
Texto de José Miguel Gaspar
Um dia depois de ter tocado em Paredes de Coura, já 18 de agosto, a prelada Patti Smith estava em Marselha, a cidade portuária francesa onde Rimbaud (1854-1891, morreu com 37 anos), a precocidade poética por definição, teria sido um músico rock se não tivesse nascido no século XIX e morrido antes da sua invenção.
É manhã cedo, ainda se verá a lua esboroar-se do cais do porto e Patti, “eu ainda devia estar a dormir mas não consigo” – que é como diz a canção dos Midnight Oil que ela também canta, “a cama estava em chamas” -, ouve à hora exata no seu Mac no quarto do hotel a “Electric ladyland” que Jimi Hendrix (1942-1970, morreu aos 27) tocou em Woodstock.
Foi exatamente há 50 anos, eram nove horas em Bethel, estado lunático de Nova Iorque, e o rock e o Mundo e o sol nunca mais seriam os mesmos depois de Hendrix deslizar como uma cobra em eletricidade viva e acordar meio milhão de pessoas com a “Star splangled banner” bélica às nove da manhã de 18 de agosto de 1969. Deve ser isso a eternidade, ser ressonante e mais ainda 50 anos depois.
Dois dias antes no scroll do seu Instagram, Patti Smith foi filmada de braços abertos, agradecida e crística, a luz branca esplendente no cabelo que ardia em luz, virada do palco para a encosta exultada de cabeças de Coura que repetiam o seu nome em coro, “Patti, Patti, Patti”. Ela escreve o seguinte: “Foi difícil dizer adeus tão fortes eram ali a energia e o entusiasmo. As pessoas a cantarem comigo o “Ghost dance” e o “People have the power” trazem-me lágrimas aos olhos. Bênçãos para todos, obrigado a cada um”.
E depois noutra foto em que mostra a setlist de 12 canções que fecharia com “Gloria” depois de “Because the night” e que ela escreveu à mão em letra bonita, cortante, parecia escrita a pena: “Nunca esquecerei Pardes [sic] de Coura. O concerto da última noite, dominado pelas novas gerações, foi um farol de esperança”.
Há 50 anos naquela noite, no quarto 1004 do Chelsea Hotel em Nova Iorque, Patti Smith, 23 anos, poeta, só seis anos depois lançaria “Horses” e os pesadelos de cavalos em fuga a arder, via com Robert Mapplethorpe passar Jimi Hendrix, os Jefferson, Janis Joplin – “How do I look?”. “Like a pearl, like a pearl of a girl” – todos a caminho de Woodstock e da deflagração. “O futuro é agora, motherfuckers!”.
Foi um ferro em brasa na memória de Coura, cheio de bondade e revolução, que não se esquece, Patti com o seu cabelo da cor da turmalina a voar nos versos da reivindicação, porque a noite pertence aos amantes, porque a noite pertence-nos a nós, e 25 mil pessoas juntas a cantar, piroelétricas, vidradas na eletricidade que amplifica quando se tocam, aumentadas na comunhão. “O futuro é agora, motherfuckers!”.
Com o sorriso cinzelado até aos olhos, saiu daqui encantada, Patti Smith, 72 anos, sacerdotisa arruçada de rock, uma lenda em vida que pousou maravilhada de pés na água atlântica do mar de Angeiras antes de comer um peixe-galo grelhado no Salitre, mais à frente, já Vila do Conde onde andou a ver o Portugal postal real.
(Parêntesis: com a sua gralha talvez tenha feito um bonito neologismo, Patti, quando chamou Pardes a Paredes porque se traduzirmos a palavra na língua hindi pardes é cortinas, Cortinas de Coura, o que convenhamos é um belo nome).
É uma coisa que faz sentido nos ossos e no coração
Possui essa força, comoção e comunhão, Paredes de Coura, vila rural de Viana do Castelo castiça, a 50 minutos de Vigo, menos de dez mil habitantes e que há 27 anos inventou um spa de rock com rio e campismo. Agora, durante uma semana de agosto por ano e que estica a mais dias do mês de festas, vê triplicar a população e os negócios de comidas, bebidas e dormidas – e esgotar stocks totais de capas de chuva porque em certos anos já não recentes houve dilúvios memoriais.
Parque de diversões com música em estado natural, Couraíso, um espectador escreveu num cartão e o nome pegou levantado no campismo há uns anos, hoje é o nome oficial que passeia nas sacolas do patrocinador e nos lenços oferecidos de ir ao mosh e ao merchandising. Estava na 3.ª divisão regional quando o Super Bock Super Rock do sul já abria com Cure e Jesus & Mary Chain em 1995, persistiu, continuou, cativou sucessivamente a Imperial, a Sagres, a Optimus, a Ritek, a Heineken, a EDP, e desde 2013 a Vodafone, que investe no recinto e no cartaz e mantém o festival na Champions dos festivais europeus.


É um postal simples, muito evidente: uma encosta em socalcos relvada, um anfiteatro verde de inclinação natural a desembocar num rio atrás do palco principal, campismo com prado arborizado picotado por dentro e a toda a volta pelas folhosas do Alto Minho, praia fluvial e saltos até ao entardecer. 50% dos 25 mil espectadores diários é juventude dos 16 aos 24 anos que acampa, adónica, ecológica, culta e mitologicamente melómana.
Há jovens famílias, magotes de amigos, amigas (as mulheres são 60% da população dos festivais de verão), bebe-se, fuma-se, ri-se, ouve-se muito espanhol, o recinto está cheio de recantos e romantismo, néones, árvores entrançadas de leds, vão pessoas até aos 60 anos num clima permanente de jovialidade, disponibilidade e desejo. Essas pessoas internam-se no resort solar de rock para ouvir música ao vivo 12 horas por dia durante quatro dias. É uma coisa que faz sentido nos ossos e no coração.
Numa coroa estrelar
É um spa perfeito que este ano se ornamentou de nostalgia numa receita transgeracional: manter o interesse no novo, mas puxar para cima o passado, dar-lhe visibilidade e presente e assim garantir espectadores e futuro. É parte da receita que Vilar de Mouros, o festival decano dos ibéricos criado em 1971, caído e levantado várias vezes por década, agora dedicado exclusivamente à saudade e aos adultos, aplica consistentemente há quatro anos – e cresce 30% ao ano, com dias de 20 mil pessoas e este ano uma enchente real. Os dois festivais, além da nostalgia, partilham o mesmo o rio, o Coura, e bússola da afinidade.
A coroa de Coura teve quatro pontas. New Order: fazem 40 anos em 2020; são a criação e a nutrição da pop e a sua definição no dicionário, as ancas não mentem, temos beats e batidas deles a nutrir-nos há décadas seguidas. Patti Smith. The National: os National chegaram em 2005, o “ano incrível” com Nick Cave, Pixies, Queens of the Stone Age, Vincent Gallo, tem um teatro surreal e sarcástico, melancólico, desafiador, é precioso, Gallo, mais Juliet Lewis, Foo Fighters, Arcade Fire a tocarem às sete da tarde e National às cinco e meia.
14 anos depois dessa estreia, o vocalista Matt Beringer, agora cabeça de cartaz da primeira banda a alguma vez esgotar o primeiro dia, reconta que foi apresentar-se a Nick Cave quando o viu e que Nick Cave lhe disse “oh fuckoff”. E os Suede: vieram em 1999, ano de pesos-pluma com Deus, Guano Apes, Gomez e Lamb, e voltaram com uma lição de tonificação, Brett Anderson a chicotear suor, a encharcar-se nos fãs, toda a euforia britpop ali cristalizada 20 anos depois para sempre.
Houve mais nostalgias com os Spiritualized, a banda mística de Father John Misty e até com os Ganso e o Capitão Fausto, que são novos mas parecem de 1990 e atraem surf, perfume e sotaque sedento sulista. Também houve incríveis, como Mitski (Mitski Miyawaki, 28 anos, nova-iorquina, deu toda uma aula de Indie-rock e sedução à volta de uma mesa e uma cadeira que ela foi revirando em calções justos e olhar de matadora; pareceu uma resposta ácida cheia de sombras de ironia à acusação de abuso sexual de uma adolescente de que a artista este mês foi alvo), ou Deerhunter (dream pop avariado, punk ambiental, criptogramas e um novo disco cheio de fragor) ou os novíssimos cientistas do art rock e dos protões do punk, Black Midi, miúdos londrinos de 19 anos, magnéticos, estranhos, deslumbrantes.
Abraçar 100 mil espectadores, um de cada vez
A última publicação de João Carvalho no Instagram é do domingo a seguir ao encerramento do festival de que é diretor, 18 de agosto, e a fotografia é a do habitual “Obrigado!” escrito sobre a inundação de espectadores na boca da colina frente ao palco. Parecem todos, parecemos, cobertos por uma película protetora finíssima dourada de pó ou por uma filigrana só de protões, todos positivos, da cor do cobalto.
Ele comenta que só lhe ocorre aquela palavra, obrigado, que não há outra no guia da gratidão, e ele, cativado pela atenção, pela fineza, pelo fervor de quem paga e frequenta o seu festival (65 euros ou 84 euros quatro dias) diz ter vontade de abraçar todos e cada um dos espectadores. (A bondosa tenção é exequível mas hercúlea: se Coura tem 100 mil espectadores e João Carvalho demorasse cinco segundos a abraçar cada um deles, ficaria ali durante meio milhão de segundos, que são 139 horas ou 5,7 dias, quase seis, só acabando portanto de abraçar todos os espectadores na sexta-feira seguinte àquele domingo, mais ou menos à hora crepuscular).
João Carvalho, que fundou o Festival de Coura há 27 anos, sorri daquela maneira, diz “Coura é amor”, e passa à explicação: “Não tem segredo, o segredo é a nossa alma. É esse o nosso negócio: tivemos o melhor cartaz, as melhores condições de recinto e o público especial. E queremos sempre superar o mito e melhorar”. É verdade, o público é especial, tanto quando desata a cantar em coro num manto emocionado que o amor nos vai dilacerar (New Order demasiado humanos) ou quando grita gratuitamente a rir “fuck police” várias vezes ao longo da noite, “fuck police, fuck police”, levantados a fazer pistolas com os dedos e o cano a disparar para o ar, isto só porque Freddy Gibbs nos pediu.
A próxima edição do Vodafone Paredes de Coura é de 19 a 22 de agosto de 2020. A partir de hoje faltam 353 dias.
Devemos voltar ao local onde já fomos felizes?
Quem foi ao EDP Vilar de Mouros no dia do meio, o da enchente, o do rodeo-rock dos Offspring que lançou homens maduros cheios de alegria e perplexidade para o mosh, pode ouvir uma canção de uma banda obscura (a quem alguns chamavam Claymox ou Claymore, que é, no primeiro caso, o nome de um medicamento que não existe, e no segundo, como sabemos, uma variante escocesa da espada medieval Montante usada por portugueses e espanhóis há 500 anos e que era uma espada gigante, normalmente da altura inteira do guerreiro, e que tinha que ser manejada com as duas mãos, como as guitarras) chamada Clan of Xymox.
A canção é “A Day”, é de 1985, foi editada na 4AD, é uma bela peça gótica de drama dark-wave synth-pop que dá para dançar. Ainda hoje, 34 anos depois, não saberemos dizer do que trata a canção – só que mete desejo, amor e morte e uma reclamação bastante veemente do vocalista holandês que repete várias vezes em inglês, e desesperadamente, “onde estás tu, onde estás tu?”.
Depois também repete outras tantas “tão longe”, “não faz sentido” e depois mais crucialmente “não faz sentido nenhum”. Talvez ele esteja a cantar, até porque ele também fala de passos afundados, galerias de mortos, dos enganados, “da farsa dos dias de hoje”, o que tanto pode querer dizer que ele está a cantar sobre a saudade, sobre uma conspiração cosmológica global ou então quer só dizer que ele foi deixado – o que é tudo a mesmíssima coisa porque é do amor que se está a falar.
Esta letra lúgubre, o prato do dia de qualquer adolescente de 1980, a imensa maioria do público dali que ouve aquilo três décadas depois, venta em euforia soturna: derrames crescentes de teclas amenas, batida cética e armífera, derivados de sulfurar no ar e tudo laçado numa épica de guitarra injetada de acordes que progridem rapidíssimos em 2x4x3. É uma delícia que sintetiza bem o synth-pop fervente daquele tempo, como um spa que propaga neblina negra e contraluz a brilhar, é ótima para estar parado a dançar ou mais exatamente para dançar sem sair do sítio, que é como se dançava nos anos 1980, depois do punk passar, sem estrebuchar.
Valeu a pena vê-la ao vivo? Claro que não. Agora é como se a memória tivesse sido pirateada, como se fosse uma contrafação. Agora, na memória da juventude – o lugar do valor e da imortalidade -, nessa memória em que nunca devíamos mexer, aparece agora a banda de cabelo pintado em excessivo preto, a meter pregos, a falhar o tempo, desprimorada, descoreografada, amolecida, a voz a borbulhar no ar como partículas perdidas de sulfito de hidrogénio na sua inevitável olência de enxofre – e isso não é coisa que se queira pendurar como recordação.
Quedas, superações, perigos e medos da revisitação
Podemos voltar ao local onde já fomos felizes? Evidentemente que sim, mas o melhor é vestir uma armadura à prova de ironia e de tudo – porque a seguir pode vir uma aflição sentimental. Vieram duas. Os House of Love, cristalina louça de pós-punk e guitarras rendilhadas, são agora uma sala desmoronada e a voz e Guy Chadwick (63 anos) uma ruína a desentoar; “Christine” foi ali assassinada à nossa frente e o doce vespeiro pop de “Shine on” saiu embrulhado e agoniado em mau som e desolação.
A catedral de rock gótico Sisters of Mercy, que dantes só namoriscava mas agora está completamente casada com os tiques todos do hard-rock cansado, é agora um templo de ossadas só, desvigorado, a voz grave e cavernosa de Andrew Eldritch (60 anos) uma zoada sem vida, sem pathos, escalvada, que só refulge quando lhe atiram luz porque já não tem cabelo a gritar.
Quando vamos a um concerto revivalista, isto é com ânsia e desejo de sensações do passado que vamos ousar levar para o presente, há sempre violência. A maior não é saber se o artista se vai superar; é perceber se ele não cai da cristaleira e do hipocampo de cada um, é saber se ele consegue aguentar. Em certo sentido é um exercício masoquista – mas tão irrefragável como parar e ver se alguém se salvou ou se se pode salvar num acidente que ainda está a acontecer. Voltaria ao local do crime e do desastre mesmo sabendo que nada nem o rock se iam salvar? Evidentemente, como Sísifo, que sim.
E pode haver superação. Foi o que sucedeu nesse dia do meio de Vilar de Mouros com Skunk Anansie e The Offspring. O quarteto metalado de britrock inglês a fazer 25 anos (a vocalista Skin é uma negra flor de liz, tem 52 anos e as goelas do Demogorgon), provou que tem mais presente, logo mais futuro, do que passado; as canções novas que tocou respiravam urgência fatal. Da costa californiana, a tocar desde 1989, The Offspring, que é skate-punk, rodeo-rock, sarcasmo e refrães disparados com “heys”, “whoas” e “yeahs”, não só se aguentam como se superam – e desataram o maior mosh que ali se viu, um mosh feliz de maduros a dançar, roda-punk, crowdsurf, os olhos ferozes de satisfação.
A neta escreve a agradecer ao avô Barge que já partiu
“É um novo caminho sustentado, foi o que traçámos há quatro anos e estamos a cumprir”, diz Diogo Marques, que levantou no dia do meio do cartaz de três a placa a dizer esgotado, uma estreia na sua gestão, 18 500 bilhetes vendidos, sublinha o organizador com precisão. “A nossa curva é crescente desde há quatro anos: 22 mil pessoas em 2016, depois 26 mil, no ano passado 32 mil e este ano crescemos para 46 mil espectadores em três dias de festival”. A receita é simples: um pitoresco arraial de rock, campismo e praia (há a fluvial das Azenhas, Bandeira Azul, e a marítima a sete minutos dali) num postal de férias debruado a nostalgia.
É uma refundação da matriz do festival, algo que agradaria a António Barge, médico, regionalista e fundador original desaparecido em 2002, aos 85 anos, levado pelo coração. Diogo Marques, fã do precursor, vértice do triângulo que agrega a Junta e a Câmara de Caminha, partilha uma mensagem que recebeu de Ana Barge, neta do pioneiro promotor, que é uma pequenina carta escrita para o além: “Pois é meu querido António, meu avô, afinal não existe só Lisboa e Algarve! Deste a conhecer esta maravilhosa terra onde tive o prazer de crescer, hoje sonhando sempre voltar. Só queria que visses o sucesso que o TEU, o nosso, festival teve ontem, fantástico! Vilar de Mouros ao rubro, dispararam os amperímetros, enfiem a carapuça os seus detratores. (palavras sábias). Parabéns” e termina a mensagem com o emoji das mãos em prece, a bater palmas, reconhecida, a agraciar.