Rui Cardoso Martins

Emprestas-me o teu multibanco?

Ilustração: João Vasco Correia

Chegou com uma camisola laranja enrolada na cabeça, tirou-a e pediu para ficar de pé, fora da sala de julgamentos, até ser obrigado a entrar e a sentar-se no banco dos réus. Mais tarde percebi que Nilton não gosta de se sentar: ele é mais de ficar em pé e ao balcão. Pois é com o sapato no estribo inferior de um balcão de bar, o cotovelo espetado na madeira, no vidro, no inox molhados de cerveja, de gin, de vodka, de whisky, de frente para as garrafas com cores de rebuçado, que Nilton actua. É a centímetros dos sonhos felizes e dos desejos alegres dos outros, mas também das madrugadas solitárias, das noites terríveis por atravessar, dos amores perdidos no álcool e na música, que Nilton trabalha.

– Queria pedir desculpa às pessoas a quem fiz isto. Eu já tinha dito isto. Fiz mal, eu sei que fiz mal. Não volto a repetir.

Esta singela tautologia, pois quem volta a fazer uma coisa já está irremediavelmente a repeti-la, mostra como Nilton se habituou a repetir uma acção. Ele volta e repete a repetição do crime.

Usava-se há anos a expressão curiosa sobre um tipo de pessoas – tipos que “vivem de esquemas” – e volto a esse termo geral para dizer que o esquema de Nilton é nos balcões dos bares.

Quando no dia seguinte um homem procurou o seu cartão multibanco, não o encontrou. Carteira, bolso, calças, casaco, forros, cuecas, peúgas, nada. Perdi-o onde? Ainda ontem paguei as bebidas naquele bar! E depois na discoteca também acho que o usei! Mas depois no táxi paguei com dinheiro (ou: mas depois vim de Uber…). E nas comissuras da dor de cabeça deste cidadão começa a fermentar uma real enxaqueca. Roubaram-me o cartão multibanco, fui roubado!

De súbito, um alívio sopra-lhe a testa e o lado esquerdo do coração: espera, espera, tem calma, para usar o multibanco é preciso o código e só eu sei o meu código!… Engano, meu caro amigo, triste engano: o Nilton sabe. O Nilton é, ou era, aquele sujeito simpático que entre as, enfim, vê lá se te lembras que horas eram quando alguém simpático meteu conversa contigo, o homem cheio de alegria e que desapareceu já tu tinhas pago as tuas bebidas. O simpático, o Nilton, viu os teus dedinhos a carregarem nas quatro teclas do terminal do multibanco da discoteca, anotou mentalmente os quatros dígitos, por exemplo 7897*, e quando levaste um encosto, coisa normal ao atravessar a pista de dança, já o teu cartão mudava de dono. Lá vai o Nilton para o teu pesadelo.

Por volta do meio-dia desse sábado ou domingo já o teu dinheiro foi usado em compras estrambólicas num centro comercial. Quase dois mil euros duma vez. É isto que o Nilton faz como actividade não colectável, até ser apanhado por uma sequência incrível de diferentes cartões roubados e filmes de segurança de lojas e caixas multibanco em que lá está ele outra vez no ecrã, o Nilton, o Lucky Luke, o Speedy González das compras, andale, andale, arriba.

– Peço desculpa, não volto a repetir.

– Se calhar desta vez não vai repetir não, suspirou a juíza.

Quantos ladrões iguais por aí andam é um trabalho que a polícia tenta apurar. Por coincidência, poucos dias depois de Nilton ser julgado por “fraude informática”, um amigo meu foi vítima do esquema. Um tipo meteu conversa, disse mais duas ou três coisas inócuas enquanto este meu amigo pagava, depois começou a ficar aborrecido e o meu amigo virou-lhe costas e foi à sua vida dentro da discoteca. Dia seguinte. Pela hora do almoço telefonaram do banco, a conta estava nos 200 euros negativos e fora bloqueada. Um rápido mas produtivo sábado de manhã: telemóveis novos, sapatos, roupas, geringonças, no valor de quase quatro mil euros (4 000 €), todo o dinheiro à ordem derretido nas Amoreiras.

– Eu vi os vídeos com ele a comprar coisas à pressa com o meu cartão, parecia maluquinho. Nem mudou de roupa.

A polícia já o conhecia. Mas provar é difícil. E receber o dinheiro ainda mais, pois o multibanco não tem seguro. O código é pessoal e intransmissível e quem nos diz que não deu o código porque lhe apeteceu? Como disse no tribunal o advogado de Nilton, como é que o ofendido perdeu os códigos, como é que há “burla informática” se o ofendido os pode ter dado?

– Ficam muitas dúvidas sobre a credibilidade do ofendido. Embora admitisse que não estava “bêbedo a cair”, disse que tinha bebido…

Portanto a culpa afinal é do roubado. O álcool está caríssimo.

* espero não ter revelado o seu código secreto, caro leitor.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)