Uma dama tem tosse? Limonada e frutos de sumo. Banho de vapor ao tórax. Um homem tem dores de rins? Frutos sucosos e água destilada. Banhos de assento quentes. Uma senhora tem frieiras? Dieta frugívora com saladas. Fricções de alho nos lugares doridos. Banhos de água quente. Um cavalheiro tem hemorroidas? Frutos de toda a espécie. Banhos de tronco. Página 164, abril de 1915, rubrica consultório naturista, conselhos do médico Amílcar de Sousa na revista “O Vegetariano”, órgão oficial da Sociedade Vegetariana de Portugal e da Sociedade Naturista Portuguesa, instalado no Porto.
Em 1913, anunciava-se, nas páginas desse mensário ilustrado naturista, a abertura do primeiro hotel para vegetarianos e naturistas do país, no número 26 da Rua dos Caldeireiros, Porto. Um espaço “ventilado por 25 janelas de frente e 25 de fundo, sala de jantar no 1.º andar com muita luz e decorada com gosto e belas paisagens. Luz eléctrica e campainhas em todos os quartos. Diária desde 1$000 a 1$5000 reis.” Ao lado do hotel, uma casa fruti-vegetariana “com bom e fino sortido de frutos verdes e secos de todas as regiões”. Nesse ano, abria o restaurante Fruti-Vegetariano na Rua Sá da Bandeira, Porto, que prometia café sem cafeína.
A Padaria Cunha, na porta 493 da Rua de Santa Catarina, Porto, descrevia os seus produtos em jeito publicitário. Pão de trigo integral, pão normal com farinha fina, de “digestão fácil e muito nutritivo” e recomendado pela “higiene naturista”, pão de glúten em forma de cacete, “fabrico esmerado”, “indispensável aos diabéticos, dispépticos, e estômagos debilitados”. A padaria vendia manteiga finíssima, azeite puro do Douro e do Alentejo e era “depósito de vinho sem álcool Simplex”.
A Estância do Seixoso, na Lixa, “a quatro horas do Porto”, ocupava uma página para descrever curas de descanso, tratamentos de fraqueza geral, doenças do intestino, da circulação, do rim e da bexiga, da diabetes, gota, reumatismo. As termas de Monchique também anunciavam as suas virtudes medicinais. Havia ainda anúncios de consultas médicas, alfaiatarias, caixeiros com prática, serviços de saneamento, balneários públicos, sabonetes naturistas ingleses fabricados com óleos, cinzas de plantas, essências de flores, “os únicos isentos de soda cáustica”, sem qualquer gordura animal. Quase tudo cabia na revista portuguesa lida no Brasil, colónias ultramarinas, vários países europeus.
Em 1916, Julieta Ribeiro publicava o livro “Culinária vegetariana, vegetalina e menus frugívoros” com mais de 1 200 receitas para facilitar a transição da dieta vegetariana para a dieta frugívora (ingestão de frutos crus). Nabiças esfiadas. Guisam-se as nabiças em estrugido de azeite, cebola, alho e loureiro. Coze-se à parte batatas, ralam-se e juntam-se à couve guisada e, querendo, um ovo batido. Vagens tortas. Tiram-se os fios às vagens, se elas os tiverem, quebram-se em bocados e lavam-se, deitam-se em azeite quente, junta-se-lhes algum sal, água a ferver e deixam-se cozer. Antes de se servirem deita-se-lhes por cima pão ralado, manteiga e salsa picada.
Dois anos antes da publicação do livro, que teve mais três edições até 1923, com 79 imagens, sobretudo de gente com ar saudável e sem sinal de magreza, Julieta Ribeiro e Jerónimo Caetano Ribeiro, editor e um dos fundadores de “O Vegetariano”, casam-se. Há honras na revista que anuncia o enlace como o primeiro casamento do Mundo entre frugívoros e uma boda “sem despojos cadavéricos”.
No início do século XX, Portugal tinha uma comunidade vegetariana, naturista que se alimentava de frutas, verduras, legumes crus, descrente dos métodos da medicina tradicional, que dizia e escrevia de peito aberto que o homem é frugívoro por destino e carnívoro por acidente. “O Vegetariano” era a voz dos vegetarianos e naturistas portugueses, com textos escritos em francês e inglês com a devida tradução, artigos, fotografias de bebés e crianças saudáveis e de famílias inteiras que se alimentavam de frutas cruas, anúncios, relatos médicos. A revista foi publicada ininterruptamente durante 26 anos, de dezembro de 1909 a dezembro de 1935, a partir do Porto e com quase quatro mil subscritores em todo o país, do norte ao sul, do litoral ao interior. Surgiu antes da Implantação da República, atravessou a I Guerra Mundial, resistiu aos primeiros anos da ditadura de Salazar, passou pelo crivo da censura a partir de 1928.
As histórias resgatadas de “O Vegetariano” estão prestes a ser reveladas na exposição “Pêros, Avelãs e Figos. Os vegetarianos utópicos de há 100 anos”, que é inaugurada na próxima quinta-feira, na galeria da Casa Comum da Reitoria da Universidade do Porto, e lá ficará patente até ao final do ano. A aventura coletiva dos nossos antepassados é contada através de vários elementos e materiais que demonstram a fibra, ideias e pensamentos dos vegetarianos e naturistas do início do século passado. Afinal, o vegetarianismo não é um assunto dos tempos modernos.
Esta comunidade dizia o que pensava. O vegetarismo não é uma seita é o título de um dos artigos de “O Vegetariano”. “Não se confunda o vegetarismo com uma seita, com uma religião, com uma ideia política ou com uma sociedade mercantil que conta mais tarde obter lucros das ideias que espalhou; não, o vegetarismo é o estudo do grande problema da alimentação.” Ponto final.
Argumentos científicos e repúdio da carne
“O Vegetariano” é um livro aberto. A família Wiborg, de Lisboa, narrava o seu estilo de vida na revista com ideias e convicções. Em 1911, numa das cartas enviadas à redação, relata a sua vida naturista, o regime frugívoro dos filhos, melhores alunos em colégios da Suíça, o exercício físico e os banhos de sol, e um regime alimentar à base de peros, laranjas, avelãs e figos, apenas duas vezes por dia. Tudo devidamente acompanhado por fotografias da família a comprovar a robustez física e a eficácia da alimentação.
Manuel Teixeira Leal, professor do magistério primário, foi o fundador da revista que deixou de ser publicada quando morreu. Primeiro, a partir da Avenida Rodrigues de Freitas; depois, da Rua Elias Garcia. Amílcar de Sousa, médico naturista, foi diretor e esteve à frente da Sociedade Vegetariana de Portugal. Trocava correspondência com responsáveis de publicações semelhantes em vários países, traduzia artigos, publicava monografias, anunciava congressos da especialidade, publicitava estâncias termais e institutos de formação naturista. E escrevia o que lhe ia na alma. “Todo o remédio é uma burla e todo o alimento cozinhado um tóxico.” A natureza tem poderes. “Unicamente recomendemos o sol e a luz, o ar e a chuva, as nozes e os frutos, as raízes e as saladas”, escrevia Amílcar de Sousa, que se apresentava como “médico especialista de doenças de nutrição”.
Esta e outras histórias são recuperadas pelo projeto Alimentopia, composto por 27 investigadores de diversas áreas, da nutrição à cultura, da literatura à antropologia, que se dedica a estudos sobre alimentação, que associa utopia e alimentação, e que lança perguntas (quem cozinha, o que comemos, o que devemos comer, quais as opções, entre outras). É neste contexto que surge a exposição e a publicação, no final do mês, de uma antologia de 60 textos naturistas, escritos em oito línguas, a partir do século XVI, entre outras atividades.
Tudo começou com um acaso feliz na Biblioteca Municipal do Porto. José Eduardo Reis, professor de Literatura Comparada na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, descobriu um texto que falava de uma comunidade utópica, que vivia numa ilha, e era vegetariana. “Irmânia” de Ângelo Jorge. Foi o ponto de partida. Percebeu-se que não era um texto isolado e que Ângelo Jorge fazia parte dessa comunidade vegetariana do Porto e secretário de redação de “O Vegetariano”.
A partir daí, começou a investigação dessas publicações, cujos exemplares estão na Biblioteca Nacional. “Nunca tal tinha sido estudado”, comenta José Eduardo Reis, que se debruçou com maior detalhe em quatro médicos portugueses, Amílcar de Sousa, João Vasconcelos, Bentes Castel-Branco, Indíveri Colucci (italiano radicado em Portugal), e três estrangeiros Kuhne, Paul Carton e Monteuuis, que escreviam na revista. “Eram médicos naturistas que preconizavam uma dieta vegetariana com base na convicção de que essa dieta garantia melhores condições de saúde”, adianta. “Não eram só médicos que receitavam mezinhas naturistas ou uma alimentação vegetariana, eles tinham uma filosofia de vida muito particular”, acrescenta. Colocavam em causa a medicina convencional, rejeitavam a proteína animal, repudiavam a carne, destacavam os elementos da natureza, os tratamentos da água, da luz do sol, da terra.
A comunidade vegetariana portuguesa era sobretudo da média burguesia, industriais, homens de negócio, gente ligada ao exército e ao clero. “Crítica e esclarecida com uma grande ligação ao que se passava lá fora”, explica Fátima Vieira, coordenadora do projeto Alimentopia e vice-reitora da Universidade do Porto. E que usava várias ferramentas para passar as suas mensagens através de “O Vegetariano”.
Argumentos científicos como a publicação de uma tabela nutricional dos diferentes produtos nas dietas vegetariana, vegetalina e frugívora. Muitas fotografias a preto e branco como prova documental, retratos de crianças, adultos, famílias inteiras atletas, que irradiam saúde. A longevidade assente no consumo de produtos naturais. O repúdio da carne com fotografias de matança de porcos, animais abertos em matadouros, textos a chamar “assassinos” aos “comedores de cadáveres”.
Os leitores escrevem, enviam perguntas para o consultório médico de “O Vegetariano”, cartas que chegam da China, França, Estados Unidos, Índia, Itália, Guiné, Argentina, Angola. “É incomum o fenómeno do envolvimento dos leitores”, sublinha a coordenadora do Alimentopia. A exposição mostrará uma comunidade pouco conhecida, que a História quase recalcou. “Esta memória do nosso passado foi apagada, é importante recuperá-la mesmo em termos de identidade.” Identidade de um país.
O projeto Alimentopia, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, está quase a chegar ao fim em termos formais. Para Fátima Vieira, o trabalho continua e até poderá estar num novo início. “Não queremos apenas despertar, mas também envolver.” Ou seja, a exposição não é apenas uma exposição. Poderá ser um gatilho da memória para reconhecer fotografias de familiares, resgatar histórias, mergulhar no passado, descobrir mais material. E construir mais histórias com histórias de outras gentes que ainda desconhecem a vida dos seus antepassados.