Eles também são feministas

O contrário de machismo há de ser outra coisa que não feminismo. Dentro desse conceito cabem muitas reivindicações, que nunca falam em ódio, vingança ou superioridade. Tudo se resume à igualdade de género. Um assunto ainda controverso. A “Notícias Magazine” falou com quatro homens para perceber que papel têm - ou devem ter - nesta batalha comum.

Algures em novembro de 2018, o humorista Diogo Faro pegou num microfone e foi para a rua perguntar a quem passava se era feminista. A maioria nem hesitou. “Não!” A palavra foi repetida, e quase repelida, por muitos dos entrevistados. Mulheres e homens. De diferentes idades. No vídeo há ainda alguns indecisos. “Mmmm… mais ou menos”, diz uma rapariga sem se querer comprometer. Uma outra rapariga, vestida com um traje académico, tenta fazer o mesmo, num tom quase tão frio como o gelado que penica: “Não, não ligo muito a isso”.

Quando Diogo pergunta se sabem o que é afinal isso do “feminismo” a confusão é visível. O comediante não desiste. Insiste. Um rapaz novo lá acaba por se assumir feminista. Mas só um bocadinho. Só porque não vê com maus olhos o cuidado estético masculino que passa por fazer a depilação ou usar creme. Coisas “mais de mulher”, mas que moderadamente não afetam a masculinidade.

A entrevistada que se assumia “mais ou menos feminista” chega a dizer que não tem dúvidas que as mulheres têm mais jeito para a lida da casa. “Tem a ver com o instinto”, garante. E concorda com Diogo, sem perceber a ironia da pergunta: parece que nascem com um tacho na mão, não é? “Sim!”. Mesmo quase a terminar, Diogo explica que ser feminista é defender a igualdade de género. “Concordas?” Os interpelados riem. “Não!” Isto há cada pergunta. Quem o mandou tocar na palavra género?

Diogo Faro assume-se como feminista. Foto de Filipe Amorim/Global Imagens

É sempre perigoso tomar a parte pelo todo. Mas a parte, neste caso, diz muito do todo que se passa no país e no Mundo. Em 2019, as sociedades patriarcais e a cultura machista continuam a ser a base, por exemplo, da diferença salarial entre homens e mulheres que desempenham as mesmas funções.

Continuam a pôr nas costas delas a responsabilidade e a obrigação da maioria do trabalho em casa. Continuam a permitir que à luz da superioridade masculina se fale em sexo forte e em sexo fraco. De acordo com o Fórum Económico Mundial, se a tendência atual se mantiver, a igualdade de género em Portugal só deverá ser atingida dentro de 169 anos.

Diogo Faro sublinha que foi precisamente por ler e saber de coisas idênticas a essas, através de amigas e familiares mulheres, que se tornou “claro o quão importante é ser feminista e defender abertamente a igualdade de género”. O inquérito de rua que no ano passado protagonizou teve como objetivo fazer rir, claro, mas também levar a pensar sobre o tema. Até para desmistificar.

“É tão importante lutar pela igualdade salarial, na qual as mulheres ainda são tão prejudicadas, como pela igualdade na parentalidade, em que os mais prejudicados são os homens.” (Diogo Faro)

“As mulheres e os homens que pensam que o feminismo é uma batalha de mulheres, ou que um homem não pode ser feminista, nem sequer sabem o que é feminismo.” Vale a pena olhar, mais uma vez, a definição: é o reconhecimento de iguais direitos e capacidades a mulheres e a homens. Portanto, continua. “É tão importante lutar pela igualdade salarial, na qual as mulheres ainda são tão prejudicadas, como pela igualdade na parentalidade, em que os mais prejudicados são os homens.”

Se dúvidas tivesse de que o machismo ainda está muito enraizado na sociedade, já tinha tirado a prova dos nove. “Há sempre comentários disparatados como ‘só dizes essas coisas (do feminismo) pa’comer gajas’.” Diogo ri e volta a ironizar. “Tem sempre graça ainda haver tanta gente que vê como falsos ou anormais aqueles que defendem o que me parece a mais evidente das condições humanas de todos à nascença: direitos iguais, independentemente do género, cor, orientação sexual ou qualquer outro tipo de característica.”

Rui Maria Pêgo sonha com a igualdade de oportunidades. Foto de Filipe Amorim/Global Imagens

As palavras do radialista Rui Maria Pêgo vão no mesmo sentido. “Falamos de uma defesa que se baseia na luta dos direitos humanos, de todas as pessoas.” A naturalidade do pensamento encontra berço na infância. “Tenho três irmãs. Ninguém me deu sequer a hipótese de ter a sensação – completamente errada – de que a hierarquia de género é possível”.

Só fora do ambiente caseiro constata que o Mundo gira a duas velocidades. “O homem ainda ocupa lugar de maior poder numa sociedade como a portuguesa. Ganha mais. É, do ponto de vista académico, algumas vezes, menos preparado do que uma candidata com perfil similar, mas, ainda assim, vence uma entrevista de emprego porque, por exemplo, não engravida.”

Realidades que não podem mais ser maquilhadas, no seu ponto de vista. “Quanto mais mainstream se torna o discurso, menos temos de resgatar da sombra.” No horizonte há, por isso, um sonho. “Um futuro em que o género não determine nada. E que possamos ser o que quisermos, sem medo de a genitália ser uma fronteira para o sucesso”.

São, de facto, muitos os muros e os mitos construídos à volta do feminismo. Assentam sobretudo em falsos argumentos que têm por objetivo calar e retirar credibilidade à causa. Para começar, o feminismo é colocado no extremo oposto do machismo. O que desencadeia as seguintes premissas e conclusões: as solteiras são contra os homens por estarem sozinhas; as divorciadas estão ressabiadas, por isso não suportam homens.

Ser-se feminista tanto é entendido como sinónimo de ser “abichanado”, no caso deles – onde já se viu um macho alinhar no discurso de alguém que agora os quer mandar a todos para a cozinha? -, como pode significar passar a ser lésbica, no caso delas. Lésbicas que não se depilam, que nojo, e são contra os homens e outras coisas tidas como naturalmente femininas.

Elas, as feministas, o que querem mesmo é tomar o lugar deles. No fundo, trata-se de uma vingança coletiva. Coisas dos partidos de esquerda. Só pode. E entre os homens ainda há quem as apoie. Como é possível? Por tudo isto, que está no plano da ironia, fica claro que a palavra “feminismo” carrega muitos ódios, com origem na ignorância.

Graças aos tempos, não faltam rostos que dão a cara para ajudar a esclarecer o conceito e lutar por uma mudança. Mas esse crescendo tem sido lento. E ainda anda muito à boleia dos movimentos como #timesup, #metoo, #heforshe, etc. A dada altura há quem confesse que já chega. Não se fala de outra coisa. De facto, o assunto está nas agendas políticas e ocupa destaque, mas os estudos acabam por comprovar que ainda se está longe do pretendido. Recentemente, a Nielsen Portugal, que se dedica a fazer estudos de mercado, revelou que apenas 28% das pessoas acredita que mulheres e homens são tratados da mesma forma.

Provas? Ainda há dias, Joana Bento Rodrigues, médica e militante do CDS, se assumia, num artigo publicado no jornal digital “Observador”, como “antifeminista e contra a lei da Paridade”. Isto porque não vê razão de ser na luta pela igualdade de género. A cronista considera até que “o ativismo feminista atual (…) tornou-se desprestigiante para a mulher. Retira-lhe a doçura e candura. Nega-lhe o papel fundamental do matrimónio e da maternidade”.

Miguel Vale de Almeida diz que preconceito está em todo o lado. Foto de Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

Desconstruir pensamentos destes é uma das missões do ex-deputado do PS Miguel Vale de Almeida. O antropólogo e ativista do movimento LGBT aderiu jovem a partidos de esquerda, o que o fez alargar horizontes na defesa da igualdade. Assumidamente gay, acabou por perceber que um dos mecanismos mais comuns para manter o sistema do poder machista a funcionar é denegrir quem tenta mudá-lo.

Como se faz isso? Com textos de opinião como o referido há instantes, por exemplo. “Criando estereótipos negativos.” Como conotar o feminismo com a homossexualidade ou com políticas exclusivas de esquerda. “Estamos rodeados de preconceitos antifeministas, é quase hegemónico. Já senti isso de mulheres (não feministas), de homens (não feministas) e especificamente de homens gay (não feministas).”

Há quem defenda que os homens não se devem assumir como feministas, porque isso é uma forma de atrair atenções para eles e retirar a força à causa. Miguel Vale de Almeida concorda que devem ser as identidades subalternizadas a ter a voz central na defesa das suas causas. “Os outros são aliados, sim.” Porém, considera-se feminista. “No sentido em que o feminismo é a teoria e política da igualdade de género e da superação da assimetria de género que mantém as mulheres subalternizadas.”

Ricardo Loureiro é voluntário na UMAR. Foto de Filipe Amorim/Global Imagens

Foi precisamente por causa da subalternização das mulheres que Ricardo Loureiro começou a trabalhar com a UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta, em 2008. No caso dele funcionou como “uma escola fundamental” que o “estimulou” a repensar-se “como homem”. De tal forma que, “o que seria à partida um trabalho, tornou-se numa luta social” para a qual procura “contribuir todos os dias”. Profissionalmente e pessoalmente.

“Enquanto homem” começou a “desmontar preconceitos internos” e consequentemente aproximou-se do feminismo. “Assumo que o combate ao sexismo é um exercício diário, muitas vezes a nível interno. Implica uma postura crítica permanente e diária, porque evidentemente não é possível eliminar, de um dia para o outro, toda a educação sexista.” Os passos dão-se devagar. Começando pelos atos mais simples. “Acabo por ter um contributo regular, por exemplo, desde as conversas informais com colegas de trabalho, à realização de atividades sobre igualdade.”

Para Ricardo, a par disso, é também essencial continuar a trazer, por diversas vias, para a agenda pública o combate da violência exercida contra as mulheres. Mas não chega. “É necessário intervir de forma mais estrutural.” Ao nível das “políticas e atividades de educação em contexto escolar e universitário, nomeadamente junto dos rapazes sobre as expectativas sociais e sexistas que lhes são atribuídas”. Que não são mais do que práticas sociais que constroem papéis “assentes em princípios tóxicos” para ambos os sexos.

Exemplo: “Veja-se a forma violenta como são reprimidas as expressões emocionais nos homens, com impactos bastante negativos na saúde mental”. Que se traduz na perfeição na célebre frase: um homem não chora. Este e outros argumentos levam o sociólogo a afirmar, com convicção, que “os homens podem e devem fazer parte das lutas feministas”, uma vez que “essa mudança social passa também pelo envolvimento plural dos homens”. Embora não esconda as resistências que ele próprio encontra entre o género masculino, que procuram condicionar o contributo dos homens em torno da luta feminina.

Então, mais do que palavras são preciso atos. “Sou da opinião que nos podemos considerar feministas, mas mais importante do que nos intitularmos de algo é aplicar na prática da vida pessoal, familiar, profissional e associativa um comportamento feminista que rompa com o privilégio masculino e que integra a pluralidade das mulheres e dos homens.”

Voltando ao início. O vídeo de Diogo Faro começa com um homem que diz não alinhar nem com “feministas, nem masculistas [sic]”, garantindo que só sai da sua zona de conforto quando algo o incomoda. “No que está mal eu intrometo-me, agora no que está bem…” Estará bem?