Hereditária, rara, grave. Assim é a “doença dos pezinhos”

Clínica fisiátrica para doentes com paramiloidose, em Braga

Os sintomas começam nos pés e sobem pelo corpo. É uma doença degenerativa, altamente incapacitante, sem cura, que se manifesta em idades precoces.

Os nomes técnicos são complexos: amiloidose hereditária relacionada com a transtirretina (ATTRh) ou polineuropatia amilóide familiar (PAF). Em Portugal, foi encontrada pela primeira vez na zona da Póvoa de Varzim e descrita pelo neurologista e professor Corino de Andrade que, na altura, identificou vários doentes. O quadro clínico era comum: perda de sensibilidade que se iniciava nos pés e progredia de forma ascendente. E, assim, ficou conhecida como a “doença dos pezinhos”.

Trata-se de uma doença hereditária associada a uma mutação do gene da transtirretina, proteína que uma vez mutada se deposita sob a forma de substância amiloide em vários órgãos e tecidos. É uma doença genética grave e debilitante e que afeta, de forma significativa, a qualidade de vida. É uma patologia rara e Portugal é o país mais atingido. Estima-se que a mutação atinja uma em cada mil pessoas. O nosso país tem cerca de dois mil doentes.

Os primeiros sintomas estão, regra geral, relacionados com a perda de sensibilidade. “Sensação de formigueiro e adormecimento dos membros inferiores, dor repentina e perda de sensibilidade à temperatura. Estes sintomas têm início nos pés e pernas e vão subindo até às mãos, gradualmente, ao longo dos anos”, adianta à NM Isabel Conceição, coordenadora do Centro de Referência de Paramiloidose do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte.

Perda de peso involuntária, alterações do trânsito intestinal, problemas digestivos e urinários ou um quadro de disfunção sexual são também sintomas em alguns casos. “Numa fase mais avançada da doença, a atrofia muscular acaba por impedir o doente de se movimentar. Podem surgir igualmente problemas cardíacos que originam insuficiência cardíaca”, diz a especialista. Podem também ocorrer perturbações visuais, como visão turva, olho seco, glaucoma ou diminuição da acuidade visual. E cerca de 30% dos doentes são afetados por insuficiência renal.

A doença manifesta-se, por norma, entre os 25 e os 40 anos, podendo, em alguns casos, ocorrer depois dos 50

Como doença degenerativa, que se manifesta sobretudo em pessoas em idade ativa, o comprometimento das tarefas quotidianas causa um enorme impacto na qualidade de vida. A mobilidade e a autonomia são afetadas e há repercussões no seio familiar e no contexto laboral. “É, muitas vezes, necessário adaptar as condições de trabalho para manter uma vida laboral ativa. O acompanhamento por parte de uma equipa multidisciplinar composta por neurologistas, geneticistas, cardiologistas, nefrologistas, oftalmologistas, entre outros, de acordo com o envolvimento de outros órgãos que possam surgir no decurso da doença, é fundamental para o doente”, refere a médica.

Sem tratamento, os sintomas da doença agravam-se progressivamente e a esperança média de vida, depois do aparecimento dos sintomas, ronda os 10-15 anos. Isabel Conceição avisa que o tratamento precoce é fundamental, pois permite atrasar a evolução da doença e manter a qualidade de vida dos doentes. “Esta é uma doença de transmissão autossómica dominante, o que significa que apenas uma cópia do gene mutado, herdada de um dos progenitores, é suficiente para manifestar a doença. Assim, se o progenitor for portador, a probabilidade de um filho ser portador da mutação é de 50%”, sublinha.

Apenas uma cópia do gene mutado, herdada de um dos progenitores, é suficiente para manifestar a doença

O diagnóstico pode ser complexo, dada a diversidade de sintomas e por se tratar de uma doença rara. É hereditária, mas pode haver doentes que não apresentam história familiar conhecida. O atraso no diagnóstico ocorre, sobretudo, nestes casos. “Outro fator que acaba por dificultar o diagnóstico é o facto de, uma vez que a doença se manifesta normalmente no jovem adulto, nas situações em que se manifesta no idoso, os sintomas acabam por ser desvalorizados e, na maioria das vezes, associados às comorbilidades naturais da idade”, sustenta Isabel Conceição.

O diagnóstico é realizado através da confirmação da mutação do gene com um teste genético, uma análise ao sangue e pela presença de sintomas e sinais relacionados com a doença – e, em alguns casos, pela confirmação de deposição de substância amiloide em qualquer tecido, através de uma biopsia. “A pesquisa de uma mutação, num familiar em risco, pode ser realizada em contexto de aconselhamento genético, permitindo uma monitorização constante e um diagnóstico precoce logo que surgem os primeiros sintomas.”

É uma doença hereditária que, apesar de progressiva, é considerada de evolução lenta e está associada a uma diminuição da sobrevida

Segundo a coordenadora do Centro de Referência de Paramiloidose do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, há, neste momento, no nosso país, duas opções terapêuticas para doentes numa fase relativamente precoce, ou seja, que ainda andam sem qualquer apoio. O transplante hepático ou um fármaco oral estabilizador. “O transplante hepático é um tratamento invasivo, com uma taxa de mortalidade perioperatória não desprezível e com comorbilidades inerentes a imunossupressão prolongada. O estabilizador da TTR permite controlar a progressão da neuropatia e melhorar a qualidade de vida dos doentes.”

Há mais novidades no tratamento da “doença dos pezinhos”. “Já aprovados pela Agência Europeia do Medicamento (EMA), e a aguardar aprovação no nosso país, estão dois fármacos que permitem através da clivagem do RNA impedir a produção da TTR, mutada e selvagem, permitindo uma estabilização ou mesmo uma melhoria da neuropatia”, revela Isabel Conceição.