Eunice Muñoz: “Não tenho a certeza se gostava de ser fisicamente imortal”

Foto: Paulo Spranger/Global Imagens

Entrevista de Alexandra Tavares-Teles

Eunice recebe-nos à porta pelo início da tarde. Vestida de forma sóbria e elegante, pérolas no pescoço. Uma conjugação perfeita de sombra e de luz, como numa fotografia a preto e branco. O rosto é um rasgo.

Na pequena sala ao fundo do corredor, profusamente decorada, onde vivem memórias de família e de viagens, um relógio marca o tempo em poderosas badaladas. É uma casa cheia de história e de vida, onde o cinema português e o teatro nacional desfilam em cartazes pelas paredes. Kitti, a gata, assiste à entrevista espreguiçada nas costas do sofá, flirtando com o sol que chega de uma varanda florida.

Houve um susto recente de saúde. Passou. “O mais grave foi uma aflição em 2011. Caí numa escada do D. Maria. Ficaram várias mazelas, parti os dois pulsos, e fiz uma fratura na coluna. Essa é a que ainda hoje mais incomoda, porque basta um movimento forçado para doer.” A voz está menos segura. A aparência, mais frágil. Mas o rosto tem a força de sempre. Há fotografias dos pais, dos avós maternos, os Carmo. Jovens, sorriem sobre a mesa do centro. São rostos que nos remetem para os anos 1920: “Deve ter sido uma época muito bonita”.

No tampo da mesa, em azulejo, oferecido por um admirador em comemoração de meio século de palco, lê-se: “Eunice valeu a pena/Saber estar com ar feliz/50 anos em cena/Ser mulher e atriz”.

Chamam-lhe grande dama do teatro português. Cai-lhe bem?
Não, não acho graça. É esquisito. Gosto pouco desses epítetos.

A Fernanda Montenegro, quando lhe chamam a grande dama do teatro brasileiro, fica muito irritada.
Não me admira nada. Também não é de gostar dessas coisas. Que saudades tenho da Fernanda, há muito tempo que não vem a Portugal. Somos amigas há muitos anos. Tenho, claro, muitos ciúmes dela, porque é uma grande atriz e uma grande pessoa. Tem uma capacidade de entrega extraordinária e cada interpretação dela é uma coisa diferente. Admiro-a profundamente.

Caetano Veloso chama a Fernanda Montenegro “a civilizadora”. Gosta mais?
Não estou muito interessada em epítetos, confesso.

É difícil fugir-lhes quando se chega ao patamar da Eunice.
De uma maneira geral gostam muito de mim e isso dá-me muita satisfação. Chamem-me Eunice. Gosto. Eunice chega.

Eunice, a maior atriz portuguesa?
Pode ser-se sempre melhor e melhor e melhor.

Estreou-se no Teatro Nacional, com a peça Vendaval. Tinha 13 anos. Fale-me dessa noite de 1941.
Do que me lembro muito é do terror de ver o pano de boca a subir. É uma imagem que se eterniza.

Uma menina que chegou viu e venceu.
Não fazia ideia do que ia acontecer comigo. Era uma miúda, e estava ali cheia de medo. O primeiro ato era numa escola, um colégio de freiras. Mas já não me lembro das falas. Sei que estava com medo.

Como chega ao Teatro Nacional?
Porque um velho amigo da família chamado Sales Ribeiro, um tenor que tinha sido um nome muito importante, conheceu-me e soube que a minha mestra, Amélia Rey Colaço, precisava de uma miúda com a minha idade. “Então, mande-ma cá.” E lá fui.

Lembra-se desse primeiro encontro?
Como todas as pessoas verdadeiramente superiores, a minha mestra era generosa. Deixou-me o mais à-vontade possível. De tal modo que não quis sequer que a minha mãe me tirasse os laços no cabelo que eu estava habituada a usar.

A filha estava nervosa. E a mãe?
Felicíssima e muito orgulhosa. Sabia que era o primeiro teatro do país.

A mãe e as tias atrizes, avô e avó atores. O teatro no sangue.
A minha avó materna era uma grande atriz. Admiro-a profundamente. Profundamente.

Do lado paterno, o circo.
Sim, o lado Muñoz Cardinali é do circo. E da música. O meu avô tinha o curso de violino do conservatório de Madrid. Um dia viu a minha avó. Apaixonou-se.

E raptou-a.
Mas antes, só para poder estar perto dela, pediu-lhe para tocar no circo. Um romântico. Uma história muito bonita.

Estreia-se aos cinco anos a cantar e a representar.
Era daquelas crianças que apareciam nas praças.

Uma vida de saltimbanco, dificilmente conciliável com a escola.
Fiz a quarta classe em Coimbra, a terceira, em Lisboa, em casa de uns amigos dos meus pais. A minha mãe só nos pôs na escola muito mais tarde. Era ela que nos preparava e nos levava a exame. Eu gostava muito de Geografia. E de História.

Quem salta de terra em terra vai deixando os amigos. Foi uma criança solitária?
Tinha uma vantagem que era um irmão mais novo um ano.

O irmão a quem pedia que lhe tirasse as botas.
(risos) Ele era muito generoso e eu abusava. Era muito mazinha.

Era?
Era, era. Não era nada boazinha. Não era nada a criancinha boazinha. Era muito torta.

Com o ADN familiar, algum dia pensou seguir outro caminho?
Em miúda, não. Mas mais tarde, sim.

Foto: Paulo Spranger/Global Imagens

De tal maneira que pára durante quatro anos, mas já lá vamos. Fale-me primeiro da avó que admirava muito.
A avó Augusta. Foi uma referência toda a vida. Era uma atriz tão grande que era tão boa na comicidade como no drama. É uma coisa rara. A avó Augusta deixava-me de boca aberta e fazia-me sofrer imenso nos espetáculos dramáticos. Ia para casa lavada em lágrimas.

Por serem tão realistas?
Nasci ali, uma miúda que nasce no meio sabe que aquilo é representação. Mas comovia-me o grande talento dela. O grande talento dela, uma mulher que nunca vem a Lisboa porque o meu avô não queria que ela, nem as suas quatro filhas, viessem para o que considerava um antro de perdição. Portanto, esse grande talento ficou pelo teatro desmontável dos meus pais.

De onde era a avó?
Não sei. Nunca ninguém me perguntou isso. O meu avô sei. Não era alentejano, mas não descansou enquanto não comprou uma casa no Alentejo. Tinha a paixão do Alentejo. Que continuou em mim.

Mas a Eunice é alentejana.
Muito alentejana.

Que lhe dizia essa avó sobre teatro?
A avó dizia muita coisa, mas eu era tão parva que nunca aproveitei. Porque é que não a ouvi mais. Tinha muita pena de não vir para Lisboa, mas pertencia a uma geração em que o marido mandava.

E na geração da Eunice também.
Sim, mas em mim nenhum marido mandou.

Como reage às ordens?
Se são tontas reajo muito mal. Continuo com o nariz arrebitado.

Herdou o talento da avó?
Sinto que sim.

E do lado paterno, o que ficou?
O meu pai era um homem com um poder de comunicação enorme, não esquecer que era filho de uma italiana e de um espanhol. Era todo para fora. Eu era menos expansiva e mais observadora. Não era muito simpática. Não era “que amor”. Gostava muito de conversar, era cheia de opiniões. Era parva. No teatro, brincavam comigo – pediam-me para dizer o que tinha gostado e não tinha gostado. Porque sabiam que eu era muito dura. Lembro-me de achar o público uma desgraça. Achava que eram todos estúpidos e burros. Na verdade, tinha sete anos e estávamos no Alentejo.

Foi Joana d’Arc, aos 27 anos, depois de uma paragem de quatro anos. Por que razão se afastou?
Porque queria conhecer outra gente. Estava farta de fazer teatro, das conversas sobre teatro. Era teatro e mais teatro e mais teatro.

Fale-me desses quatro anos.
Tinha 19 anos quando decidi parar. Já estava casada, já tinha uma filha. Mas precisava de conhecer outra gente, pessoas que falassem outras línguas e tratassem de outros assuntos. Estive um ano na Casa das Cortiças, que ainda existe. Era perto do Príncipe Real. Depois, durante três anos, fui secretária de uma fábrica de cabos elétricos e telefónicos, à saída de Benfica.

Foi feliz longe do teatro?
De certo modo fui. Interessava conhecer as pessoas, queria estar com elas, com os problemas delas e observar como era a vida delas realmente.

Porque regressa e logo para Joana d’Arc?
O Vasco Morgado fazia-me sempre muitas esperas, insistia, insistia muito. E ao fim de quatro anos de insistências, cedi. Na altura, já eu namorava o meu segundo marido, engenheiro da fábrica onde eu estava. E ele também fez força. Estava ao lado do Morgado, achava que eu devia voltar. Regressei a pensar “vamos lá ver como corre”. E também porque a peça interessava-me muito. Era um desafio.

O palco é um lugar de liberdade?
Tem muito pouco de liberdade. Estar com um texto na cabeça, a pensar em não falhar. Querer aproximar-se o mais possível da personagem, estar lá inteira.

O palco pode ser um pesadelo?
Curioso fazer essa pergunta. Sabe, durante muitos, muitos anos tive um sonho – um pesadelo – passado no teatro. Matavam-me com um tiro da plateia. Durou anos.

Como assim?
Estou em palco com o Artur Semedo, ele faz uma brincadeira e eu recebo um tiro vindo da assistência.

Tem uma interpretação?
O Artur não resistia a brincar. Fazia piadas, sinais, palhaçadas. E isso deixava-me completamente em pânico. Foram anos a sonhar com esse tiro.

Acordada, o pesadelo maior é a branca?
É capaz de ser.

Tem rituais de palco? Superstições?
Não. É muito cansativo. O Zé de Castro (José de Castro) tinha de fazer na estreia o mesmo percurso que fizera no ensaio geral. E ficava muito mal se não o fizesse. Parava tudo.

Situação caricata em palco, recorda-se?
Fui sempre muito rigorosa no meu trabalho. Rigorosa e exigente comigo e com os outros. O mestre Alves da Cunha gostava muito de fazer partidas em cena. Partidas valentes a ponto de lhe dizer “Mestre, não volta a fazer isso. Porque se volta a fazer o que fez eu saio logo de cena”. Nunca tive bom feitio.

Mas é amada por todos.
Porque não sou traiçoeira, nunca fui, nem sou, invejosa.

Quando decide que o regresso ao teatro era definitivo?
Depois do sucesso de Joana d’Arc. Tudo se compôs para isso. As circunstâncias, o ter sido um êxito fabuloso, existem imagens das filas nas bilheteiras. Como nos grandes êxitos, a personagem ficou-me colada. Durante anos e anos, no final das minhas estreias, um espectador sempre presente gritava “bravo, Joana d’Arc”.

Foto: Paulo Spranger/Global Imagens

Carmen Dolores era a “rival”. Como era a vossa relação?
A melhor possível. Toda a gente tem uma boa relação com a Carmen, é uma mulher extraordinária, uma grande atriz e a bondade e a compreensão em pessoa. Não há ninguém melhor do que ela. Liga-se para a Carmen e a Carmen está lá, sempre. Ou telefona para saber dos amigos e colegas.

Nunca fomentaram a rivalidade?
Nunca.

Nem os colegas?
Esses, talvez. Os atores são uns brincalhões. E eu e ela ríamo-nos.

E um par masculino. Quem é realmente o par?
João Perry.

Ligam-na muito a Ruy de Carvalho.
A imprensa é que faz isso. Até perguntam se somos casados. Sou amiga do Ruy, mas a minha grande referência como meu colega é o João Perry. Para os outros tenho de pensar. Mas para o João não preciso. É amigo de toda a vida.

E como era o público em Lisboa, nos anos 1950.
Ótimo e apaixonado.

Imagino as solicitações.
Para o mal, era um bocado chato porque de vez em quando havia umas damas que se apaixonavam e essas coisas são muito sensíveis e complicadas. Havia muito. Engraçado, agora que estou a dizer isso, nessas minhas conversas com jovens atrizes, nunca me perguntaram sobre isso. As pessoas pensam mais na homossexualidade masculina.

Mulheres apaixonadas pela Eunice?
Sim. Mandavam sobretudo muitas fotografias. Mais fotografias, fotografias (risos). Quase sempre eram raparigas com grande vocação e sensibilidade para a fotografia.

E admiradores?
Alguns, também.

Frequentava a boémia?
Nem sempre, o trabalho era muito.

As mulheres no teatro. Sentiu preconceito?
Nenhum. Toda a minha família estava no teatro.

Que ideia fazia de Salazar.
Salazar era uma personagem para os salazaristas. Nunca estive com ele. Ele não era de teatro.

Uma atriz de teatro de um país que proíbe a obra de Shakespeare.
Muito mau. Pensei ir para o Brasil. Depois as coisas foram para outro lado, já nem me lembro porquê. Se calhar porque apareceu um trabalho que me interessava fazer.

Tem uma voz maravilhosa.
Tinha.

E é especialista em silêncios.
Nesses silêncios é preciso pensar, acima de tudo, na personagem. Incorporar a personagem. Cantar por dentro e chorar por fora, não consigo. Assim não sei representar.

Fixa os elogios?
Fico muito grata, gosto muito, mas esqueço-me completamente. Tenho mais em que pensar.

O que sempre a distinguiu?
Uma grande vocação e uma grande paixão pelo meu trabalho a partir de uma certa altura da minha vida.

A partir dos 27 anos, quando o futuro segundo marido a incentivou. Será que ele nunca se arrependeu?
Nem ele nem eu.

Como é a Eunice quando se apaixona?
Não há palavras para descrever.

Apaixona-se facilmente?
Não tenho medo de me apaixonar. Vivo comigo e com tudo o que está fora de mim. Sou cada vez mais observadora de tudo. Vejo coisas que não via. Por vezes, sinto que os netos e os amigos ficam a pensar “será que ela está bem”?

Casou sempre com homens de fora do meio. E que tiveram de lidar com a grande projeção da mulher.
Coitados. Não tiveram outro remédio. Porque me amavam. São muito difíceis estes lugares. Ela muito conhecida e ele que ninguém conhece. Deve ser uma coisa extremamente desagradável.

Nunca se queixaram?
Nunca.

O que é mais difícil no casamento?
Adaptarmo-nos. Duas criaturas que têm de se adaptar. Uma dificuldade que muitas pessoas não conseguem vencer.

Amor ou trabalho – o que é mais importante?
O amor. Não hesito.

Em 2017, em entrevista, revelou que trabalhava também para sobreviver. O que lhe apetece dizer ao país que já tanto a condecorou?
É muito difícil dar-lhe uma resposta. Esta é outra gente. E este público não é o público que eu tinha. Tive a grande alegria de me despedir de uma forma muito bonita aos 83 anos, no teatro Mirita Casimiro e na companhia do Mestre Avillez. Não tinha vontade de me despedir, mas foram as circunstâncias. Não posso, nem quero ter um ar derrotista porque sei que o teatro perdurará. Tem qualquer coisa de misterioso. E as pessoas que têm talento acabam sempre por vencer. Há os grandes talentos efetivamente.

A fama. Há quem se aproxime do teatro mais pela fama que daí pode vir do que pelo amor à representação. Concorda?
Tristemente, sim. De outra maneira não se perceberia porque é que há gente com talento em casa e outros a exibir-se.

Há alguém na nova geração que lhe desperte interesse?
Tenho muita dificuldade em responder-lhe porque tenho uma neta com muito talento, é muito boa, tem grande amor e respeito pelo teatro e tenho uma grande esperança em relação a ela. Mas, evidentemente, com esta catadupa de jovens interessados em tudo menos no trabalho a sério, ela vai levar mais tempo a chegar lá. Mas acho que vai chegar.

Nunca teve queixa de menos respeito em palco?
Não.

Mas tem algumas mágoas?
(Hesita muito) Sabe, tive sempre algo que me ajudou muito na minha carreira: sou muito distraída (risos). Não levo a sério as coisas. Chego sempre à conclusão de que não vale a pena.

Foi assediada?
Não assisti a assédio nem fui assediada e não me parece que tenha sentido. Um homem vai só até onde uma mulher quer.

Foto: Paulo Spranger/Global Imagens

Estamos a falar de homens e mulheres poderosos, que determinavam carreiras.
É assim tão importante e necessário protagonizar um filme ou uma peça, a ponto de ter de ir para a cama com um homem? Acho que protagonizar um filme ou uma peça, quando comparado, é muito pouco.

Os atores e as atrizes vivem também da imagem. Preocupa-a o envelhecimento?
Perdi vários trabalhos. Mas perdi mais pela censura. Papéis que me interessava mais ter.

No meio, quanto vale o aspeto físico?
Nunca dei valor ao aspeto. Sempre me vesti como eu queria e sempre vesti o que eu queria. Nunca fui de modas. Só visto o que gosto de vestir.

Que traz a idade que valha muito a pena?
Aprendermos a olhar para as coisas. Leva muito tempo a aprender. E é muito engraçado. É muito interessante verificar uma coisa que achei que era bonita passar despercebida aos mais novos. De facto, para que vou deter-me sobre a planta, se cresceu mais ou menos, quando tenho 20 anos? Não vale a pena. Não está na altura. Essa é altura de ver outras coisas. Agora é o meu tempo de observação das pessoas.

Dessa observação, o Mundo é um lugar pior ou melhor?
Tenho mais tempo para as ver. Para ver o bom e o mau. Mas não me prendo com o mau porque não vale a pena. Não estou cá para sofrer.

Há sempre as perdas.
Tenho muitas saudades dos meus amigos que desapareceram. Mais do que uma perna que se prende, do que um desequilíbrio que surge, mais, muito mais do que isso, é perder amigos. Posso sofrer por estar daqui a pouco numa cadeira de rodas, mas saber que deixei de ver aquele amigo ou amiga, que deixei de o ouvir dói muito mais. O Nicolau Breyner estava na mesma novela em que eu estava. Morreu muito triste. O Nico estava muito triste. Estive com ele na véspera. Estava muito pálido e muito triste. O coração estava triste e só.

O que a impressiona nas pessoas?
O seu passado, o que fizeram, o que nos deram, portanto.

O que a encanta na natureza humana?
A generosidade.

Os portugueses são generosos?
Eu tenho coisas muito bonitas de encontros. E tenho-as desde há 50 anos.

Um pouco invejosos, não?
Ah, bom, mas eu refiro-me ao público em geral, não a esse lado de dentro do teatro.

Como é esse lado. O que mais a incomoda no meio?
Que se fale dos outros. Acho que é muito desagradável. Nenhum de nós é perfeito. Não vale perder tempo a pensar nisso.

Como é que Portugal trata a cultura. Diz-se que a cultura tira a comida do prato do pobre.
Umas vezes trata melhor, outras trata pior. Depende de quem está à frente dos movimentos e das reivindicações. Mas, de uma maneira geral, não podemos dizer que nos tratam muito bem. Há casos muito dramáticos. Já tento tentado intervir em alguns.

Como é o relacionamento da Eunice com o poder político?
Apoiei o Isaltino (de Morais). Porque já fez muita coisa. Fez muito por toda esta região e por muita gente daqui. Não é por acaso que o Isaltino, mesmo sem proteção, ganha as eleições. As pessoas têm de pensar um pouco nisso. As outras coisas não comento.

Como é o seu dia-a-dia quase a fazer 91 anos?
O meu tempo é fazer umas coisas em casa. Gosto de fazer as coisas em casa. De arrumar, de mudar o lugar das coisas, gosto muito de ler. Poesia.

Gosta de estar sozinha?
Gosto, gosto. Não me faz diferença nenhuma.

O que a relaxa?
Descer os olhos. E ficar assim. Acordada.

As pessoas do teatro são mais lunares.
Tenho vindo a contrariar a tendência de gostar mais da noite. Mas, mesmo assim, nunca adormeço antes da uma da manhã.

A noite é mais dada a pensamentos.
É verdade.

Seis filhos e oito netos. Visitam-na muito?
Algumas vezes, sim. Vivo com uma. Aí já estou acompanhada.

Brincava com filhos e netos aos teatrinhos?
Com os filhos, brincava muito raramente. Não se esqueça que eu estava sempre a trabalhar. Os netos começaram a ver teatro aos três anos.

Quantos seguiram o teatro?
Três. Dois deles desistiram. A neta continuou. Fez o curso do conservatório há mais de dez anos. Há 12 anos que está na profissão.

Tem um apelido pesado.
Muito, muito, pesado. Que a tem prejudicado muito. É um grande erro pensar que pode beneficiar. Prejudica. É uma ilusão pensar que beneficia.

As leituras são notívagas?
Leio sobretudo à noite, mas não só à noite.

A noite aproxima-a de Deus?
Sou crente e tenho algumas conversas. A proteção à minha família, aos meus amigos, aos que precisam.

Gostava de ser fisicamente imortal?
Não tenho a certeza se gostava de ser fisicamente imortal.

Conseguiria escolher a fase mais radiosa da vida?
Nunca escolhi muito. As coisas foram acontecendo. Nunca planeei muito.

A escolha de autores foi sempre muito criteriosa.
A partir de certa altura, quando pude. Quando a censura deixou. E a situação económica. Fiz alguns trabalhos por essa exclusiva razão. Fiquei muito nova com uma filha a quem tive de cuidar e manter. E não ia a lado nenhum fora do país porque precisava da autorização do marido, no meu caso do meu ex-marido. Porque não havia divórcio. Era separada, mas não era divorciada. Não tinha essa liberdade.

É feminista?
A luta tem sido muito grande e já tem muito tempo. E ainda falta um pedaço.

Se não fosse atriz o que gostaria de ser?
Seria sempre qualquer coisa artística. Pintora.

Pinta?
Não. Quando faço qualquer coisa é tão mau que não repito. De mãos, não tenho jeito para nada. Uma desgraça.

Para além da representação, o que faz muito bem?
Deixe cá ver. Certos pratos de cozinha. Não muitos. De uma maneira geral gosto de cozinhar, mas sem ser por obrigação.

Se não fosse a Eunice quem gostava de ser?
(Aponta para o gato amarelo torrado) Ele. É o único homem desta casa. Gostava de ser ele.

Como é que se chama?
Tenho de me lembrar. Mas lembro-me já.

Porquê?
Porque faz o que quer.

Bom, a Eunice já só faz um pouco o que quer.
Sim, isso é verdade.

E sobre o futuro?
A vida tem sido boa. Tenho sido compensada. Tenho tido grandes alegrias, familiares e profissionais. Não posso queixar-me. Recentemente, fiz uma intervenção na TVI, já acabou. Agora virá alguma coisa. Ou não. Logo se vê. Mas estou disponível. Ai… Cris. O gato chama-se Cris.