Muito mais é o que os une do que aquilo que os separa

Tourém é um retrato límpido do interior profundo. São pouco mais de 16 quilómetros quadrados que entram pela fronteira adentro e chegam e sobram para as gentes da terra – cada vez menos, cada vez mais vergadas pela idade. Numa centena de habitantes, há apenas três crianças.

Grande parte já passou a barreira dos 70 anos. Vivem sobretudo do gado. Volta e meia, uma manada circula por entre as casas, para rasgar os dias de quietude pura. Tourém é uma aldeia de calçada portuguesa e casas feitas de pedra de granito. Há duas lojas, um café, um único transporte público e um táxi. Pouco mais. No inverno, até o lixo é recolhido apenas uma vez por semana.

A cidade de Montalegre fica a 30 quilómetros, Chaves a mais de 60, Vila Real a 120. É a vida no Portugal que, de tão escondido no mapa, resvalou para o esquecimento profundo. Pitões das Júnias, a aldeia portuguesa mais próxima, está a 12 quilómetros. Há outras, sim. Todas espanholas: Calvos de Randín fica a cinco quilómetros, Requiás a quatro, Guntumil a três, Randín a dois, mais coisa menos coisa. “Somos como irmãos.”

O veredito sai de uma conversa de café que acontece do lado português mas envolve as duas abas da fronteira. Adriano di-lo, Francisco Cid corrobora. Um é “tuga” de gema e dono do único café de Tourém. O outro é espanhol de Ourense e mudou-se para Randín há um ano, aproveitando o facto de estar numa espécie de licença sabática. Ele e a mulher, Olga Corral.

Desde então, são raros os dias em que não dão um salto ao lado português. “Se não é de manhã é à noite”, garante a companheira de Francisco, com uma chuva de elogios à mistura. “Os portugueses são muito simpáticos. Sempre que vimos aqui, encontramos pessoas agradáveis e acolhedoras. Fazem-nos sentir confortáveis.”

São raros os dias em que Francisco Cid e Olga Corral não vêm a Portugal. Sobretudo pela comida e pela cerveja.

A propósito, Francisco recorda um episódio recente: “No outro dia, fomos a Cabril [aldeia do concelho de Montalegre] e às tantas perguntámos a uma senhora de idade onde podíamos encontrar um sítio para comer. Ela convidou-nos logo para irmos a casa dela. Estivemos lá a comer presunto e a beber vinho. Em Espanha, isto não existe”.

Por isso, Olga constata com certeza que o melhor dos portugueses é o trato. Mas o casal também guarda elogios para a comida. Sobretudo para o bacalhau e o arroz de marisco, explicam, entre goladas de Super Bock. “A cerveja é mais barata aqui. E o tabaco também”, aponta Francisco. Só não se dá ao trabalho de fazer compras do lado português porque, assegura, o preço é o mesmo.

“Os portugueses são muito simpáticos. Sempre que vimos aqui, encontramos pessoas agradáveis e acolhedoras. Fazem-nos sentir confortáveis.”

Mas em Tourém não falta quem ande cá e lá para poupar algum. “Vamos nós mais vezes a Espanha, comprar gás ou meter gasolina. A botija de gás lá é a 14 euros. Aqui custa 25”, justifica Natália, mulher de Adriano, sentada à mesa do café que também é dela. E quem diz comprar gás diz ir ao cabeleireiro. Ou até a uma consulta. “Há um médico em Calvos que, por 120 euros, faz tudo. Análises, raios X, eletrocardiogramas. Tem lá as máquinas todas”, conta Preciosa, sentada à mesa com Natália, cabelos bem cinzentos a atestar o envelhecimento da aldeia.

“Aqui temos de esperar dois meses. Morremos primeiro e só depois é que conseguimos ir à consulta”, ironizam. Este jeito de viver cá e lá, almoço em Portugal, café em Espanha, compras lá, casa cá, amigos sem olhar à nacionalidade, há muito se fez modo de vida em Tourém.

“É igual, como se fossem portugueses”, assinala Natália. “Só que lá os ordenados vão subir [o salário mínimo vai passar para os 900 euros] e nós aqui… coitadinhos. Nesse aspeto, dava jeito sermos espanhóis.” E não só. “É só passar a fronteira e já se nota a diferença na estrada. Aqui, se roubassem menos, também estávamos melhor”, atira, com uma pitada de revolta a condimentar o discurso.

“Os ordenados vão subir [o salário mínimo vai passar para os 900 euros] e nós aqui… coitadinhos. Nesse aspeto, dava jeito sermos espanhóis.”

A disparidade no nível de vida é apontada por todos. Presidente da Junta de Freguesia de Tourém incluído. “Eles são mais ricos, preservam mais a cultura, têm as tradições mais arreigadas. Mas não temos razão de queixa. A única coisa que lhes podemos apontar é que nos esforçamos mais para que eles nos entendam. Eles não fazem esse esforço”, assente Jaime Barroso, 64 anos.

Nada que belisque a relação fraternal alicerçada na História. “Na década de 1960, era rara a casa de Tourém que não tinha um ou dois galegos escondidos. Ou eram republicanos ou tentavam fugir da tropa. Sempre houve estes intercâmbios saudáveis”, salienta o líder da Junta, em tempos protagonista de um outro “intercâmbio” chamado… contrabando. “Eletrodomésticos, colchões, tudo o que se comprava de um lado e não se conseguia levar para o outro sem pagar. Só televisões, levei mais de quinhentas. O contrabando sempre existiu aqui. Só acabou quando abriram as fronteiras.”

Jaime Barroso, 64 anos, presidente da Junta de Freguesia de Tourém.

Em boa hora o fizeram, garantem os mais velhos. José Rodrigues Alves, 72 anos, que o diga. Está em casa, de porta aberta, meio a “arranjar umas coisas”, meio de olho na rua, atento ao pouco movimento. Também ele fez vida do contrabando. “Carreguei muito café. O meu pai morreu quando eu tinha 11 anos. Era duro. Íamos com 62 quilos às costas pelo meio do monte. De noite, porque de dia havia os carabineiros. Às vezes fazíamos aos 30 quilómetros com vacas e bois perigosos atrás de nós.” Depois, cansou-se dos sacrifícios e da pobreza. Foi para França. Passou quatro anos no Brasil. Daí para Lisboa. E, como se diz dos bons filhos, à casa tornou. Por isso, também ele está mais do que habituado à convivência com os espanhóis.

“Antes, a gente não gostava dos galegos. O português às vezes tem a mania que é bom. Íamos para festas deles e metíamo-nos com as raparigas galegas de propósito. Havia rixas com frequência”, recorda. “Uma parvoíce”, conclui. Nem de propósito, a filha, hoje professora em Ponte da Barca, acabou casada com um espanhol.

“Uma vez trouxe-o cá a casa, para falar comigo, e eu disse logo. ‘Comigo? Pois que vá à vida dele.’ Mas o rapaz insistiu e disse que gostava muito da minha ‘hija’ [filha]. Eu ainda tentei pôr-lhe os defeitos todos, dizer que ela não sabia cozinhar nem fazer nada. Mas não adiantou. E a verdade é que ele é muito trabalhador e hoje estão bem na vida”, conta, com um sorriso envergonhado de quem acabou rendido às evidências: “São gente boa”.

“Antes, a gente não gostava dos galegos. O português às vezes tem a mania que é bom. Íamos para festas deles e metíamo-nos com as raparigas galegas de propósito. Havia rixas com frequência”.

A filha de José é só uma das protagonistas dos vários casamentos que juntam portugueses e espanhóis. Só na última década, foram meia dúzia de casos. “As espanholas são mais meigas”, brinca-se na aldeia. Mas estes matrimónios interfronteiriços são mais uma prova séria da proximidade que existe entre povos acostumados a ser bengala um do outro.

“Fomos habituados assim: a irmos às aldeias vizinhas e eles a virem cá. Damo-nos todos muito bem”, garante Maria Elisa, 51 anos, proprietária do único espaço de turismo de habitação da aldeia. “Recebemos aqui muitos estrangeiros. Curiosamente, espanhóis nem tanto.” Mas está mais do que habituada a sentir o pulso ao país vizinho. É que, além do turismo de habitação, Elisa e o marido também possuem um autocarro de transporte escolar, o único que permite fugir à solidão de Tourém.

Todos os dias, no trajeto de 30 quilómetros até Montalegre, fazem 14 por Espanha. Depois, ainda têm um táxi, espécie de pronto-socorro de uma aldeia que, nos momentos de aflição, se sente ainda mais distante de tudo. “Já transportámos pessoas com apendicites agudas e com ataques cardíacos. Além de mulheres que estão prestes a dar à luz. Eu e o meu marido até somos padrinhos de batismo de uma dessas crianças. E sou eu que trago os medicamentos para as pessoas da aldeia. Mandam-me fotos e eu compro, em Montalegre. Às vezes até vou por eles às consultas, pedir receitas para os medicamentos”, orgulha-se Elisa. Dos espanhóis, diz que são mais patriotas e mais frios. Mas frisa que a relação entre uns e outros é “extraordinária”.

A tradição também ajuda a isso. A festa do Encontro, por exemplo. Todos os anos, em agosto, sai uma procissão de Tourém, outra de Randín, tudo ao mesmo tempo. Encontram-se a meio, no exato local em que Portugal se funde com Espanha. Num centímetro é solo nacional, no seguinte território estrangeiro. A meio, um marco assinala o ponto de encontro, com duas mãos dadas esculpidas na pedra. Ali perto, uma conversa de café que acontece do lado português mas que envolve os dois lados da fronteira, mostra que as mãos não estão ali só para espanhol ver. Adriano di-lo, Francisco corrobora: “Somos como irmãos”.

Marco que assinala o ponto de união entre terras portuguesas e espanholas.

Um “caldo cultural” que tem barbas

É hora de almoço em Barrancos. Num dos principais restaurantes da vila alentejana, plantada em cima da fronteira este, o entra-e-sai dos clientes dita a azáfama. Atrás do balcão há uns quantos presuntos ao alto. As funcionárias são portuguesas, os clientes têm dias: ao fim de semana, por exemplo, o espaço enche-se de fregueses vindos do país vizinho. A música de fundo, essa, é espanhola o tempo todo.

“Gostamos mais da música deles”, confessa uma jovem funcionária. A partilha de gostos – e de tradições, e de cultura, até de identidade – não surpreende, dada a proximidade à vizinha Espanha. Barrancos, vila alentejana, dista apenas oito quilómetros da localidade espanhola de Encinasola. A aldeia portuguesa mais próxima, Santo Aleixo da Restauração, fica a 20 quilómetros. A ligação adivinha-se. Joaquim Lopes, 69 anos, grande parte deles passados em Barrancos, confirma-a. “Eles vêm cá todos os dias. E nós lá. Ainda hoje lá estive a tomar café. E há muita gente daqui que vai lá às compras. A carne e os enchidos são mais baratos lá. Os combustíveis nem se fala.”

Também aqui, no extremo sudeste português, a ligação entre portugueses e espanhóis assenta em raízes que a História ajudou a construir. Desde logo porque, durante a Guerra Civil do país vizinho (1936-1939), Barrancos foi um abrigo seguro para quem pretendia fugir. Muito graças a um homem chamado António Augusto Seixas, espécie de Aristides de Sousa Mendes da região.

“Deu guarida a mais de mil republicanos que fugiram de Espanha porque iam ser fuzilados. Tudo contra a vontade de Salazar, que tinha dado indicações expressas para não deixar entrar a ninguém”, lembra João Serranito, presidente da Câmara de Barrancos. À custa disso, acabou condenado a 60 dias de prisão na Fortaleza de Elvas. Mas selou uma dívida de gratidão que resistiu ao tempo. “Ainda este ano me convidaram para ir a Jeréz de los Caballeros inaugurar a placa de uma rua com o nome do Tenente Seixas”, realça o autarca.

João Serranito é o presidente da Câmara Municipal de Barrancos.

Depois, houve o contrabando, qual condição “sine qua non” das zonas raianas, a ajudar a firmar laços para a vida. “Andávamos sempre cá e lá. Tanto homens como mulheres. Muita gente ia buscar coisas para vender cá. Toucinho, chouriço, tudo. Naquela altura, a miséria unia. Só com o 25 de Abril a coisa começou a mudar. Agora, já não é como era. Já não há aquela relação por necessidade que havia na altura. Mas continua a haver uma ligação forte”, refere Joaquim Lopes, homem que conhece Barrancos como a palma das mãos.

Tanto que há uma série de tradições que se cruzam e misturam, ao ponto de, a dada altura, já ninguém saber muito bem quem começou o quê. “A ligação a Espanha é imemorial. Sempre esteve muito presente. Até porque são regiões que têm uma constituição relacionada. Acabou por se formar aqui um caldo cultural entre portugueses e espanhóis. Isso percebe-se também pelo dialeto barranquenho, que existe aqui desde sempre”, frisa o líder da autarquia.

Aliás, está em preparação uma candidatura para que o barranquenho, que mistura português, espanhol e palavras próprias do dialeto, possa ser designado Património Linguístico Nacional – e assim reconhecido como língua oficial, à imagem do mirandês, e ensinado nas escolas de Barrancos.

Mas essa é apenas uma das muitas tradições partilhadas com a vizinha Espanha. Outra, uma das mais importantes, é a dos touros de morte, que, graças a um regime de exceção aprovado em 2002, sobrevive ao tempo. Mesmo nas festas da terra, onde “agora já vai havendo músicos portugueses”, os conjuntos espanhóis continuam a estar em maioria. A atestar a simbiose, Barrancos tem ainda um grupo de sevilhanas, clara influência da proximidade da Andaluzia.

Leonor, Carmen e Carolina integram um grupo de danças sevilhanas com sede nesta localidade no Baixo Alentejo.

O grupo, composto por 25 mulheres, distribuídas por três escalões etários e orientado por uma uma professora espanhola, ensaia uma vez por semana nas instalações da Junta de Freguesia, saindo frequentemente de Barrancos para atuações. “Atuamos mais em Espanha, mas também vamos a localidades portuguesas próximas daqui”, explica Leonor, 13 anos.

Entrou para o grupo aos cinco, por influência da mãe, que sempre gostou e a incentivou a experimentar. Ela gostou, rendeu-se, foi ficando, nisto já lá vão oito anos e continua a ser fã. Dos espanhóis nem tanto. “Não são bem a minha praia”, diz, numa gargalhada envergonhada. Carmen, da mesma idade, vai mais longe. Soa assim: “Ós-detéto.” Que é como quem diz, em dialeto barranquenho, que não pode com eles nem por nada. A tirada soa a brincadeira. Até porque a ligação ao outro lado é fomentada mesmo a nível institucional.

O maior produtor de presuntos de Barrancos, por exemplo, é uma empresa espanhola. Mas a fábrica está em Portugal e os trabalhadores são portugueses. Barrancos vive muito destes intercâmbios transfronteiriços. “Há um médico espanhol que, aos fins de semana, trabalha no centro de saúde de cá. E como eles [em Encinasola] têm um centro de saúde aberto 24 horas, há muita gente que vai lá. Atendem-nos sempre. Claro que nós também lhes prestamos outros serviços”, esclarece João Serranito, o presidente da Câmara.

Um deles está relacionado com o combate aos fogos urbanos e acidentes rodoviários e resulta de um protocolo assinado entre os Bombeiros Voluntários de Barrancos e o Consórcio dos Bombeiros de Huelva em 2007. “Há esta cooperação em que, sempre que há ocorrências em Encinasola, são os bombeiros de Barrancos os primeiros a chegar”, explica o comandante do lado português.

“Este ano, por exemplo, houve um cidadão espanhol que teve um acidente rodoviário do lado de lá da fronteira. Ligou aos serviços de emergência espanhóis, que transferiram para o Consórcio dos Bombeiros de Huelva. Por sua vez, eles reencaminharam para nós. Fomos mobilizados e entregámos a vítima na unidade hospitalar deles”, especifica Carlos Pica, comandante dos Bombeiros de Barrancos, que garante estar para breve a oficialização de um novo protocolo, agora respeitante aos incêndios rurais e florestais.

A proximidade, pessoal e institucional, ajuda a combater o esquecimento a que a vila está votada. Quem aqui mora, aponta o dedo ao Estado. Queixam-se que ninguém olha para eles. E que nada acontece se não forem as pessoas da terra a tomar a iniciativa. Tanto que, todos os anos, se juntam para, com as próprias mãos, pintarem as casas. Brancas, com pormenores amarelos, como é imagem de marca do território alentejano. Mas é só um de vários problemas típicos da interioridade profunda. Escola, por exemplo, só há até ao 9.º ano. Quem quiser prosseguir tem de ir para Moura, passar lá a semana ou sujeitar-se a fazer 100 quilómetros por dia. “Muitos deles já não voltam. O que vão fazer aqui?”, lamenta Joaquim Lopes.

“Nós temos raízes portuguesas e o que eu sinto não tem nada a ver com os espanhóis. Não é por eles serem melhores que vamos largar a nossa terra.”

Ainda assim, com todos os atrativos que Espanha possa ter e todos os problemas que a vida do lado de cá da fronteira possa agudizar, este barranquenho de gema não podia discordar mais de António Lobo Antunes, o escritor português que ainda recentemente disse que Portugal e Espanha deveriam ser o mesmo país. “Sinceramente não concordo. Nós temos raízes portuguesas e o que eu sinto não tem nada a ver com os espanhóis. Não é por eles serem melhores que vamos largar a nossa terra.”

A ligação, essa, é para manter por muitos anos. “Nas festas, continuamos sempre a ir lá. E eles cá. Quando há festas lá, vai tanta gente daqui que costumamos dizer que a dada altura já nem sabemos se estamos cá ou se estamos lá”, conta, divertido. “E também vamos aos funerais uns dos outros, até porque as pessoas mais velhas é que têm a ligação mais forte.” Na alegria e na tristeza, portanto. À boa maneira de um casamento.