Guardas-florestais em fúria
Por estes dias perigosamente estivais, repetitivos, extenuantes, em que Portugal entra em “incêndios fora de controlo”, em “aldeias cercadas pelas chamas”, em “meios aéreos insuficientes”, em “populações em pânico”, em “mãos criminosas”, em feridos, mortos, vítimas e culpados, uma guerra entre guardas-florestais está fora de tom. Mas, tal como um grande incêndio de floresta, o ser humano tem tanto de belo como de horrível, de grandioso e de mesquinho, e vale a pena contar esta guerra.
No tribunal não se ouviu o clássico “era amarrá-lo a um pinheiro e deitar-lhe fogo”, coisas dessas, mas o caso começou há vários anos na zona de Mafra, quando um sargento da GNR foi acusado de espancar um prisioneiro. Foi dentro do posto dos guardas-florestais e, mais tarde, um mestre florestal, civil ao serviço no mesmo posto, testemunhou sob juramento e disse o que viu: o sargento a arrastar pelo chão o corpo de alguém. E o que ouviu: um prisioneiro a dizer que foi esmurrado.
Agora ali estava o sargento M., grande como um cavalo, de careca luzidia, a queixar-se de voz tremida de tudo o que sofrera desde que fora acusado de violência: um processo-crime, acusações disciplinares, dias de suspensão, desconfiança da hierarquia, chamadas para mais declarações e impossibilidade de subir na carreira. Toda a sua vida congelada. No banco dos réus estava o mestre florestal Luís C., em fato azul, de cabelo escovado. O sargento trazia testemunhas. Outro militar da GNR contou que Luís C. tinha dito que o sargento M. “perseguia os civis lá dentro”.
– Quando diz civis, quer dizer os que trabalham nos serviços florestais?, continuou o juiz.
– Sim. Eu não gosto de falar neste processo que me deitou mesmo abaixo.
Um terceiro, em farda de gala, defendia a honra do seu superior.
– Eu já conhecia o sargento M., antes de ele ser meu chefe.
– Como é que ele é, profissionalmente?
– Excelente profissional, chefe muito competente.
Quanto ao funcionamento da segurança florestal, tem duas partes distintas que são um pouco água com azeite: os ex-guardas-florestais que são agora GNR, e também os guardas-florestais civis.
– Existe mau ambiente?
– Não, muito bom, sorriu o GNR na farda de gala.
Lembraram-lhe então que o mestre florestal principal civil, Luís C., testemunhara em tribunal sobre os maus tratos cometidos por um sargento contra um detido dentro do posto. E que o sargento, depois de absolvido desse crime por falta de provas (evitando a expulsão), contra-atacara com a acusação de calúnias contra o mestre florestal principal civil Luís C.
– Havia situações em que ele pura e simplesmente não aceitava o que lhe dizia o chefe. Não aceitava que o sargento M. lhe desse ordens, dizia que este não tinha autoridade.
O advogado do sargento M. queria uma definição psicológica:
– Ele disse que o sargento M. teria esmurrado um prisioneiro… O sargento seria pessoa para fazer isto?
– Que eu tivesse visto, não.
O juiz suspirou e explicou a desordem fundadora do problema, um dos mais antigos da humanidade:
– Quem é que manda em quem, que classe profissional tem a superioridade hierárquica, é questão que tem muitos anos e que, pelos vistos, não irá ser resolvida.
Mais uma testemunha, um mestre florestal (não principal), balançou o seu coração de subordinado, aflito.
– O sargento M. é uma pessoa íntegra, competente.
– E em relação ao mestre principal?
– Como serviço, nada tenho a dizer. Como pessoa, tem uma personalidade vincada, mais difícil. Ele tem uma filosofia: manda quem pode, obedece quem deve…
Então a procuradora da República pediu a absolvição do mestre florestal Luís C. Uma testemunha tem de dizer a verdade em tribunal, se não o fizer comete o crime de perjúrio. Como o mestre florestal Luís C. não fora acusado de falsas declarações, não podia agora ser condenado por dizer que viu a agressão dentro do posto. Mesmo que o sargento M. tenha sido ilibado “in dubio pro reo”.
– Isto está excelente!, disse a advogada a Luís C. no corredor.
– Também lhe digo: se ela dissesse outra coisa, eu deixava de trabalhar nisto, eu deixava de acreditar nisto, sorriu ele.
Advogada e acusado entraram no elevador, aliviados como se o sinistro entrasse em fase de rescaldo.
(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)