Exercício físico: quanto é demasiado?

Texto de Sofia Teixeira

João tinha 30 anos quando o problema começou. “Problema” é uma palavra que usa hoje, cinco anos e muitas sessões de psicoterapia depois. Na altura, começou por não haver problema nenhum e, mesmo quando já existia, ele nunca o viu como tal. De resto, a história começa por ser banal.

Mudou-se do norte para Lisboa, para assumir funções de maior responsabilidade na empresa onde trabalhava, deixando para trás a namorada e os amigos e tendo pela frente um trabalho mais exigente e mais tempo sozinho. E foi então que teve o impulso que, ainda sem saber, lhe havia de mudar a vida. “Como no final do trabalho estava sempre sozinho, um dia lembrei-me de calçar os ténis e ir correr. A sensação foi tão boa que me inscrevi num ginásio.”

Esse foi o início da relação de João com o exercício físico. Uma relação que, por norma, costuma ser feliz: com a transição de uma vida demasiado sedentária para a prática regular de uma atividade física ganha-se bem-estar físico e mental. E, para João, o início não foi diferente: dormia melhor, sentia-se melhor, estava mais focado no trabalho e sentia mais energia.

Não sabe exatamente quando é que um hábito saudável passou a uma coisa doentia. “Quando dei por mim, estava a ir ao ginásio de segunda a sexta-feira, cerca de duas horas por dia. E o treino era de tal forma importante que comecei a ficar em Lisboa alguns fins de semana para não quebrar a rotina de exercício diária”, conta.

Devia ter entendido essa mudança como um sinal de aviso. Não se resvala de uma prática normal para a patologia de um dia para o outro e a alteração constante de outros planos para dar prioridade ao exercício é um dos sinais de alarme, explica a psicóloga clínica Filipa Jardim da Silva.

Mas há outros. “A perda de liberdade de escolha, como se fosse mais forte do que nós fazermos algo; o foco motivacional assentar fundamentalmente em diminuir imperfeições, ao invés de passar por ganhar energia e gerar prazer e bem-estar e o facto de haver uma quantidade de tempo significativa despendida em torno do tema exercício físico e alimentação saudável”, esclarece a psicóloga.

Um transtorno chamado vigorexia
João passou por todos esses sinais de alarme. Mas estava tão focado em treinar, melhorar o corpo e alcançar novos e mais ambiciosos objetivos que não se deu conta que estava a correr em direção à doença.

“O exercício físico passou a ser o centro da minha vida: inscrevi-me em corridas e competições no ginásio, criava regularmente novos objetivos para ficar mais seco, mais definido, mais ágil e as refeições fora de casa ou as viagens deixavam-me nervoso, por não controlar totalmente o que ia comer. Assumo agora que nada era mais importante do que treinar e comer bem.”

A fase seguinte foi deixar de ter necessidade de dormir e, mesmo quando sentia sono, não conseguir descansar. Sentia-se fraco, mas achava que isso significava que tinha de treinar mais. Depois, começaram a chegar as queixas dos outros: os chefes diziam que tinha de ser menos agressivo e competitivo com os colegas e a namorada fez-lhe um ultimato: ou procurava ajuda ou deixava-o.

Entrou num consultório de psicologia quase dois anos depois do dia em que calçou os ténis para ir correr pela primeira vez. E saiu de lá com um diagnóstico de vigorexia ou complexo de Adónis, que demorou um ano a ficar controlado.

“Para as pessoas com vigorexia, olhar para o espelho pode ser uma experiência verdadeiramente desagradável e geradora de sofrimento. Há um sentimento de permanente insatisfação em relação ao corpo e uma perceção distorcida: o reflexo percecionado é de alguém muito magro e enfraquecido, quando tal não corresponde à realidade”, realça Filipa Jardim da Silva.

Na origem do distúrbio, mais vulgar entre o sexo masculino, está um cocktail explosivo feito de características de personalidade, como o perfecionismo, e algumas alterações a nível dos neurotransmissores, mas também uma marcada influência do meio, que não exige nada menos do que ser perfeito.

E se, numa primeira fase, foram as mulheres as mais afetadas, hoje também os homens sentem essa pressão. “Há uma geração de homens jovens (e não só) que acreditam que serão mais bem-sucedidos a nível pessoal e profissional se tiverem um corpo atlético. Entrámos na era do super-homem e da supermulher, e os filtros das redes sociais fazem-nos comprar esta ilusão de perfeição e sucesso global, em todas as dimensões da vida”, defende Filipa Jardim da Silva.

Hoje, João obriga-se a não ultrapassar os três, no máximo quatro, treinos semanais. Sabe que sucesso e forma física são coisas diferentes, presta mais atenção às análises clínicas e menos à balança. Mas encara a relação com o corpo e com o exercício como uma doença crónica e sabe que precisa de estar atento para não ter uma recaída.

Onde traçar a linha?
Nem sempre o excesso de exercício tem origem num problema de autoperceção, como no caso de João. Muitas vezes, o entusiasmo inicial ou a má orientação são suficientes para cometer excessos. Sabemos que é saudável e desejável – de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS) – que os adultos pratiquem o mínimo de 150 minutos de atividade física de intensidade moderada por semana, podendo esse valor chegar aos 300 minutos, para maiores benefícios. Mas qual é o valor a partir do qual o exercício deixa de ser benéfico para passar a ser potencialmente prejudicial?

“A linha entre o exercício saudável e o excessivo não é fácil de traçar de forma genérica”, argumenta o personal trainer (PT) Pedro Almeida. “É necessário ter em conta a predisposição genética, o tipo de exercício, o histórico desportivo, a alimentação e o repouso. Para praticantes amadores, o fundamental é realizar um bom programa de treino adaptado ao objetivo, onde exista uma boa recuperação física entre treinos.” Até porque o chamado overtraining tem consequências que extravasam o período de treino e se alastram ao dia-a-dia.

Ainda assim, para alguém que está a começar – e depois de uma avaliação médica e de uma avaliação física – o PT defende que o exercício pode começar a ser praticado duas a três vezes por semana, com sessões de 30 a 60 minutos e optando por atividades de impacto reduzido.

“Após cumprir um ciclo de quatro semanas de adaptação, o volume de treino e a intensidade do mesmo podem ser aumentados progressivamente, tendo em conta o objetivo do praticante. Independentemente do volume de treino semanal, recomendo que haja pelo menos um dia de descanso por semana, sem atividade física”, reitera.

Também Joaquim Fonseca Esteves, especialista em Medicina Interna, em Medicina Desportiva e ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Desportiva, defende que definir excesso é difícil, mas aponta a idade como um diferencial importante. “Um sénior ou veterano sedentário que pretende iniciar a prática regular de exercício deve ser observado pelo médico, de forma a excluir uma doença cardiovascular e outros fatores de risco. Só após este exame poderá saber com maior segurança qual a duração, o tipo e a intensidade de exercício que deverá fazer e a frequência cardíaca limite aconselhável”, defende o médico.

Até porque demasiado exercício nem sempre significa exercício com demasiada frequência. Alguém que pratica uma modalidade apenas uma ou duas vezes por semana também pode estar a abusar, não na quantidade, mas na intensidade, sobretudo tendo em conta a sua preparação física.

Nesse aspeto, Joaquim Fonseca Esteves considera que há uma medida que nos pode guiar: os batimentos cardíacos. “A frequência cardíaca não deve ultrapassar, em média, 130 a 150 contrações por minuto”, esclarece. Da mesma forma, sintomas relacionados com o esforço que possam surgir durante o treino, como exaustão extrema, sensação de desmaio e falta de força nas pernas, devem ser valorizados e são sinal que o corpo quer parar. E devemos ouvi-lo.

Os treinos não são todos iguais
Exercício físico é um conceito amplo. Abarca coisas muito diferentes e são essas diferenças, substanciais, que também ajudam a definir como deve ser feito para não se cometer excessos. João Torres, especialista em Ortopedia e Traumatologia e docente da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, lembra que os tempos de recuperação estão relacionados com vários fatores, nomeadamente a intensidade e a duração do treino.

E exemplifica: “Por norma, uma caminhada, com duração de uma hora, permite uma recuperação em 24 horas, sendo possível repeti-la. Já o treino de musculação intenso de um determinado grupo muscular pode necessitar de 48 a 72 horas de recuperação. Repetir esse treino passadas 24 horas pode levar a lesões.”

A corrida, que se tornou moda há uns anos, tem sido acusada de levar muita gente ao médico, com lesões nos membros inferiores. O personal trainer Pedro Almeida concorda que as lesões mais frequentes, em amadores, quando o exercício não é devidamente supervisionado, estão relacionadas com as estruturas articulares, nomeadamente nos membros inferiores.

“Um dos erros mais frequentes é fazer corrida sem realizar, paralelamente, um plano de reforço muscular. A corrida tem efeitos muito positivos. Mas, se não for devidamente acompanhada de reforço muscular e de um treino de técnica de corrida, pode causar danos articulares sérios”, alerta.

O ortopedista João Torres acrescenta que, sendo que o objetivo é perder peso, recomendam-se exercícios com menor impacto, como a natação, bicicleta ou elíptica, e não corrida, precisamente para proteger os membros inferiores de um maior desgaste.

E também chama a atenção para o exercício realizado sem supervisão adequada, com posicionamentos incorretos e, muitas vezes, com cargas exageradas, como os populares agachamentos. “Quando não realizados de forma adequada, levam a um desgaste precoce da articulação entre a rótula e o fémur, podendo mesmo provocar lesões graves da cartilagem. Também os exercícios de musculação repetidos, muito acima do nível dos ombros, podem levar a lesões de desgaste no ombro, extremamente limitadoras.”

Por fim, há um grupo mais insuspeito que também se arrisca a lesões, os chamados “weekend warriors”: indivíduos sedentários durante toda a semana e que, ao fim de semana, praticam um desporto de elevada intensidade, como o futebol.

“É o tipo de desporto que para ser praticado com segurança necessita de uma preparação física regular, de modo a prevenir lesões. A solicitação que é exigida ao corpo nesse dia, uma vez por semana, é desproporcional à resposta que o organismo consegue dar. E, nessas situações, as lesões são muito comuns”, explica o ortopedista. Fica o aviso, para não ser apanhado na curva, num jogo com amigos.

Sintomas de quem está a treinar demasiado

1. Diminuição da qualidade do sono

2. Aumento da frequência cardíaca em repouso

3. Dores musculares persistentes

4. Sintomas de depressão

5. Mudança de humor

6. Perda de condição física com diminuição da força

7. Diminuição da capacidade imunológica

8. Sensação de fadiga crónica