Por Ana Tulha
O cronómetro seguia impiedoso, extenuante, quando a história se insinuou. Prolongamento. 105 minutos. Cabrito (chapéu) de Andreia Norton a meio-campo, passe de Cláudia Neto para a velocidade de Ana Borges na direita e cruzamento certeiro para Norton atirar rumo à eternidade (certo, as romenas ainda empataram mas de nada valeu, porque a primeira mão do play-off tinha dado num empate sem golos).
E assim, a 25 de outubro de 2016, a principal seleção feminina de futebol garantiu uma inédita presença num Campeonato da Europa, anunciando aos mais distraídos que o futebol feminino tinha jurado fazer-se caso sério.
Quase três anos depois, com uma nova época a começar, a missão vai-se cumprindo com boas notícias. Desde o crescimento considerável do número de atletas federadas (em 2016, eram perto de 3 mil; hoje, rondam as 5 500) ao aumento do número de competições – nesta temporada arrancam a Taça da Liga e o Campeonato Nacional de sub-19 em futebol de 11.
Além de uma montra com um elenco cada vez mais palpitante. Pela primeira vez, a principal liga de futebol feminino contará com a presença do Benfica, que se junta a Sporting e Sporting de Braga, respetivamente vice-campeão e campeão da última época. As bracarenses até garantiram no mês passado a qualificação para os 16 avos da Liga dos Campeões feminina, fazendo história com um apuramento 100% vitorioso.
Ingredientes de sobra para uma temporada histórica. “Será com certeza a época que mais atrativos terá, com uma grande competitividade na conquista dos troféus em disputa”, reconhece Maria João Xavier, gestora desportiva das equipas de futebol feminino do Sporting.
“Será o campeonato mais imprevisível e aquele em que haverá mais qualidade”, concorda Sofia Teles, diretora do futebol feminino do Sporting de Braga. Mais qualidade traz mais competitividade, que por sua vez abre portas ao investimento e à chegada de nomes mais sonantes. Paralelamente, o interesse na modalidade cresce, tanto para patrocinadores como para o público, com sucessivos recordes de assistência a serem batidos.
De resto, Portugal até já exporta atletas para os colossos europeus, tendo agora representantes em clubes como o Manchester City (Matilde Fidalgo), o Wolfsburgo (Cláudia Neto), o Inter (Andreia Norton), o Milan (Mónica Mendes) ou o Lyon (Jéssica Silva). Nisto, as seleções nacionais vão-se projetando, como demonstra o inédito 30.º posto ocupado por Portugal no ranking da FIFA. E a espiral segue, a transbordar razões para o otimismo.
“Vivemos um momento de explosão do futebol feminino. Estamos a entrar num período em que só podem surgir coisas cada vez melhores”, resume Maria João Xavier. O fenómeno tem a alta assinatura dos clubes e da Federação Portuguesa de Futebol, mas é também catapultado por um crescimento sem precedentes num contexto global. “É um momento de grande impulsão, de grande entusiasmo, muito graças ao Campeonato do Mundo. Isso nota-se tanto ao nível do marketing, como da comunicação, mesmo das redes sociais”, sublinha Mónica Jorge, diretora da Federação Portuguesa de Futebol.
O Mundial, que decorreu entre junho e julho deste ano, em França, foi um marco incontornável. Porque se houve um tempo em que a vitória numa grande competição de futebol feminino valia apenas um… conjunto de chá (verdade, aconteceu com a Alemanha, aquando da conquista do Campeonato da Europa de 1989) e em que um presidente da FIFA – certo: Joseph Blatter, em 2004 – chegou a defender que as jogadoras de futebol deviam usar “calções mais curtos”, agora há razões para sorrir.
Os prémios do Campeonato do Mundo chegaram aos 27 milhões de euros, os bilhetes para as meias-finais e as finais da prova esgotaram em menos de 48 horas e até os adeptos se uniram num grito de guerra, em plena final. “Equal pay” [igualdade salarial], entoou-se em uníssono no Estádio do Lyon (em França), durante o jogo que resultou na vitória das americanas sobre as holandesas.
Mais: Marta, a reputada avançada brasileira que se tornou a melhor marcadora de sempre em Mundiais, entrou em campo com umas chuteiras pretas porque, apesar das muitas propostas de patrocínio das grandes marcas desportivas, se recusa a assinar um contrato enquanto não lhe pagarem o mesmo que pagam aos homens.
Se foi o maior investimento que atraiu mais reconhecimento ou o reconhecimento que se fez chamariz para o investimento ninguém sabe. Certo é que, pelo Mundo fora, há cada vez mais programas de desenvolvimento do futebol feminino, mais infraestruturas e campeonatos nacionais mais competitivos. A aposta traduz-se em números.
Mundialmente, há hoje cerca de 30 milhões de mulheres que jogam futebol (em 2006, por exemplo, eram quatro milhões). E a ideia é duplicar este número até 2026. Os registos da UEFA também são animadores.
Segundo o organismo que tutela o futebol europeu, o número de jogadoras profissionais e semiprofissionais duplicou nos últimos quatro anos e o número de equipas femininas subiu de 21 mil para 35 mil, com avanços que, há uns anos, não passariam de uma miragem: o Ajax, por exemplo, anunciou que iria oferecer às jogadoras o mesmo salário mínimo e seguros que paga aos homens. Não é à toa que Aleksander Ceferin, presidente da UEFA, defende que o potencial do futebol feminino “não tem limites”.
Uma subida de quase 250%
Isso mesmo parecem mostrar os registos de praticantes em Portugal. O número total de atletas femininas registadas na FPF, entre futebol e futsal, está próximo das dez mil e o peso relativo das mulheres no total de atletas federados subiu 248% no espaço de duas décadas e meia.
A percentagem (5,2%) continua a ser manifestamente baixa, mas os dados atestam que há muito por onde crescer – e um imenso trabalho pela frente. Para isso, espera-se, muito contribuirá o plano estratégico de desenvolvimento do futebol feminino, lançado pela FPF em 2015.
“O plano incide em três vertentes fundamentais: por um lado, a nível associativo, com os centros de treino das associações distritais e a criação das seleções distritais; por outro, a criação de novas competições para a formação, das sub-13 às juniores; por fim, a remodelação das provas seniores, com a adesão dos principais clubes”, explica Mónica Jorge.
Foi nesse sentido que, em março de 2016, a FPF lançou aos 18 clubes da principal liga de futebol masculino um convite arrojado, para que abrissem equipas femininas. Quatro delas teriam acesso direto ao primeiro escalão. Sporting (que até já tinha tido uma equipa nos anos 1990), Sporting de Braga, Belenenses e Estoril, que na altura já possuíam equipas a competir no segundo escalão do futebol feminino, foram os primeiros a chegar-se à frente.
Dois anos depois, também o Benfica avançou com uma equipa de futebol feminino. Após um ano a competir no segundo escalão, com números que até a CNN destacou (27 vitórias e um empate, 365 golos marcados e apenas um sofrido), da vitória na Taça de Portugal e do triunfo, há uma semana, na Supertaça, as águias preparam-se agora para se estrear na principal liga feminina.
A ambição é grande, dentro e fora de portas. “O Sport Lisboa e Benfica sabe o trabalho que está a ser feito e onde quer estar logo que possível: entre a elite feminina do futebol. (…) Queremos estar regularmente nas competições femininas da UEFA e não apenas para participar”, sublinhou, à “Notícias Magazine”, Fernando Tavares, vice-presidente do clube da Luz.
O dirigente encarnado realça ainda a aposta na formação. “Além das seniores, o Benfica foi campeão nacional sub-19, campeão distrital sub-17 e triunfou na taça nacional de sub-15.” Ao todo, além das seniores, as águias contam já com mais quatro equipas de futebol feminino (duas de sub-19 e duas de sub-15), num total aproximado de uma centena de atletas federadas.
A progressiva aposta na formação estende-se a Sporting (quatro equipas, profissional incluída, 94 atletas federadas) e ao Sporting de Braga (três equipas, 64 atletas federadas).
Ainda que a filosofia aplicada às equipas seniores seja, para já, distinta entre os três clubes. O projeto dos leões passou, desde o primeiro dia, por fazer regressar a Portugal jogadoras da seleção que atuavam no estrangeiro – casos de Rita Fontemanha, que estava no Atlético de Madrid, Tatiana Pinto, que atuava no Bristol, e Ana Borges, que vestia as cores do Chelsea, por exemplo. Daí que a aposta na prata da casa continue a ser forte. Prova disso é o facto de a formação leonina ter apenas cinco estrangeiras na equipa principal.
No caso do Braga, e sobretudo do Benfica, a filosofia, deduz-se, passa mais por alavancar a qualidade da equipa com o recurso a jogadoras estrangeiras (nove nas bracarenses, 14 nas águias), para só mais tarde fazer valer a aposta na formação. “Para já, o leque de jogadoras portuguesas com qualidade ainda é restrito.
Daí a aposta em estrangeiras. Quando houver um leque maior, será mais fácil”, justifica Sofia Teles, do Sporting de Braga. “No futuro, a jogadora portuguesa terá ainda mais capacidade e respeito internacional. Naturalmente, prevemos que a nossa equipa sénior beneficiará, e muito, a médio prazo, com o investimento estruturado na formação”, considera também Fernando Tavares, do Benfica.
Quando treinar era… correr na bancada
Se a entrada em cena das grandes potências do futebol masculino tem contribuído para dotar a modalidade do interesse e do mediatismo que há muito fugiam, o percurso tem dedo de todos os que construíram com muito amadorismo e suor à mistura.
Tem o nome de históricos como o 1.º de Dezembro, ainda hoje (já sem equipa sénior de futebol feminino) o clube com mais títulos de campeão (12), o Albergaria ou o Boavista, o clube que há mais tempo aposta no futebol feminino de forma ininterrupta, com 11 títulos de campeão no palmarés.
Todos remaram contra a maré num tempo em que o profissionalismo era uma miragem, em que os jogos se faziam em pelados e em que era perfeitamente normal pré-adolescentes jogarem contra atletas de 30 e 40 anos – sim, porque não havia jogadoras suficientes para dividir a competição por escalões.
Alfredina, que chegou ao Boavista como jogadora em 1976, com 12 anos (e que ainda hoje é treinadora da equipa feminina dos axadrezados, entretanto despromovida ao segundo escalão), recorda uma realidade completamente distinta.
“Na altura em que comecei, não havia sequer um quadro competitivo oficial, nem a nível associativo, muito menos a nível federativo. Os clubes sobreviviam de torneios que iam realizando e ninguém nos levava a sério. Até os treinos… muitas vezes treinávamos na rua ou andávamos a correr nas bancadas”, lembra uma das primeiras internacionais portuguesas – mais precisamente desde 1981, quando, pela primeira vez, Portugal foi convidado a disputar uma partida de futebol feminino em França.
Mais de uma década depois, em 1993, estrear-se-ia na equipa das quinas Carla Couto, ainda hoje a mais internacional de sempre (145 chamadas à principal seleção feminina). A modalidade ia evoluindo devagar, devagarinho. “Na minha altura, a maior parte dos treinadores estava lá por carolice e havia enormes diferenças de idades entre as jogadoras”, recorda.
Ser profissional em Portugal era uma utopia, emigrar era difícil. Já nos últimos anos da carreira, Carla ainda se aventurou no futebol chinês durante três meses e no italiano durante meio ano, para representar a Lazio, mas nem aí a experiência foi brilhante, já que passou meses sem receber.
Acabaria a carreira no Valadares que, em 2012, bem antes do plano estratégico da FPF, da entrada em cena dos clubes “grandes” e da inédita qualificação para o Europeu, decidiu apostar forte no futebol feminino. “Entendemos não ser só mais um clube masculino e ter um projeto desportivo mas também social, dar oportunidade às meninas de jogarem à bola”, contextualiza José Manuel Soares, presidente. Por isso, logo em 2012, os gaienses contrataram nomes de vulto para as seniores (Carla Couto e Edite Fernandes, por exemplo) e apostaram forte na formação.
A prova é que o Valadares tem hoje equipas femininas em todos os escalões (desde as sub-11) e é o emblema português com mais atletas inscritas na FPF – perto de 150. Mesmo que o orçamento esteja longe de se equiparar aos dos três “tubarões” da liga feminina. Questionados pela “Notícias Magazine”, Benfica, Sporting e Sporting de Braga optaram por não revelar valores, mas não custa adivinhar que ultrapassem largamente os 70 mil euros reservados pelos gaienses.
“A filosofia sempre foi procurarmos crescer em termos de números, para aumentarmos a competitividade interna e conseguirmos captar atletas com mais qualidade. Depois, desde a entrada em cena do Sporting e do Braga, tivemos de perspetivar as coisas de forma diferente. Dada a discrepância em termos financeiros, tornou-se obrigatório reforçar a aposta na formação para ter boas atletas nas seniores”, conta Nuno Pereira, coordenador da academia de futebol feminino do Valadares.
O clube até assinou recentemente um protocolo com o Benfica, que envolve cedências de jogadoras e direitos de preferência. Mas, se a entrada de clubes mediáticos é uma boa notícia para a modalidade, também pode ser uma valente dor de cabeça para os clubes formadores, face ao assédio dos emblemas que podem oferecer melhores condições.
Nuno Pereira alerta para isso mesmo. “Todos os anos temos perdido atletas, principalmente nos escalões seniores. E o atual momento tem sido uma loucura. Todos os dias nos contactam a propósito das nossas atletas. Há um assédio muito grande”, relata, preocupado. As boas notícias emergem, ainda assim. A aposta na formação, tanto por parte de clubes como o Valadares como da própria da FPF, tem dado frutos inegáveis, plasmados nos resultados das seleções mais jovens, que têm marcado presença em praticamente todas as fases finais das grandes competições.
Mandaram-na coser meias. Acabou no Mundial
A evolução não se cinge ao crescimento do contingente de atletas, em qualidade e quantidade. Há hoje técnicos com muita mais formação – desde logo porque para treinar uma equipa da principal liga feminina é preciso ter o nível B da UEFA. E a evolução também chega à arbitragem. Sandra Bastos, que em junho se tornou a primeira árbitra portuguesa a apitar um Mundial de futebol feminino, que o diga. Quando começou, em 2001/02, uma mulher na arbitragem ainda era uma ave rara.
“Ouvi muitas vezes coisas como ‘vai coser meias’ ou ‘o teu lugar é na cozinha, a lavar a louça’. Mas sempre encarei isso com um sorriso nos lábios, porque sempre tive a convicção de que o meu lugar era onde eu quisesse”, partilha, bem-disposta. O presente tende a dar-lhe razão. Aos 41 anos, já se pode gabar de ter feito história no Mundial de França e de apitar jogos do Campeonato de Portugal. “Tenho tido excelentes feedbacks”, orgulha-se.
O exemplo de Sandra é o lado mais visível de uma evolução global.
Ana Brochado, ex-árbitra e hoje vogal do Conselho de Arbitragem da FPF, frisa que Portugal “está no topo das boas práticas ao nível da arbitragem feminina”, muito graças a “um cuidado muito grande na regulação da atividade, à aposta na formação e à adjudicação de recursos”. Os números apontam nesse sentido: no início deste ano, havia 51 árbitras nos quadros nacionais da FPF. Em 2000, eram apenas 15. Também por isso, não tem dúvidas: “A arbitragem portuguesa está no início de um percurso de muitos reconhecimentos”.
No entanto, nem tudo são boas notícias. Desde logo porque há, em termos de mentalidade, barreiras que ainda não caíram totalmente. “Diria que estão ultrapassadas em 80%, mas são coisas que não conseguimos mudar de um momento para o outro. Estas novas gerações é que vão conseguir mudar a nossa cultura. Tem de ser algo natural e não imposto. Diria que daqui a quatro, cinco anos as barreiras estão ultrapassadas”, augura Mónica Jorge. Entretanto, há outros sinais pouco entusiasmantes.
Os resultados de um inquérito conduzido pelo Sindicato dos Jogadores no ano passado indicavam que só 7,3% das futebolistas portuguesas eram profissionais (uma evolução em relação ao que acontecia há pouco anos, ainda assim) e que só 1,7% das atletas atingia um máximo mensal de dois mil euros. O inquérito revelava outros números menos animadores: 58,1% não recebiam qualquer salário e 36,4% relatavam já ter sido vítimas de discriminação.
Não admira por isso que, apesar da evolução registada nos últimos anos, estejamos ainda a anos-luz das grandes potências do futebol mundial. Na liga feminina alemã, por exemplo, os salários anuais médios rondam os 37 mil euros. Uma discrepância que naturalmente se traduz em campo.
Cláudia Neto, uma das mais reputadas internacionais portuguesas no ativo, já atuou em Espanha e na Suécia e está desde 2017 no campeonato germânico, ao serviço do Wolfsburgo. “A grande e principal diferença está na intensidade com que se treina e joga e no profissionalismo de todas as jogadoras. É um campeonato muito competitivo (…), em que temos todas as condições para pensar só no treino”, elogia a média ofensiva.
Quanto à evolução do futebol feminino em Portugal, resume-o em duas palavras: crescimento sustentado. E como imagina a modalidade no nosso país daqui a dez anos? “Com uma liga completamente profissional.” Três anos depois de Andreia Norton atirar para a eternidade, a história teima em insinuar-se. E já ninguém duvida que o futebol feminino vai fazer-se caso sério. To be continued.