“Não tenho a certeza do que aconteceria se aparecesse uma candidata negra à Presidência da República”

Entrevista de Alexandra Tavares-Teles e Nelson Morais | Fotos: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

O encontro decorreu no gabinete de Francisca Van Dunem, voltado para o Terreiro do Paço. Sala luminosa dominada pela tapeçaria de Guilherme Camarinha e pela secretária pesada e em ordem. De objetos pessoais, apenas “O Lobo na Pele de Cordeiro”, quadro que “a acompanha para todo o lado”.

Assim apresentado em vários trabalhos jornalísticos pela ministra, a ponto de a autora, a irlandesa Susan Norris, já ter manifestado o desejo de conhecer a proprietária da obra. Na entrevista, realizada a 22 de fevereiro, a primeira mulher negra a integrar um Governo português alertou para o perigo de se reabrirem capítulos dolorosos da História, em fenómenos como o racismo, e falou do “tempo histórico” em que lhe mataram um irmão.

De volta à atualidade, justificou a contestação no setor da Justiça com a melhoria do “clima económico” do país, assumindo também a defesa da criação de tribunais especializados para julgar crimes de colarinho branco, como sugeriu recentemente a OCDE.

A meio ano do fim da legislatura, gostaria de ser novamente convidada para o cargo, no caso de o PS formar novo Governo?
Tenho do serviço público uma noção de gratificação e de honra. É por essa razão que estou aqui hoje. Porque tenho um percurso na área da Justiça que me deu conhecimento e capacitação para exercer este cargo. E, portanto, aceitei naquela altura e naquele contexto. Estamos em fevereiro e está a falar-me de outubro. A minha profissão é ser magistrada. E aquilo que penso sempre é que, obviamente, um dia voltarei à magistratura. Mas, sobre isso, não tenho nada fechado.

Vamos então ao início, o convite de António Costa para uma área que conhece de cor, criando, por isso mesmo, muitas expectativas. Concretamente, que fatores pesou?
Ponderei os aspetos de interseção da atividade de magistrado com a atividade política. E, naturalmente, os que tinham a ver com a minha vida pessoal e familiar. Ninguém aceita uma tarefa destas sem ponderar, também, ao nível da sua capacidade, da sua competência e dos meios de que vai dispor. Não se vem para aqui só para estar nesta sala. Vem-se para realizar um projeto. No meu caso, um projeto que se prendia com toda a minha vida.

Que perigos comporta essa interseção?
Perigos de perceção, que devem desaparecer. A minha carreira como magistrada não me preparou para o exercício da atividade política, atividade com peculiaridades que envolvem conhecimento, domínio do próprio meio, experiência que eu não tinha. Vim para um meio que me era completamente novo, nem sabia que condicionalismo encontraria deste lado, no momento em que aceitasse a proposta.

Até por isso, colocou alguma condição?
Nenhuma. A única conversa que tive relativamente ao que poderia fazer neste cargo passou pela necessidade de introduzir no programa do Governo a questão dos estatutos das magistraturas e dar enfoque maior ao problema da modernização da Justiça.

A falta de peso político foi, é, uma condicionante?
Não. Nem nunca fiz esse raciocínio. Atendendo às funções que desempenhei no judiciário durante muito tempo, considerei que constituiria, na perspetiva do chefe do Governo, uma mais-valia para a composição do Governo. Não avalio as coisas em menor ou maior peso político porque não é disso que se trata.

A primeira mulher negra no Governo de Portugal. Em França, Christiane Taubira, ex-ministra francesa da Justiça, sofreu ataques fortes e mensagens de ódio. Pensou que podia acontecer-lhe o mesmo?
Não me passou sequer pela cabeça. Provavelmente por inconsciência.

Nunca passou por essa experiência?
Há uma coisa que eu não faço – frequentar redes sociais ou ler caixas de comentários. É o mínimo de profilaxia, quando se exerce uma função destas.

O racismo em Portugal está na ordem do dia. O que sente quando vê imagens como as do Bairro do Jamaica ou sabe de espancamentos de negros em esquadras?
O fenómeno do Bairro do Jamaica trouxe à superfície uma série de tensões que existem na sociedade portuguesa e que se vão agudizando na medida em que surgem gerações de afrodescendentes nascidas em Portugal, portugueses que de alguma forma se sentem invisíveis, não fazendo parte de. Um fenómeno desse tipo, no limite, gera reações imprevisíveis e de fúria. Há, por outro lado, a dimensão da ordem pública e da segurança e até, numa terceira linha, a da justiça. É esta a equação que é preciso ter presente quando se exerce uma função dessa natureza. A ordem e a tranquilidade públicas são importantes para todos nós, mas há um espaço que é inultrapassável – o espaço dos direitos fundamentais.

“O nosso lado é o das forças de segurança”, disse António Costa. O lado do Governo não deve/tem de ser o lado da Constituição?
Deve. Porém, o senhor primeiro-ministro disse essa frase num contexto específico. Inquirido várias vezes sobre se estava ou não do lado da força de segurança respondeu que estava. E é normal que um Governo esteja do lado das forças de segurança. Independentemente de poder haver contextos em que agentes das forças de segurança tenham comportamentos impróprios, as forças de segurança não são uma associação de malfeitores.

Preocupa-a o racismo nas forças de segurança?
Preocupa-me o racismo em todas as dimensões. Quer o racismo individual, de grupos, quer o racismo institucional. Porque não podemos pensar que esses fenómenos, que existem nas sociedades, deixam de existir a partir do momento em que a pessoas se institucionalizam. Se eu tiver preconceitos raciais e me integrar numa instituição, posso até fazer uma formação teórica sobre direitos humanos e fundamentais, mas o meu background poderá induzir-me a ter práticas, atitudes e perceções racistas.

Em Portugal, o fenómeno racista é sobretudo uma questão de cor da pele ou deriva da exclusão social?
A questão da cor da pele é determinante. Mas diria também que há uma associação entre as questões raciais e a da condição social.

A exclusão social não existe, sobretudo, porque são negros?
Admito que não há entre nós programas que considerem suficientemente essa diferença, no sentido da criação de oportunidades iguais. Porquê? Porque se vive numa lógica de que esse problema não existe. Alguns incidentes têm o condão de trazer à superfície a essência desse problema que é diferente do que era há 20 anos. Nessa altura, estávamos a falar de migrantes que estavam aqui episodicamente. Hoje, estamos a falar de gerações de pessoas que nasceram em Portugal, que não conhecem outro país, que querem existir aqui, que querem participar aqui.

Por exemplo, basta olhar para o jornalismo e para a magistratura. Não há negros.
Na minha profissão, a percentagem de pessoas negras é relativamente curta. Reparem, temos aqui vários padrões de desigualdade, que têm a ver com fatores diferenciados. O género, a etnia, a religião determinam que as pessoas sejam olhadas não como seres humanos, mas pelo rótulo que trazem.

Há hoje na sociedade mais racismo declarado?
Pela minha perceção, perdeu-se o recato que havia em tempos. As redes sociais e o anonimato abriram a caixa de Pandora. A ideia de que a discriminação é censurável vai deixando de existir. Hoje, exprime-se a discriminação com grande à-vontade, ainda que por vezes de forma mais sofisticada.

Aberta a caixa, até onde podemos chegar?
Tenho 63 anos. Nunca pensei que pudesse revisitar alguns fenómenos da história. Sempre os entendi como capítulos encerrados que estão a reabrir-se. Tudo pode acontecer. É nossa função agir, de forma a impedirmos que aconteça.

A escravidão e o tráfico de negros deviam ser hoje considerados crimes contra a humanidade em todos os países?
Não iria tão longe. Se considerar a escravidão e o tráfico crimes contra a humanidade tem como consequência julgar aos olhos de hoje o que aconteceu naquela altura, diria que não.

Por que razão é tão difícil à sociedade portuguesa revisitar criticamente o nosso passado colonial?
Cada vez mais se vai falando e escrevendo sobre essa matéria e estou convencida de que no futuro haverá maior clarificação sobre esse período. Porque deve falar-se sobre o assunto, a várias vozes e nas várias perspetivas, não para alguém pedir desculpa, mas para percebermos que erros não podem voltar a ser cometidos.

Incomoda-a as referências de natureza racista que se encontram em alguns monumentos?
É história. O que é preciso é incidir sobre ela uma luz crítica. Não mentir a seu respeito. Mas não se pode apagar a história. Foram factos que aconteceram, fizeram parte da vida de pessoas e não os devemos desfazer. O passado está feito. O que é preciso é construir o futuro.

Vem aí mais um Dia da Mulher. Já sentiu com certeza o sexismo e a misoginia.
(Ri) A descrença na possibilidade de eu ser magistrada fazia com que as pessoas tivessem um certo à-vontade na verbalização dos seus estereótipos. Acabei por ouvir muitos disparates.

Por exemplo…
Aconteciam com tanta frequência que, não podendo desvalorizar, foram merecendo alguma indiferença.

Portugal está preparado para uma mulher na Presidência da República?
Não tenho nenhuma dúvida.

Uma mulher negra?
Essa pergunta é mais difícil. É mais difícil responder.

Porquê?
Se tirarem uma fotografia ao Parlamento português verão que há um caminho feito na representação das mulheres. Mas a outra dimensão não está lá, nem está na política ativa. Por isso, não tenho certeza do que poderia acontecer se aparecesse uma candidata negra à Presidência da República.

Partindo da história de violência, exclusão, discriminação, que papel podem ter as mulheres na alteração dos modos de poder?
Os dados que temos apontam que as questões relacionadas com a violência, por exemplo, são menos sentidas nos países em que há maior paridade. No essencial, penso que é preciso trabalhar no sentido da paridade. Temos um número grande de mulheres nas áreas científicas, um grande número de mulheres com formação superior, mas também temos um número muito grande de mulheres que trabalha em profissões que são muito mal remuneradas. Há passos positivos dados, mas as nossas manhãs da limpeza ainda são femininas e são negras.

Saem dos tribunais, hoje em dia, acórdãos que citam a Bíblia e falam em lapidação de adúlteras. Que juízes temos?
Posso dizer que temos dos melhores juízes da Europa. Mas, como em todas as classes profissionais, temos pessoas marcadas por um conjunto de estereótipos que trazem para o exercício da profissão as referências culturais, sem aplicar qualquer filtro.

Mas os juízes julgam. Quem invoca a Bíblia em acórdãos pode continuar a julgar, nomeadamente casos de violência doméstica?
O Conselho Superior da Magistratura avaliou essa matéria e considerou que a resposta, em sede de disciplina, se bastaria com uma repreensão. Agora, penso que precisamos de integrar mais a dimensão associada aos direitos humanos, às questões da igualdade e da não discriminação na formação inicial e na formação posterior dos juízes.

A violência doméstica também é um problema de segurança interna?
É. Há uma dimensão de segurança interna no que diz respeito às redes de proteção das pessoas e há uma dimensão prévia que tem a ver com a educação para a cidadania, com a escola. A educação é centralíssima. Temos ouvido que o número de situações de violência em contextos afetivos entre jovens é relativamente elevado. A educação para uma nova cidadania é importante, para evitar o replicar de modelos. Há, portanto, um conjunto de fatores que têm de ser assumidos de modo coletivo. É lastimável que tenham morrido estas mulheres, às mãos dos respetivos companheiros. E uma criança, às mãos do pai. É absolutamente desolador. Revela um estado disruptivo daquela família e daquele pai, que não fomos capazes de prever.

Esta mulher já tinha pedido ajuda. O Estado trata bem estas mulheres? Nas esquadras, as queixas são por vezes desvalorizadas.
Não sei se é assim. É importante aproveitar estes momentos para refletirmos com alguma frieza. As forças de segurança fizeram um caminho muito importante quando criaram estruturas específicas para o acompanhamento e receção das vítimas de violência doméstica. Provavelmente é preciso fazer mais, mas essas são questões do MAI.

Como é possível assegurar uma proteção mais constante e efetiva nos casos de risco?
Porque a certa altura, cada um fazia a sua avaliação de risco, de forma subjetiva e empírica, procurou-se, e encontrou-se, um método científico para fazer a avaliação de risco. Hoje, as forças de segurança, ao primeiro contacto com a vítima, fazem essa avaliação, que segue com a vítima para o MP. Aí, faz-se a inquirição e devem tomar-se as medidas de proteção da vítima, em princípio nas 72 horas subsequentes à queixa, o período mais crítico. Há que tomar medidas e medidas rápidas. E é nesse momento que por vezes se nota alguma incongruência entre a avaliação de risco feita pelos órgãos de polícia criminal e as magistraturas.

E isso acontece porquê?
A vítima chega ao local da queixa porque atingiu o limite. Faz então a rotura e a catarse. Conta tudo o que lhe aconteceu em direto e sem filtro. Mas no momento em que o auto é lavrado, no momento em que vai ter de assinar o documento, tem outros cuidados e outras preocupações. Está mais aliviada, mais calma. E isso pode explicar alguma dissonância interpretativa entre Ministério Público e órgãos de polícia criminal. Há, de facto, a necessidade de maior interação entre a polícia e o Ministério Público nesse contexto.

O magistrado do MP tem tempo para ouvir as vítimas? Chegaram-nos ao conhecimento os casos concretos de um procurador, na zona de Lisboa, que tem mais de 450 inquéritos de violência doméstica e de outra que teve, por volta de 2015, em Santarém, mais de 700.
Setecentos processos é muito, sobretudo para uma comarca como Santarém. Os rácios que aponta não são muito compatíveis com os números das comarcas a que se refere. É verdade que o fenómeno de violência doméstica aumentou muito nos últimos anos, desde logo há mais queixas. A circunstância de os processos de violência doméstica terem sido considerados urgentes faz com que se torne mais difícil fazer a triagem. Se eu fosse magistrada em funções e tivesse uma média de 400, o que faria era, processo a processo, diretamente ou através da secretaria, a verificação da ficha de avaliação de risco. Perante um risco elevado, é preciso agir imediatamente. Não penso que em 450 processos encontre 200 com risco elevado.

Qual foi o mecanismo que, nos últimos anos, ajudou mais? A vigilância eletrónica?
Esses sistemas ajudaram muito. Além desses, as unidades especializadas, dentro de esquadras, que acompanham e apoiam as vítimas.

A do Porto funciona desde 2013, atendeu mais de sete mil pessoas e tem a registar zero vítimas mortais. O exemplo não é replicado?
Não é exemplo único. O que se criou no Porto existe em Lisboa, por exemplo. Além disso, no DIAP de Lisboa há uma secção de magistrados especializada em crimes de violência doméstica e uma estrutura – o Gabinete de Informação e Apoio à Vítima – que tem psicólogos e especialistas com outras valências e que trabalha em articulação com a PSP.

Quais devem ser os passos seguintes?
É preciso aumentar, e vamos fazê-lo em breve, o número de gabinetes de apoio às vítimas, nos Departamentos de Investigação e Ação Penal. Segundo, diferenciar os modos formativos. Do ponto de vista quantitativo, há muita formação, quer no Centro de Estudos Judiciários, quer nas polícias. Era importante que houvesse modos formativos conjuntos e uma dimensão casuística mais ampla. O conhecimento do caso concreto, da forma como se reagiu e como se deu a resposta, é muito valioso.

O setor da Justiça tem estado em polvorosa, com protestos de juízes e procuradores, do pessoal da Polícia Judiciária e dos Registos e Notariado, de funcionários judiciais, guardas prisionais. Como explica tanta contestação?
Temos hoje um ambiente de contestação geral no país, associado a uma lógica de melhoria das condições de vida e à perceção que as pessoas têm de que é preciso apropriarem-se das vantagens que o novo tempo trouxe. O clima económico melhorou, é natural que as pessoas pretendam ter, no imediato, o benefício resultante desta aparência de grande bem-estar social. Estando o Governo no final de legislatura, a pressão aumenta.

É a partir das revisões estatutárias ou das leis orgânicas que se suscita boa parte da contestação. Era inevitável deixar cair no final da legislatura todos os processos legislativos daquele tipo?
Do programa do Governo só constam duas revisões estatutárias. Dos magistrados judiciais e do Ministério Público. No mais, o que aconteceu foi que houve outras classes profissionais que entenderam que deviam ter também a sua situação revista.

Quais estatutos espera ver aprovados na Assembleia da República até julho?
Os das magistraturas, sem dúvida.

E os outros?
Há situações muito diferenciadas. Falando de guardas prisionais: o Estatuto do Corpo da Guarda Prisional é de 2014, nós estamos em 2019.

Mas os guardas dizem que o MJ iniciou uma renegociação do estatuto.
Clarifico isso. O estatuto de 2014 previa um regulamento do horário de trabalho. E o que se fez foi criar os horários de oito horas. Mas houve uma grande contestação. Da tentativa de aproximação, para se tentar esclarecer algumas coisas, resultou que os guardas prisionais queriam uma reponderação do Estatuto. E fez-se esse exercício. Havia, para além do mais, exigências que tinham a ver com a equiparação à PSP, que vinha do estatuto, era perfeitamente justa e está em vias de concretização.

E os outros casos – do pessoal da Polícia Judiciária, dos Registos e Notariado… – vai fechar os dossiês até julho?
Os dos Registos e Notariado, não tenha dúvida. Porque é que estes processos são complexos? Além da elaboração de propostas, tem de haver um processo negocial com os sindicatos e, numa terceira fase, com o Ministério das Finanças. É preciso encontrar uma coerência global, ao nível da Administração Pública, para se evitar reivindicações associadas a diferenciações injustas.

Quando foi nomeada ministra, criou-se uma grande ilusão no setor, que se foi transformando em desilusão. Concorda com esta perceção?
Não. O que não há é coincidência de expectativas. Venho para esta função com uma expectativa e um programa, e há agentes da justiça que põem em cima da mesa as suas expectativas e o seu programa. Ora eu posso e devo responder ao meu programa. Há situações em que o programa dos agentes da justiça se compagina com o meu, outras em que não. Há reivindicações cuja legitimidade não discuto. Discuto é a tempestividade.

Desencontro de programas ou problemas orçamentais?
Os problemas orçamentais condicionam a minha ação e a do resto do Governo. Precisamos de encontrar um espaço de compatibilidade entre as capacidades financeiras do Governo, as necessidades de investimento do setor e as aspirações das classes profissionais. É nesta geometria, relativamente variável, que a equação tem de ser resolvida. Eu falo periodicamente com os interlocutores das várias classes, e tenho a preocupação de lhes dizer a verdade: “Isto é fazível até aqui, a partir daqui não é fazível”.

Aos juízes, foi dizendo que não podia mexer em questões remuneratórias, mas apareceu o primeiro-ministro a dizer “é possível”. Sentiu-se desautorizada?
De maneira nenhuma. As coisas não são estáticas. O processo de revisão do estatuto dos juízes começou em 2016. Embora o Governo tivesse perspetivas macroeconómicas favoráveis, não era seguro que elas se viessem a verificar. Verificaram-se. Mas, no momento em que eu faço a negociação, aqui, com os senhores juízes, o quadro orçamental estava fechado. Havia um corte geral e outro sobre o seu suplemento de compensação. E o que se disse foi: o que é possível é eliminar este corte. Mas, entretanto, as coisas melhoraram, foi possível fazer mais.

O Sindicato do Ministério Público marcou uma greve, contra uma possível recomposição do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) que dê maioria aos não-magistrados, sendo que o presidente do sindicato diz que o grupo parlamentar do PS ainda não definiu uma posição. É esta a ideia que tem?
Não. Tive a oportunidade de dizer que não faz parte do programa do Governo uma alteração do CSMP e creio que, no Parlamento, o representante [do PS] da 1.ª Comissão, Neto Brandão, fez uma declaração no mesmo sentido.

Qual é a posição do grupo parlamentar?
Tem de lhe perguntar. Não tenho nenhuma indicação no sentido de que pretenda alterar a composição do CSMP para aumentar os não-magistrados.

Se o PSD fizer uma proposta nesse sentido e o PS se abstiver, haverá recomposição.
Não é essa a minha proposta e também não creio que o grupo parlamentar do PS se abstenha, nessas circunstâncias.

O mediatismo de alguns casos põe em causa a Justiça?
Em qualquer caso, geram-se expectativas. Mas uma coisa é a prova necessária para acusar, outra é a prova necessária para condenar. Nós temos, não só relativamente ao crime económico-financeiro, situações em que o MP acusa e, em julgamento, há absolvições. Temos que aprender a lidar com isso com maior normalidade. Aquilo que acontece é que as pessoas têm a expectativa de uma justiça mais rápida. E temos, provavelmente, que intervir. Se temos uma magistratura especializada no MP, encontramos, por outro lado, julgamentos feitos por juízes sem especialização.

Concorda, então, com a recente proposta da OCDE, de criação de tribunais especializados para julgar a criminalidade económica?
Gostava que fosse possível. O Ministério da Justiça esteve até a trabalhar numa proposta nesse sentido. Infelizmente, chegamos à conclusão da sua inviabilidade constitucional. A Constituição proíbe tribunais especializados para categorias de crimes. Também se colocava a questão da violência doméstica, os nossos vizinhos espanhóis têm tribunais especializados para julgar a violência doméstica.

Valeria a pena rever a Constituição por isso?
É daquelas matérias em que vai ser preciso pensar, quando se revir a Constituição. Há 45 anos, aquela norma tinha inteiro fundamento. Hoje, obstaculiza uma maior capacidade de resposta a fenómenos criminais mais agressivos.

Defendeu a especialização dos juízes, por uma questão de celeridade processual. Mas a falta dessa especialização não é uma entropia que explicará também algumas absolvições em processos complexos?
O que posso dizer é que, se houvesse especialização, também ali, seguramente a capacidade de julgar se efetivaria melhor. Os juízes têm preparação teórica para julgar várias categorias de crimes, mas há um conhecimento que vem muito da prática.

E houve uma complexificação da criminalidade económico-financeira, não?
Não tenhamos ilusões, as coisas hoje são mais complexas. Temos recurso a tecnologias que não tínhamos há uns anos, mas tudo o que acontece, do ponto de vista da evolução tecnológica, é para o bem e para o mal. E a utilização de meios tecnológicos de grande capacidade, a utilização de cortinas de fumo para encobrir determinadas realidades, torna as coisas mais complexas. E também a transnacionalidade de muitos crimes os complexifica ainda mais.

Desde que rebentou a crise financeira, em 2008, o MP abriu dezenas de inquéritos. E não há processos transitados em julgado, não há um banqueiro a cumprir pena de prisão. O que sente perante esta ineficácia?
Não posso ter sentimentos nessa matéria. E também não considero que haja ineficácia da justiça criminal. Talvez fosse útil fazer-se o levantamento de todos os processos instaurados. Houve julgamento do caso BPP, do caso BPN. Basicamente, o que está em falta: o processo BES.

Mesmo aqueles não transitaram em julgado.
Claro que teria de perguntar isso ao MP, mas a perceção que tenho é que, relativamente ao dossiê BPN, [só] não há ainda trânsito em julgado em algumas situações.

Creio que o mais próximo do fim é o que envolve Duarte Lima, os outros ainda estão longe do trânsito em julgado.
São questões que deverá colocar ao Ministério Público, sobre as quais eu não me devo pronunciar. Em qualquer circunstância, acho que temos uma atitude que balanceia entre “o MP é muito eficaz” ou “o MP é totalmente ineficaz”. Eu diria: nem uma coisa nem outra.

O que sente quando toma conhecimento de transmissões de interrogatórios a arguidos?
Há ali uma degradação da Justiça. Aquelas imagens degradam a imagem do funcionamento do sistema de Justiça. O sentido das normas que permitem a gravação não é aquele. A gravação no processo faz-se para o interior do processo, e para facilitar o trabalho quer das autoridades judiciárias quer dos intervenientes processuais. A gravação não tem como objetivo a publicitação, sobretudo em termos comerciais. [O objetivo foi] melhorar a qualidade da Justiça, não foi aumentar audiências.

Como ministra, qual é a maior frustração ao fim de cada dia?
Quando aceitamos cargos destes, temos sempre a noção de que, entre aquilo que pensamos fazer e aquilo que conseguimos fazer, há um espaço crítico, e que nesse espaço crítico temos de utilizar todos os instrumentos e argumentos para afastarmos as dificuldades.

Com o poder absoluto nas mãos durante uma hora, qual era a primeira medida?
Sempre fui contra poderes absolutos. Decretava o fim do poder absoluto.

Ainda tem muitas saudades de Angola?
As suficientes, para uma rapariga de Luanda.

Estudou em Portugal, mas sempre que podia regressava a Angola. Quando é que se apercebeu de que realmente gostava de Lisboa?
Quando pensei que ia para Luanda de vez (ri). É um bocadinho aquela ideia de que, de repente, valoriza-se aquilo que se perdeu.

De Lisboa, do que mais gosta?
De Lisboa gosto de tudo. Da luz, do movimento, gosto destas praças tão bonitas, gosto dos bairros, que são de facto únicos. Lisboa tem uma atmosfera que é absolutamente extraordinária.

A família não queria que fosse para Direito. Porquê?
Não queriam porque achavam que os meus familiares mais próximos que tinham ido para Direito tinham acabado por se envolver em atividade política e tinham ido para o exílio.

Como é que se tem relacionado com o regime que lhe matou um irmão?
Não acho que o regime me tenha morto um irmão. Historicamente, perdi um irmão e perdi boa parte da minha geração, num tempo histórico que vivi, que foi um tempo muito intenso. Guardo, apesar de tudo, um espaço de grande gratificação por alguns daqueles momentos, mas que também trouxe esse lado amargo. A história das transições é sempre assim, não há revoluções sem esse tipo de perdas. Agora, obviamente, nós não gostamos que seja connosco, eu não quereria que acontecesse comigo.

Foi naturalmente difícil explicar ao sobrinho o que se tinha passado.
Sobretudo porque foi difícil explicar a mim própria. Desde logo, a dificuldade de explicação tem a ver comigo, tem a ver com a apreensão e compreensão, porque uma coisa é saber-se teoricamente, outra coisa é digerir, é assimilar que aquela é a minha nova realidade. Essa assimilação foi difícil para mim e por maioria de razão acabou por ser difícil contá-la. Transmiti-la.

Continua por esclarecer o que terá acontecido ao irmão e à cunhada.
Não é fácil. Mas, sabe, há um momento da vida em que é preciso fazer com que o passado não nos fustigue. Só temos duas posições possíveis: ficar no passado a curar, a sarar as feridas, ou então partir para o futuro, respeitando esse passado e aqueles que o fizeram, na forma como o fizeram, o que, do meu ponto de vista, apenas significa agir com integridade. Respeitar essas pessoas, agindo com integridade.

Como vê as alterações na política angolana, esta nova fase que agora se vive?
Acompanho a política angolana com alguma distância. Eu sei que houve alterações, conheço as alterações, percebo o que está a acontecer. Acho que há aí um período de transição. Tenho sobretudo a esperança, tenho mesmo um desejo ardente, de que as coisas corram bem, de que seja possível atingir-se os objetivos pelos quais se lutou, pelos quais se fez a luta pela independência.

Três questões finais. Legalização da prostituição.
Sei que há movimentos nesse sentido. Não vejo razão para não se fazer. Mas, de qualquer forma, não é para mim uma questão de primeira linha, se assim se pode dizer.

Legalização da canábis para fins recreativos.
É uma questão que deve ser estudada com bastante cuidado. Portugal é pioneiro no que diz respeito à despenalização do consumo. Agora, se estão a falar da lógica de plantação e venda para fins recreativos, tenho mais reservas.

Eutanásia.
Sobre essa matéria, eu tenho “mixed-feelings”. Por um lado, penso que há momentos em que a autonomia da vontade das pessoas em contextos de sofrimento sem limite deve ser respeitada. Mas, por outro lado, temos hoje um envelhecimento populacional, com desagregação das estruturas familiares, com poucos cuidadores e pouco espaço para cuidar. Portanto, a única preocupação que tenho relativamente a essa matéria não tem a ver com princípios éticos ou religiosos, mas com a salvaguarda das pessoas que têm vida, que querem ainda viver, que podem ter condições para viver e que podem ser encaminhadas para a eutanásia.