Este país (ainda) não é para “whistleblowers”

Espionagem, promoções académicas com base em subornos e uso de dados privados de forma ilegal. São apenas três casos investigados pelas autoridades europeias com base em denúncias de delatores, ou “whistleblowers”. Há mais exemplos e a União Europeia prepara-se para reforçar a sua proteção. A recente detenção do hacker Rui Pinto fez soar os alarmes sobre a questão em Portugal. Que proteção existe no nosso país para estes casos?

Em 2007, James Dunnen, funcionário da tecnológica francesa Qosmos, começou a desconfiar que a empresa onde trabalhava usava técnicas ilegais de espionagem contra cidadãos. Quatro anos depois, surgiram as primeiras notícias de que a Qosmos tinha colaborado com o regime de Kadafi, na Líbia, e de Bashar al-Assad, na Síria. Dunnen entregou, então, os documentos que copiou aos jornalistas da Mediaset e às autoridades francesas. O delator foi despedido e enfrentou uma longa batalha legal, que acabaria por vencer. Passou por uma crise de depressão e está agora a reconstruir a vida.

Em Itália, não foi a espionagem a despertar a atenção das autoridades, mas sim os caminhos da corrupção no meio académico. Mais uma vez, o escândalo foi espoletado por um denunciante, Philip Laroma Jezzi, professor que expôs um esquema sujo de promoção de professores. Mais de 50 docentes foram investigados, sendo que sete acabaram mesmo detidos domiciliarmente e 22 foram afastados de cargos académicos.

Mais recentemente, e talvez o mais mediático dos casos, envolve Christopher Wylie, o “whistleblower” que, ao jornal inglês “The Guardian”, revelou o esquema que envolveu a Cambridge Analytica e o Facebook na recolha de informações pessoais de 50 milhões de utilizadores. Dados que terão sido usados para manipular o resultado das eleições nos EUA, a favor de Donald Trump.

UE quer proteger os delatores

Os três casos tiveram consequências, tanto para quem denunciou como para os denunciados. É, precisamente, para proteger os primeiros que no passado dia 16, o Parlamento Europeu, reunido em Estrasburgo, aprovou um texto provisório da diretiva relativa à proteção dos autores de denúncias. O texto surge depois de negociações com representantes da Comissão Europeia e dos governos dos Estados-Membros e confere maior proteção jurídica e apoio institucional às pessoas que denunciem casos de corrupção e outras ilegalidades nos locais de trabalho, sejam entidades públicas ou privadas.

“Esta diretiva vem alargar a proteção dada a estas pessoas. Garante-se não só a proteção contra retaliações internas, com proibição de despedimentos ou de despromoção, mas também a proteção dos próprios sistemas judiciais”, explica a eurodeputada Ana Gomes.

Para a socialista, que está prestes a terminar o mandato no Parlamento Europeu, a diretiva vai tornar “eficaz o combate à corrupção” e aos crimes “relacionados com branqueamento de capitais ou fiscais”. “São inúmeros os casos de ‘whistleblowers’ que viram as carreiras, as vidas e a vida das suas famílias drasticamente afetadas, por terem tido a coragem de expor crimes e criminosos”, lamenta.

“A existência de mecanismos seguros para essas denúncias é importante não só para que se possa levar ao conhecimento das autoridades suspeitas de crimes, mas é também uma forma de reequilibrar a balança de poder dentro das organizações”, sublinha João Paulo Batalha, presidente da direção da Organização Integridade e Transparência (TI PT). “Um denunciante não pode ser visto como um bufo. Pelo contrário. É sempre alguém que deteta a violação das regras e dá o sinal de alerta”, lembra.

O “tigre de papel” da legislação em Portugal

Em Portugal, um dos casos mais conhecidos, muito antes da polémica que envolve Rui Pinto, está relacionado com o processo Bragaparques, em que o empresário Domingos Névoa foi condenado por tentativa de suborno ao vereador José Sá Fernandes, da Câmara Municipal de Lisboa. O caso teve por base a denúncia do advogado Ricardo Sá Fernandes, irmão do vereador, que foi contactado por Domingos Névoa para servir de intermediário ao suborno. O advogado gravou o encontro com Domingos Névoa, que depois denunciou à PJ, e acabou também condenado, por ter realizado uma gravação ilegal.
“Este caso acabou famoso pelas piores razões e mostra bem como os denunciantes em Portugal se expõem a muitos riscos e acabam por ter muitos incentivos para ficar em silêncio”, diz o responsável máximo pelo TI PT. “É um tigre de papel, uma ilusão de proteção que chega a ser perversa, porque dá aos denunciantes a ideia de que podem dar o alarme em situações suspeitas, mas depois na prática as proteções evaporam-se”, acrescenta.

“Em Portugal não existe enquadramento jurídico para o que é um ‘whistleblower’”, garante o advogado Carlos Melo Alves. “O que temos é uma proteção para os chamados denunciantes. Se alguém prestar informações relevantes para uma investigação criminal, a sua identificação pode não ser revelada. Mesmo em sede de julgamento pode prestar depoimento incriminatório contra os arguidos e poderá prestar depoimento noutro tribunal. É, no fundo, a lei de proteção de testemunhas”, explica o especialista na área penal.

Há ainda espaço para os arrependidos. “Indivíduos que cometeram um crime e que podem colaborar com as autoridades, denunciando outros implicados, ajudando a desmantelar redes criminosas.” De acordo com o advogado, são casos que estão previstos na lei em situações como o “terrorismo, associação criminosa, tráfico de estupefacientes, tráfico de armas e corrupção”.

Numa outra vertente, há ainda os “agentes encobertos ou infiltrados”, que são “agentes de investigação criminal” especialmente treinados para este efeito, ou mesmo cidadãos comuns, mas atuando sempre sob controlo judicial. “Estes indivíduos, em regra, penetram nas redes criminosas a fim de identificarem os comparticipantes nos crimes. Praticam factos que não fora o estatuto em que estão investidos seriam crime”, refere.

O caso “Tugaleaks”

Neste universo, além das pessoas que denunciam, há ainda as plataformas onde são expostas as denúncias. Rui Cruz, bem conhecido no seio do movimento hacker português, é o responsável pelo projeto “Tugaleaks”, uma página, registada na Entidade Reguladora para a Comunicação Social e inspirada na “Wikileaks”, uma rede da responsabilidade de Julian Assange, recentemente detido, e que publicou informações secretas de vários governos desde 2006.

No “Tugaleaks”, são feitos relatos de vários casos de contratações públicas, gastos de dinheiros públicos e utilização de meios do Estado que podem levantar suspeitas. Recentemente, foi dado a conhecer que a GNR de Portalegre estaria a utilizar terrenos da sua escola como sucata de carros. O caso já tinha sido noticiado pelo “Diário de Notícias” no início do ano e voltou a dar que falar depois de o “Tugaleaks” ter apresentado fotos da situação.

“Considero que o meu órgão de comunicação social é um veículo para os ‘whistleblowers’ de algumas áreas socialmente relevantes, mas não me considero um”, sustenta o autor do projeto. A verdade é que a relação de Rui Cruz com as autoridades nem sempre foi pacífica. Em 2012, a sua casa foi alvo de buscas pela PJ e, em 2015, foi mesmo detido no âmbito de uma investigação a vários ataques informáticos. “O meu caso é particular e delicado”, admite. “Em Portugal não há apoio. Quem denuncia raramente tem proteção. Até nos casos de violência doméstica, em que as vítimas não são protegidas depois de denunciarem, se vê isso.”

A linha entre a privacidade e o dever de informar

A fronteira entre a denúncia e a violação da privacidade é um dos pontos centrais no debate relacionado com o papel dos “whistleblowers” na sociedade. Para Manuel Masseno, especialista em cibersegurança e cibercrime do Instituto Politécnico de Beja, a “privacidade, tal como qualquer direito, tem limites” e entre eles “está o interesse público”.
Além disso, Masseno frisa ainda que “a privacidade é um direito apenas das pessoas “de carne e osso” e não das organizações, que têm direitos, sim, mas à não divulgação de segredos comerciais e industriais”.

A Internet trouxe nos últimos anos novos desafios para quem legisla esses casos. Julian Assange e a Wikileaks, assim como os leaks de Edward Snowden, tornaram-se fenómenos globais, muito graças ao poder de divulgação das novas tecnologias de informação. “Sempre que exista competência tecnico-informática e também fragilidades na segurança dos sistemas, é viável ter acesso a quaisquer documentos, desde qualquer ponto do planeta onde existam ligações à Internet”, realça o especialista.

Football Leaks e o caso Rui Pinto

O portal “Football Leaks” é o ponto nevrálgico daquele que é considerado o maior caso a envolver fugas de informação relacionadas com o universo do futebol. “Fundos, comissões, negociatas, tudo serve para enriquecer certos parasitas que se aproveitam do futebol, sugando clubes e jogadores”, lia-se na mensagem de apresentação do site criado em 2015, e que tem Rui Pinto como um dos responsáveis. Lá foram denunciados contratos suspeitos de clubes, esquemas de evasão fiscal a envolver Messi e Mourinho e até a acusação de violação a envolver o português Cristiano Ronaldo.

Em março, o gaiense foi detido em Budapeste e extraditado para Portugal, sem que antes parte dos seus segredos fossem copiados pelas autoridades francesas, com quem estaria a colaborar, por receio de que os mesmos fossem destruídos pela polícia portuguesa.

A eurodeputada Ana Gomes, que recentemente visitou Rui Pinto na zona prisional anexa à Polícia Judiciária, em Lisboa, para lhe entregar o prémio de denunciante europeu do ano, considera que “as autoridades portuguesas em vez de protegerem e aproveitarem a colaboração como denunciante, como aconteceu com outros países europeus, tratam-no como criminoso”.

Questionada sobre as críticas de que foi alvo após a detenção de Rui Pinto, fonte da Polícia Judiciária disse “não ser o momento oportuno para falar do caso”. “A nova diretiva europeia obrigará Portugal a criar verdadeiros mecanismos de comunicação entre Estado e indivíduo, para que possa haver um reporte seguro, livre de retaliações”, confia a socialista.