformar numa obrigação social, com quotas a condizer, é, segundo João Antunes, “ridículo”.

Um bom filme feito por um homem será sempre melhor do que um mau filme feito por uma mulher. Um bom filme feito por uma mulher será sempre melhor do que um mau filme feito por um homem. “Há muitos filmes que são exclusivamente para cumprir quotas.” E isso, para o crítico e jornalista, não faz sentido. Há pequenos sinais, refere, e lóbis instalados a remar para o mesmo lado. “Coloca-se o politicamente correto onde não deve existir.” A qualidade é que interessa e as oportunidades devem ser iguais para todos.

A atriz americana Tessa Tompsom foi a primeira mulher no papel de agente na sequela MIB: Homens de Negro. O último filme, Força Internacional, estreou em Portugal em junho. (Foto: DR)

Mas Hollywood não perdoa. A atriz Scarlett Johansson tem sido acusada de apropriação cultural, conceito um pouco vago que se resume ao uso de elementos culturais de uma minoria subordinada a um grupo que domina. Johansson não pode ser o que quiser e for capaz no cinema, além de loira americana? Parece que não. A crítica arrasou a sua interpretação de agente cyborg em “Ghost in the Shell: Agente do Futuro”, por se tratar de uma adaptação da banda desenhada japonesa manga, interpretada por uma americana. A malha apertou tanto que a atriz acabou por desistir do casting para o papel de transexual no filme “Rub & Tub”.

Os clássicos estão a morrer na Banda Desenhada

A Banda Desenhada (BD) é um mundo ligeiramente diferente do cinema. Menos exposto, de menor visibilidade, mais de nicho. As mulheres sempre tiveram um papel forte como super-heroínas nos quadradinhos, como a Mulher-Maravilha e a Cat Woman. Em termos autorais a história é outra, os homens escreviam, as mulheres pintavam e coloriam as pranchas, as personagens.

Mesmo assim, mulheres com mais impacto nas histórias ganham mais fôlego na década de 1980. Politicamente correto? O facto é que o público da BD está a mudar, há mais mulheres e raparigas, já não está tão confinado aos homens de meia-idade e rapazes. E a linha entre o politicamente correto e o negócio das editoras é ténue.

As heroínas de primeira linha não são assim tão poucas. A Mulher-Maravilha do final dos anos 1940 nos Estados Unidos, a Cat Woman do início da década de 1940, Miss Marvel do final dos anos 1960. Jessica Jones determinante no meio dos super-heróis, Julia Kendall, a criminóloga da revista italiana editada pela Bonelli. E a eterna Mafalda de Quino, a miúda contestatária que era a voz da insubmissão e da defesa de valores da igualdade e da liberdade que, de 1964 a 1973, de forma infantil e muito séria, colocava o dedo na ferida da ditadura argentina. Ou a Turma da Mônica, do brasileiro Maurício de Sousa, que puxou Mônica para a frente do grupo de amigos.

As histórias aos quadradinhos vão mudando com o tempo. “A BD reflete o que está a acontecer na sociedade”, diz Pedro Cleto, blogger especialista em BD. Há oito anos, escrevia, no seu blogue “As Leituras do Pedro”, sobre a morte do Homem-Aranha e a sua substituição por um negro de origem hispânica – não em relação ao super-herói original, mas à versão Ultimate -, apresentado como um “Homem-Aranha do século XXI, um reflexo da cultura e da diversidade norte-americanas”.

“Na verdade, presentes desde os clássicos da BD até aos dias de hoje, negros, latinos e outros raramente ultrapassaram papéis secundários, como ajudantes ou contraponto cómico do herói branco, bem-parecido e com capacidade de decisão. Como no caso de Mandrake, o mágico, que tinha como auxiliar, Lotário, o hercúleo e musculado negro, que até era monarca de uma nação africana.”

O discurso da igualdade de género não passa ao lado da BD. Na BD dos romances gráficos, mais adulta, as discussões sociais vão deixando marcas. Mais mulheres, mais autoras. “A BD não deixa de espelhar as mudanças na sociedade”, destaca Pedro Cleto. Mesmo assim, as fugas à normalidade ainda são casos pontuais.

“As personagens femininas realmente fortes, com impacto, com mais personalidade, surgem nos anos 1980”, recorda Mário Freitas, proprietário da Loja Kingpin Books, a maior loja de BD de Portugal e responsável pela editora com o mesmo nome. “Não é bom, nem é mau”, comenta. Ou seja, a importância das personagens depende de quem escreve. Isto é, ou há novas personagens que vingam ou há personagens destituídas de conteúdo que não vão a lado algum.

A BD continua a ser feita essencialmente por homens que desenham sobretudo mulheres. José de Freitas, editor da G. Floy Portugal, que edita essencialmente séries de comics americanos, alguns de grande sucesso como “Jessica Jones: Alias e Saga”, que conta as aventuras de uma adolescente com origens paquistanesas que vive em Nova Jérsia.

“A Marvel parece ter enveredado por um caminho de aumentar muito a diversidade no sentido da igualdade de género”, defende. O que, por vezes, choca os fãs porque os clássicos estão a morrer, a desaparecer, a ficar gordos, a pedir a reforma. Thor será uma mulher, Falcão, o companheiro do Capitão América, é o primeiro super-herói afro-americano da Marvel. E o que se passa na BD reflete-se nos filmes. “É uma mudança do que se vê na sociedade”, conclui o editor.

José de Freitas vê uma linha bastante ténue entre o politicamente correto e o que deve ser a qualidade do que se produz. “Em certos casos tem havido um aproveitamento para marcar pontos, editar com produções muito grandes, criar produções ou séries para ir atrás do politicamente correto ou de modas.” Ou seja, resume, “editar o politicamente correto em detrimento de contar uma boa história”. E, no fim do filme, o que importa realmente? O marketing, o negócio, os milhões, o conteúdo, o tema, a pressão social? O que se sabe é que Hollywood não pára. A máquina é demasiado pesada.