O calendário marca-lhes a sina. Há família reunida, mesa farta, troca de presentes, confraternização e sorrisos sem fim. E um aniversário que, quase discreto, rola disfarçado no dia de todos os dias do ano. Quem nasceu a 24 ou a 25 de dezembro está condenado a uma festa diferente. Para o bem e para o mal. Mas com muitas histórias para contar.
A gravidez de Emília fora tão discreta de feições de corpo que nenhum dos cinco filhos pequenos a notara. A véspera de Natal prometia jantar animado igual aos outros Natais lá em casa, em Salzedas, aldeia do concelho de Tarouca, frio distrito de Viseu. Um Natal como qualquer outro, portanto, com muito de prendas e risos para viver noite dentro. O que ninguém contava é que Emília saísse discretamente de casa naquele 24 de dezembro de 1977. De táxi, direta para a antiga Maternidade de Lamego, encerrada por falta de nascimentos (uma média, então, de 550 por ano) em julho de 2006 – Maria, o nome da última bebé lá parida. Os miúdos não deram por nada, estavam na missa, só perceberam a falta da mãe à mesa de jantar. Como poderia faltar a ocasião tão especial? A justificação era grata, nada de choros ou dramas.
“Nasci ainda no dia 24. E no dia 25 apareci em casa ao colo da minha mãe para espanto de todos os irmãos”, conta Daniela Fonseca, 41 anos (quase 42, falta pouco para 24 de dezembro), caçula da família, hoje professora na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), em Vila Real. “Estavam todos à espera dos presentes, tiveram-me a mim”, sorri.
Os Natais para ela continuam a ser em Salzedas – “sempre, sem exceção” -, o próximo não fugirá à regra. Os aniversários, esses, tiveram altos e baixos de relação com o calendário. “A única festa que tive foi a dos 18 anos”, revela. Porque 24 de dezembro é data de família e torna-se complicado gerir agendas que roubem tempo ao convívio para estar com os mais próximos de sangue, nem que a justificação seja de monta. Mesmo essa festa dos 18 foi coisa de toca e foge, muito a correr porque havia pressa dos convidados para outros compromissos a que faltar seria impossível. “Foi um lanche rápido, do tipo olá, parabéns e adeus”, recorda.
Daniela não se importa da coincidência de datas. Pelo contrário. “É felicidade a dobrar. Tenho os meus todos juntos, seja porque é Natal, seja porque faço anos. Toda a gente acaba por passar para deixar um beijinho.” E as prendas, que tal o velho dilema de quantas e quando as recebe? “É fácil”, assegura Daniela, “como sempre as abríamos no dia 25, não há grande problema”. O bolo de anos, esse, tem velas sopradas “só depois da consoada”. E há amigos e outros que tais que, devido à azáfama da época, têm presentes guardados para oferecer só dias depois. “Portanto, tenho-as no Natal, no aniversário, às vezes mais à frente, até em janeiro. A triplicar! Não me posso queixar”, garante.
“Nem tenho noção”
Com um barrigão de nove meses, Filomena ainda consoou naquele Natal de 1988. E até almoçou no dia seguinte, já as dores apertavam e davam sinais evidentes de que Alexandra estava a caminho. Cabrito, um dos pratos favoritos, foi a ementa, como em tantas casas minhotas. “Depois, não aguentou mais e foi para o Hospital de São Marcos, em Braga, com o meu pai. Não estava lá quase ninguém, os médicos estavam todos disponíveis e nasci perto das 19 horas.”
O relato é de Alexandra Calheiros e foi-lhe contado vezes sem conta pelos pais. Um Natal diferente aquele da família Calheiros, o início de promessa de Natais diferentes daí para a frente para a bebé que entretanto cresceu e se tornou engenheira civil.
Alexandra não chora o facto de, mais nova, não ter tido encontros com amigos que acertassem no dia exato de aniversário. “Nunca podia festejar a 25 de dezembro. Então adiava para janeiro qualquer festa”, refere. Ainda hoje é estratégia que segue, “celebrar antes é que não porque dá azar”.
Tradição lá em casa é o bolo de anos “ser aberto sempre com companhia da família durante a tarde de 25”. Depois, “se der”, vai com amigos jantar. Ou a um bar. Quando não dá, “paciência e encontra-se outra data disponível mais para a frente”. Fazer disso problema é que nem pensar.
Os presentes, esses, vêm a dobrar. “Dia 24 os de natal, dia 25 à tarde os dos meus anos.” Quase sempre diferentes, mas se vier um só não é algo que apoquente Alexandra. “Não levo nada a mal, compreendo perfeitamente quando assim acontece. Palavra que não levo a mal, é da forma que as pessoas não gastam muito dinheiro”, sublinha.
Os mais próximos enchem-na com perguntas sobre como é aniversariar em pleno dia de Natal. Ela responde sempre da mesma forma, que “não é comum, é verdade, mas que é ótimo porque assim nunca ninguém se esquece e fica sempre na memória”.
A parte boa “é a reunião em família”, algo raro de conciliar. “É tanta coisa a acontecer que, às vezes, nem tenho noção de que é o meu aniversário. A sério que não tenho”, insiste para quem possa não acreditar. “É bastante e tão bom o que acontece num dia só que nem parece verdade”, explica.
“Até parece que fiz de propósito”
“Ui, deve ser horrível receber só um presente.” Que nada, Gisela Madureira nunca se importou com as bocas que ouvia, e ainda vai ouvindo, dos amigos. Ela que deu entrada nos registos da Maternidade de Júlio Dinis, no Porto, a 24 de dezembro de 1987, já lá vão quase 32 anos. Não foi fácil. Maria de Fátima entrou em trabalho de parto a 23, a coisa prolongou-se, Gisela não queria, de todo, nascer e as médicas concluíram que o melhor seria optar por uma cesariana, já o calendário marcava o dia seguinte. “Até parece que fiz de propósito para nascer na véspera de Natal”, brinca.
A marca ficou-lhe para sempre, nada que a apoquente, bem pelo contrário. “Tive a sorte de ter uma mãe que soube sempre separar tudo. Uma coisa é o Natal, outra o aniversário, dizia ela. E dizia também a toda a gente que prendas tinham sempre que ser duas”, orgulha-se Gisela, que até quando era criança, idade de escola Básica, tinha a sorte de as festas de anos serem encaixadas entre a correria de pais e familiares na azáfama da procura de oferendas natalícias. “Como eles não tinham onde deixar os filhos, enquanto iam às compras, deixavam-nos lá em casa e fazia uma pequena festa em pleno dia 24”, recorda a gestora de alojamento local e estudante de Computação, do Porto.
O avançar da idade não a fez mudar de ideias e o facto de cumprir aniversário em data tão singular jamais a fez mudar planos seja do que for. “Nunca, para quê? Orgulho-me muito de fazer anos no dia em que faço. E já nem ligo nenhuma a quem insiste em me dizer que é mau só receber uma prenda. Até porque não é verdade, por mais que não acreditem.”
E encontrar uma discoteca?
Quando Pedro Fernandes se lembra das dificuldades que tinha para juntar meia dúzia de amigos numa discoteca para assinalar o dia de aniversário até lhe dá vontade rir. “Mas arranjava sempre forma de arranjar um bar ou uma discoteca disponível para onde ir”, assegura ele, funcionário do Grupo Amorim a caminho dos 29, vai cumpri-los no próximo 25. Lembranças de um passado assim não tão distante, outros tempos que parecem muito lá atrás e que “trazem boas recordações”. O verbo está no pretérito porque, agora, as saídas natalícias “já não entusiasmam por aí além” este gaiense, de São Félix da Marinha, ali quase colado a Espinho. “Já tenho uma certa idade”, queixa-se o quase trintão.
Atualmente, Pedro Fernandes contenta-se com uma festa doméstica, “coisa soft que a época é de alguns exageros alimentares e já ninguém tem estômago para muito mais”. Passa Natal e aniversário em casa, com a família, bênção que lhe agrada e em que não vê “desvantagem alguma, pelo contrário”.
Só há uma regra de que não abdica: “Desde pequeno que impus o regime de duas prendas”. A única cedência é que o regime atualmente só é aplicado “aos familiares mais próximos”, aos restantes concede uma abébia. Mesmo aos que, quando o querem picar com brincadeiras, dizem que ele sai sempre prejudicado por celebrar em dia tão único.
“Saí sempre prejudicado”
“Quando era mais novo nunca consegui organizar um jantar de aniversário, só qualquer coisa que fosse, no máximo, até ao final da tarde.” O lamento é de Pedro Santos, que na véspera de Natal é também aniversariante. Dose dupla de celebrações, portanto. Ou meias celebrações, vá.
Agora, que já caminha para os 43 anos, o desabafo é memória de um passado que não deixou amarguras, mas em que ficou algo por completar. “Aquela coisa de ir sair com os amigos, de nos divertirmos até tarde, até de beber um pouco para lá da conta, não tive nada disso”, confessa Pedro. Era complicado conciliar agendas, havia quem “estivesse apertado de tempo” e outros que nem sequer podiam comparecer “porque tinham ido com os familiares passar o Natal noutras paragens”.
Os presentes foram outra guerra de juventude, uma espécie de dois em um que cobria ambas as festividades. “Saí sempre prejudicado”, troça. “Mas foi situação a que nunca liguei por aí além.” Por essas e por outras é que “24 de dezembro é data em que não é aconselhável nascer, não dá para celebrar nada”, volta a troçar.
Agora com os tais quase 43, o que Pedro quer é sossego e a companhia próxima da família. Ele que boa parte do ano está longe dos seus por conta de trabalhos fora do país, sobretudo em França, onde passou os últimos tempos a soldador. “As prioridades são outras, dou valor a coisas diferentes.” Natais são aniversários “mais nostálgicos, por um lado, mas sobretudo especiais” pelos filhos. “Tenho dois, o Diogo, 21 anos, e a Rita, 12.” E já não há cá quem lhe tire a magia do dia, nem queixas de nada, nem encolheres de ombros à má sorte, nem certidão de nascimento quase amaldiçoada. Só “bons motivos para celebrar”. Tantos são eles que 24 de dezembro até se tornou a data do ano que mais gosta de assinalar. Como mudam as coisas…
“Tudo muito pacífico”
Era para ter nascido a 20 de dezembro, mas gostou tanto do conforto materno que acabou por dar de sua graça apenas a 24. Corria o ano de 1993 e Nilza e Fernando Leandro davam as boas-vindas a Filipa. Ao Natal de sempre teriam, a partir de então, de acrescentar outro motivo de festejo: o aniversário da primeira filha. Ela que nunca olhou para a data como inconveniente fosse para o que fosse. “Pelo contrário, sempre gostei. É diferente”, jura.
Estudante de mestrado em Biologia Aplicada na Universidade de Aveiro, Filipa Leandro olha para trás e dificilmente encontra motivos para não sorrir. Da infância só lhe correm na memória recordações felizes, como quando “aparecia alguém vestido de Pai Natal em pleno dia de anos, coisas que não se esquecem”. E os presentes, que chegavam a dobrar, “sobretudo da família, que fazia questão de distinguir que um era pelos anos, o outro pelo Natal”. Aquelas noites em que todos estavam “juntos até tarde” e sobravam razões para festejos.
Agora, já não liga por aí além a ofertas, sejam elas referentes a uma data ou a outra. As celebrações, essas, é que não ficam para trás e não há coincidência de festividades que atrapalhe os planos. Caso para dizer que cada coisa no seu lugar, que quase sempre há espaço para conciliar momentos que não deixem ninguém ficar mal.
Hoje, jovem adulta, Filipa planeia as coisas de outra forma. A consoada e o aniversário continuam a ser com os seus. “Só por uma vez a passei em Inglaterra, de resto foi sempre em casa”, desfia. Para os amigos reserva o dia anterior, “um café ou um jantar” para marcar o aniversário e soprar as velas do bolo. Sem confusões de maior, “tudo muito pacífico” porque já sabe que por esta altura há sempre quem não possa aparecer por outros compromissos de época.
Este ano, o Natal (e aniversário) terá ainda mais motivos para ela poder conjugar o verbo sorrir. Será a estreia de Aurora, bebé de seis meses que carrega no colo e a quem mais tarde poderá contar como é celebrar o aniversário no dia que a sociedade consagrou como o mais especial do ano e que também lhe pertence por direito próprio. Graças à teimosia de insistir em não nascer no dia em que estava previsto.