Guerra ao alcoolismo faz ricochete no vinho

Foto: Leonel de Castro/Global Imagens

Texto de Pedro Emanuel Santos

“Atenção, o consumo de vinho pode provocar cancro.” Avisos semelhantes, bem visíveis, serão em breve paisagem de todas as garrafas de bebidas alcoólicas à venda na Irlanda. Uma decisão polémica que agita a sociedade irlandesa e que foi centro de debate durante praticamente três anos – “mais de mil dias”, como lembrou o ministro da Saúde irlandês, Simon Harris -, agora tornada realidade num país que faz do uísque e da cerveja quase patrimónios nacionais.

A lei aprovada pelo Parlamento e pelo Senado irlandeses prevê, também, preços mínimos para a venda dos diferentes tipos de álcool e limitações ao marketing e publicidade das marcas de bebidas, cujas campanhas passam a estar bastante limitadas nos cinemas e nas televisões, além de totalmente proibidas em paragens de autocarros, estações de comboios e parques públicos.

Isto num país que, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), apenas é superado pela Áustria no consumo médio de álcool por habitante, com 39% da população acima dos 15 anos a registar valores considerados pesados para os parâmetros da OMS.

Mas, afinal, será que tal plano reúne condições para que sejam obtidos resultados práticos no futuro? O consumo de álcool irá diminuir com tantos e tão visíveis avisos sobre os perigos para a saúde? Em Portugal seria possível adotar plano semelhante?

A mensagem não é rigorosa

“É um precedente muito negativo e o receio é que possa ter efeito de contágio em toda a Europa”, teme, em declarações à NM, Ana Isabel Alves, secretária-geral da Associação de Vinhos e Espirituosas de Portugal.

“O que se passou na Irlanda foi a vitória de um setor radical, algo completamente desajustado”, lamenta, por sua vez António Vinagre, presidente da Federação Nacional de Viticultores Independentes. “Como em Portugal se pôde verificar aquando da aplicação de rótulos nos maços de cigarros, não houve diminuição do número de fumadores”, defende.

O bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, discorda e considera “importante que todos os produtos com impacto potencialmente nocivo na saúde incluam essa informação na sua rotulagem de forma clara e facilmente apreendida pelos cidadãos”. O caminho de divulgação da mensagem é que pode tomar várias rotas e “não significar uma abordagem sempre agressiva ou chocante”.

Rótulos como este vão passar a constar de todas as garrafas de bebidas alcoólicas à venda na Irlanda.

“Mais importante e eficaz do que uma abordagem que se dirige ao cidadão no momento do consumo é investir numa estratégia continuada de saúde pública que conduza a um aumento da literacia em saúde”, considera o bastonário.

Ana Isabel Alves garante que “a mensagem de que o vinho causa cancro não é rigorosa”. E explica: “Bebido com moderação, o vinho até diminui o risco de cancro. Além de que há outros consumos que aumentam o risco de doença, como o caso das comidas muito quentes, que provocam cancro do esófago, ou da carne processada, que pode levar a cancro do estômago”.

O turismo e o estigma

Em declarações ao jornal “Irish Times”, o advogado Eunan McKinney, um dos principais impulsionadores e entusiastas da polémica medida, lembra que “três pessoas morrem diariamente na Irlanda em consequência de complicações ligadas ao álcool”, e que “muitas delas não têm consciência dos riscos associados” aos consumos elevados.

A Alcohol Beverage Federation of Ireland (Federação Nacional das Bebidas Alcoólicas da Irlanda) emitiu um comunicado em que lamenta “os danos incalculáveis” para a indústria que a medida acarreta. Também há quem tema os efeitos nefastos para o turismo, sobretudo ao nível das visitas às destilarias de uísque, que só o ano passado subiram 13% e são, em larguíssima maioria, protagonizadas por cidadãos estrangeiros – 88%, boa parte provenientes dos Estados Unidos e do Canadá, de acordo com dados da Irish Whiskey Association (IWA).

“Os avisos sobre cancro são um estigma sem precedentes apontado ao uísque irlandês e que outras indústrias internacionais do género, como a escocesa ou a americana, não têm de encarar”, critica Willliam Lavelle, da IWA.

Nenhum outro país obriga a avisos públicos tão evidentes e expressivos sobre os perigos do álcool. Apenas o estado de Yukon, no Canadá, adotou idêntica medida em 2017. A Coreia do Sul estuda uma iniciativa semelhante, mas o processo está ainda em fase embrionária.