Rui Cardoso Martins

Fantasmas dos Natais passados

Ilustração: João Vasco Correia

Só um coração de chumbo poderá sair de certos julgamentos sem pensar: o que vai ser desta criança, que vida lhe caberá? Vi tantas pessoas, ouvi tantas vozes, cheirei tanta família, às vezes de raspão, outras mergulhando num caldeirão espesso de segredos, fervendo como alcatrão. E neste Natal de 2019, final da segunda década de um século que ameaça derreter-nos, tão cheio de coisas vazias (e propício a frases empoladas…), ponho-me a pensar no que fez o tempo a estas crianças. No que fizeram elas dos seus anos. Estarão todos vivos, terão saúde, encontraram paz e felicidade?

Por exemplo, a menina de 14 anos a quem precisamente chamei “Um Fantasma”. Escrevi: “O vento é gelado na rua. A rapariga não veio a tribunal porque o médico a proibiu de ser testemunha. É estranho ela ser protegida com uma proibição. Mas tudo pode acontecer a esta rapariga. Tudo lhe tem acontecido. A mãe diz:

– Se eu soubesse antes de o pai dela morrer, estava aqui no tribunal à mesma, mas não era pela minha filha, era por ele.

A mãe tem chorado dentro e fora de casa. Tem vermelhões nas pálpebras.

– Porque eu limpava-lhe o sebo, eu dava-lhe dois tiros.”

Às vezes uma história fica suspensa na sua própria qualidade, pois no fim tem de justificar a expectativa. Neste caso era tão fácil e duro. A menina tinha engravidado com 13 anos, a mãe descobriu aos sete meses de gravidez. Uma médica fez a menina abortar. Esta chorava que queria abortar. Porque o pai do feto, do bebé, era o próprio pai da menina. Seria um filho-neto de um monstro já com sete filhos e entretanto falecido (ele, também, um fantasma). A médica disse em tribunal que pensava que o feto tinha dois meses. Segundo a autópsia e a acusação, “pesava 1 050 gramas, aparentava 29 a 30 semanas de gestação”, sem malformações visíveis. Só equimoses nas pernas, de quando caiu na sanita. O caso foi denunciado porque ela entrou no hospital com fortes hemorragias.

Um dos pontos extraordinários do caso foi a juíza ter sido obrigada a fechar os olhos à lei para alcançar verdadeira justiça. Aquelas mãe e médica não podiam ser condenadas pelo que fizeram. Estamos a falar dos dias anteriores à actual lei do aborto. Mas, no geral, o problema ia manter-se: o feto tinha sete meses, também hoje seria crime. Mas não seria maior monstruosidade aplicar estritamente a lei? No final desta história, eu já lia também o fim de muitas das minhas ilusões sobre a humanidade. Porque o homem continuou a violar a filha depois de engravidar. Onde viverá a menina, algum dia casou e teve filhos? Assim terminei:

“Vi a fotografia da rapariga, tirada aos 12 ou 13 anos para o bilhete de identidade. Estava muito séria quando a tirou.

O pai morreu em cima dela.”

Outro caso, este quase cómico: o menino de dois anos que me tentou atirar ao chão, abanando o banco em que me sentava na sala de audiências. Corria e fazia ésses pelas pernas das cadeiras, e túneis debaixo dos bancos, imitando um carro. Naquele tempo não havia serviços de acompanhamento de menores destacados pelo tribunal e a mãe, uma das arguidas, explicava que não arranjara onde o deixar nessa manhã. De maneira que a juíza foi obrigado a deixar o menino a assistir ao julgamento da família. Como diz a canção, “a saltar, a correr, e as meninas a aprender”. Uma sequência de palavrões e insultos. Por exemplo, alguém à janela dissera a outra mulher:

– As putas começam assim, às esquinas.

Ao que a outra respondera para a janela:

– Vocês são umas fressureiras, andam a apalpar as mamas uma à outra.

E daí partia-se para:

– Ela disse-me que a minha filha é filha dum cigano e e eu respondi que o filho dela é que é dum chinês. Pelo menos é o que consta no bairro!

Também constava no bairro que “a bebé teve foi sorte em não ter nascido preta, isto é o que as pessoas dizem”, acrescentou uma avó.

E outra saltava como uma macaca, gritando “puta, comprida, puta, comprida” e a resposta era que a filha dela era vaca e fazia broches. Era nesta rua que a criança aprendia a falar. Não foi grande surpresa quando a primeira coisa que o bebé disse foi: “Mamã, cocó!” Tão pequenino e já dizia palavrões, já viram?

Que coisas dirá hoje esta criança? Espero que diga, como eu vos digo, queridos leitores: Feliz Natal!