
Texto de Sara Dias Oliveira
O clique da arma encravada apontada à cara, como num filme, nunca há de sair-lhe da memória. Uma família desestruturada, violência doméstica, inquirições feitas, um mandado de detenção. Cláudia Matos, agente principal na Divisão de Investigação Criminal da PSP do Porto, saiu em serviço com mais quatro colegas para deter o agressor. Polícias em vigilância, em diferentes pontos, junto ao prédio da vítima no centro da cidade.
O homem vinha armado, viu o filho da ex-companheira, sacou da arma, disparou, mudou de trajetória, fez mira à cara da mulher polícia e a pistola encravou. Uma fração de segundos. O rapaz fugia, o agressor atrás dele, polícias em ação, perseguição, mais disparos, o homem era atingido numa perna, levado para o hospital, julgado, preso. A intervenção policial evitou duas mortes que estariam premeditadas, da mulher vítima de violência doméstica e do filho.
Cláudia Matos, 43 anos, polícia há quase 22, recebeu o Prémio de Segurança Pública. A medalha está guardada numa gaveta. “O importante foi o abraço que recebi do filho e da vítima”, realça. Nesse final de tarde, ela e os colegas pensaram que aquele poderia ter sido o dia em que não voltariam para casa. “Não acontece como nos filmes. Ao vivo e a cores, a coisa é totalmente diferente.” Não arrumou a farda, continuou. “Para mim, é um privilégio ter a profissão que escolhi, fazer o que gosto, aquilo em que acredito. Ao fim de quase 22 anos, é um privilégio.”
Desde 2001 que a sua secretária se cobre de queixas e histórias de violência doméstica. “A violência doméstica não é uma equação, tudo gira à volta de emoções, de sentimentos”, comenta. É um trabalho duro que lhe preenche os dias. Neste momento, está num campo de refugiados no Sudão do Sul, numa missão das Nações Unidas até final de junho, a coordenar um gabinete de investigação policial. Esteve oito anos em lista de espera para realizar esse sonho.
“Quando voltar e colocar os pés em Portugal, vou ser uma pessoa diferente”, confessa nesta conversa a partir do Sudão. Em criança, a imagem do pai polícia a entrar em casa com a farda passada a ferro enchia-a de orgulho. Seguiu-lhe os passos, concorreu à polícia e entrou à primeira.

Rui Correia, 53 anos, professor de História do 3.º ciclo na Escola Básica de Santo Onofre, nas Caldas da Rainha, vive uma felicidade partilhada com abraços, beijos, mensagens, convites para entrevistas e surpresas que o deixam de coração cheio. É homem de lágrima fácil que aprendeu com o pai a agradecer e a ficar em silêncio. Um dia depois de receber o Global Teacher Prize Portugal deste ano, tinha toda a escola a recebê-lo à entrada, cartazes com a sua cara e depoimentos escritos à mão por alunos, e um aviso na porta da sala de aula do primeiro tempo da manhã: “Shiu, o n.º 1 está a trabalhar”.
Nessa semana, a Associação Industrial da Região do Oeste convidou-o para uma iniciativa sobre inovação e empreendedorismo e encheu-lhe o palco com ex-alunos. Rui Correia, 30 anos de ensino público, natural de Viseu, crescido na Figueira da Foz até ir para a universidade, com aulas dadas em Coimbra, Amarante, São Martinho do Porto, há 23 anos nas Caldas da Rainha, é o professor do ano. E faz questão de esclarecer: “Não sou o melhor professor de Portugal, há milhares de professores tão bons ou melhores do que eu”.
O não querer saber é o seu principal inimigo e tem medo do faz de conta, “da tentação de mostrar sucesso, mesmo que o sucesso não seja real”. Acredita que aprender é para todos, que ninguém pode ser deixado para trás, que é essencial perceber as dificuldades dos alunos para potenciar talentos. E acredita que isso não são palavras feitas. Escrutinou várias técnicas para manter a atenção em alta, resumos a 15 minutos de aula, copos semáforos para que os alunos demonstrem como estão a aprender a matéria.
“Na aprendizagem, é estabelecida uma relação de grande amabilidade e entendimento recíproco. Os alunos têm de estar à vontade, saber que podem errar e que a distração faz parte da aprendizagem. As minhas aulas são muito exigentes e isto não é contraditório”, refere.
Nunca mandou um aluno para a rua, é padrinho de casamento de dois ex-estudantes. Não contribui para o eterno debate entre público e privado, interessa-lhe saber de pessoas que criativamente melhoram a vida da comunidade. Encara cada aula como uma conferência interativa e com o máximo de responsabilidade. “Qualquer aula é o grande momento do dia”, diz. “A transmissão de conhecimento é uma coisa sublime.” E o que faz para preparar as aulas? “Ler, saber mais, ouvir bem, garantir que eles dizem coisas, soltar amarras, deixar errar, aceitar que somos ridículos, divertirmo-nos, brincar, rir, rir, rir.”

(Foto: Rui Miguel Pedrosa/Global Imagens)
Está automaticamente nomeado para a edição mundial do Global Teacher Prize e já sabe onde vai aplicar os 30 mil euros do prémio nacional. “A minha aversão às mesas tem crescido muito”, admite. A plasticidade dos espaços desperta-lhe interesse e, por isso, quer equipar salas com mobiliário versátil que acompanhe a liberdade de ensinar e criar espaços de educação ao ar livre como deve ser. “Não se pode levar os miúdos para a rua só porque sim.”
Vidas em perigo, dinheiro no lixo
Treze de outubro do ano passado, sábado, hora de almoço. Uma chamada, cinco pessoas no mar na praia do Carvoeiro, no Algarve, uma mãe inglesa e os seus dois filhos, um homem alemão e o seu filho, todos em aflição. O alarme soou na Estação Salva-vidas de Ferragudo e não houve tempo para respirar. José Jeremias, um dos responsáveis pela estação, e Osvaldo Pinto, marinheiro, puseram-se a caminho para a operação de resgaste que teve um final feliz.
“Foi uma situação complicada devido às condições do mar. As pessoas estavam um pouco fragilizadas”, lembra Osvaldo Pinto, de 33 anos, há um ano a trabalhar nos salvamentos marítimos, depois de ter sido militar nas operações especiais. “O mar estava um bocado agressivo”, recorda José Jeremias, um dos responsáveis pela estação, 22 anos de serviço em 55 de vida.
Os homens estavam em casa e largaram tudo. Era preciso ir à base buscar a maior embarcação. Na praia, um rapaz numa prancha de bodyboard tentava socorrer os turistas. “Nunca há dois salvamentos iguais”, atira Jeremias. A complexa assistência, em condições adversas, valeu a medalha de coragem, abnegação e humanidade do Instituto de Socorros a Náufragos aos homens envolvidos. A primeira do marinheiro, mais uma para Jeremias. Não é isso que importa, na verdade. “Uma vida não tem preço”, sublinha Jeremias. O marinheiro concorda. “Foi apenas mais um salvamento.”

Podia ter sido apenas mais um dia de trabalho, mas não foi bem assim. Artur Alves ao volante do camião do lixo, Horácio da Costa e José Maria Pinheiro na recolha e separação dos lixos e aquela conversa habitual de nunca saber o que pode aparecer, o que se pode encontrar nos desperdícios dos outros. Naquele dia, havia ali um envelope com dinheiro e cheques, à volta de 4 400 euros, com um destino que não era aquele.
No ecocentro de Laúndos, os cantoneiros da Câmara da Póvoa de Varzim nem pestanejaram, ligaram para a chefe, para que o achado fosse entregue ao dono, e o trabalho continuou no centro de processamento de lixo. A atitude não passou em claro e a câmara atribuiu um voto de louvor aos três funcionários, filhos da terra, poveiros com orgulho, pela “seriedade demonstrada.” Seguiram-se notícias, entrevistas e um encontro no Palácio de Belém, pedido por Cavaco Silva, então presidente da República em final de mandato.
Horácio da Costa, 44 anos, tem o voto de louvor numa moldura na sala de casa, uma notícia de jornal e fotografias do momento do encontro com Cavaco. Para o mês que vem faz 21 anos de casa e entrar para a câmara era um sonho de miúdo que não sabe bem explicar. “Sou poveiro”, explica. E não tem medo de nada porque a vida ensinou-o a estar preparado para tudo.
“Já limpei gado, andei na lavoura, tirei leite.” Estava numa serração a fazer bobinas para carros elétricos quando alguém lhe falou que havia seis vagas na câmara. Tentou, conseguiu e já fez de tudo, varreu ruas, andou nos camiões do lixo, agora está na parte da reciclagem. “Gosto. Diziam que o lixo era isto e aquilo, mas não entrei para aqui com pensamentos desses. Tento fazer o meu melhor.”
José Pinheiro, 56 anos, quase 20 de câmara, pensa igual. “Como estou a trabalhar, faço o que é o meu dever. O que não é meu não é meu. O dinheiro não fala e quando se encontra tem de ser entregue ao seu dono”, defende. Naquele dia, o envelope caiu-lhe nas mãos e foi devolvido a quem de direito. É sempre assim, ontem, hoje ou amanhã. Seja uma caderneta do banco, dinheiro perdido no meio de papelada, um sapato novo dentro de uma caixa. O que seja. “Não fiz nada de especial. Muita gente não tem educação, mas esta foi a educação que tive.” Trabalhou num armazém de peixe congelado e na construção civil. É cantoneiro, gosta do que faz. “Andamos sempre ligeirinhos para fazermos tudo.”

Artur Alves reformou-se entretanto, diminuindo o peso da balança desequilibrada entre o setor público e privado. Os trabalhadores do Estado representam 15% do total dos empregados do nosso país. São cerca de 675 mil e colocam Portugal abaixo da média europeia, na cauda da lista do funcionalismo público, junto ao grupo constituído por Alemanha, Luxemburgo, Holanda, Itália, Irlanda e Espanha. No pódio da lista estão Suécia (29%), Dinamarca (28%) e Finlândia (25%).
Na batalha do SNS de bata branca
Na saúde, cada bater do coração importa. Vera Sarmento, 35 anos, médica de medicina interna no Hospital de Évora, sabe isso muito bem. A vontade de ser médica foi moldada na adolescência, por influência do avô, médico, pelo trabalho de ação social nos escuteiros, pela educação na escola. “Uma atitude de serviço ao outro que se materializou na Medicina.”
Umas décimas levaram-na a estudar na Universidade de Badajoz, fez um ano em Lisboa, Erasmus em Barcelona e foi aí que a disciplina de cuidados paliativos despertou a sua atenção. “Sofrimento evitável, falta de apoio, a possibilidade de as coisas acontecerem de uma forma menos má.” A evidência de que os cuidados paliativos, que se tornariam a área central das suas pesquisas, eram um ramo da medicina “que fazia muita falta.”
Já a trabalhar, concorreu a uma bolsa da Gulbenkian e entrou no King’s College de Londres. Pediu licença sem vencimento e esteve dois anos e meio a investigar onde os portugueses morreram entre 1988 e 2010 e onde queriam morrer. Mais de metade preferia morrer em casa, dois terços morriam nos hospitais e as projeções que fez até 2030 indicam que as mortes nos hospitais aumentarão, no mínimo, 25%, podendo chegar aos 50%.
Pois foi esse trabalho que lhe deu, no final de 2016, o 1.º Prémio Professor Jorge da Silva Horta na área da investigação clínica, para os melhores trabalhos publicados e com impacto na prática clínica, entre mais de 50 artigos da comunidade jovem médica. A distinção veio do Conselho Regional Sul da Ordem dos Médicos.
Está nas consultas externas, no banco de urgência, na equipa de suporte intra-hospitalar em cuidados paliativos. Trabalhou sempre no serviço público. “Por minha vontade continuo no Serviço Nacional de Saúde e estou aqui para a batalha.” Com as dificuldades inerentes. “Há um desinvestimento no SNS e é bom olhar para o que está a acontecer. A dedicação dos profissionais não chega, há uma parte política e orçamental. Vamos fazendo o nosso melhor.”

Gonçalo Vital também não teve dúvidas do que queria ser quando fosse grande. “Desde miúdo, com algumas doenças da infância, via-me no papel dos enfermeiros quando ia ao hospital”, recorda o enfermeiro do serviço de urgência do Hospital Distrital de Santarém, de 33 anos e natural de Almeirim. Assume-se de corpo e alma como profissional de saúde. “Orgulhosamente enfermeiro”, afirma.
É um trabalho entusiasmante e desgastante ao mesmo tempo. “Tentamos deixar a nossa vida cá fora, mas somos humanos, e vivemos emoções com desfechos mais felizes e outras vezes nem por isso.” Nenhum dia é igual ao outro quando se está num serviço de urgência. “É preciso gostar e ajudar o outro quando está vulnerável, quando precisa de ser cuidado.”
Tirou o curso em Viseu, trabalhou um ano no Hospital de Santa Marta, em Lisboa, mudou-se para Santarém, tirou a especialidade na área médico-cirúrgica em Lisboa, dedicou o projeto final à doença cerebrovascular, estagiou na unidade cérebro-vascular do Hospital de São José. É o enfermeiro responsável pela Via Verde do AVC no Adulto no Hospital de Santarém, em funcionamento há quase um ano, fez várias formações com uma equipa multidisciplinar, formou os seus pares.
Neste mês, foi distinguido com o prémio valor e excelência na prestação de cuidados pela Ordem dos Enfermeiros e foi um dos cinco finalistas do prémio europeu “Spirit of Excellence”, da Angels Initiative Consultant, escolhido por elementos da comunidade AVC portuguesa por ter promovido “encontros multidisciplinares, motivando outros profissionais do hospital para o projeto AVC em Santarém.” Voltou há dias de Milão da conferência anual da Organização Europeia do AVC.

“Nunca tive grandes dificuldades com a profissão. Tem valido a pena”, frisa. Apesar das jornadas intensas de trabalho, apesar dos turnos. “A profissão de enfermeiro deveria ser melhor remunerada. A remuneração não é adequada face aos riscos”, assinala. O enfermeiro defende um rácio mais adequado entre profissional e doente em nome de uma melhoria nos cuidados prestados, em prol da segurança dos utentes. Fazer as malas para emigrar é coisa que nunca lhe passou pela cabeça. Gosta do que faz, quer continuar em Portugal. De corpo e alma. A tratar dos outros, a olhar para o futuro, a acreditar que é possível melhorar o país.