Dor crónica, dor que mói

Maria Lurdes Leitão passou por vários médicos até chegar ao diagnóstico: dor neuropática associada ao sistema nervoso. (Foto: Rui Manuel Fonseca/Global Imagens)

Contínua e persistente, interfere com as rotinas, com as tarefas de casa, com o trabalho, com a vida. Estudo revela que há mais de três milhões de portugueses com dor crónica nos cuidados de saúde primários.

Uma crise ciática, uma dor na coluna intensa e forte, o corpo sem capacidade de reação, dois meses sem conseguir trabalhar. Seguiu as indicações do costume: medicação, reabilitação, exercício físico. Não correu bem. Lesões musculares, mais um período de baixa, e as dores não passavam. Foi há quase uma década e hoje Catarina Marques, com 47 anos, recorda o percurso até chegar a confirmação de dor crónica que lhe afeta a coluna. Foram quase sete anos até perceber o que tinha.

A mãe convenceu-a a ir ao seu reumatologista, que quis tirar a limpo o que se passava. Não era um quadro normal de uma doença reumática e não foi fácil chegar ao diagnóstico. “Não foi assim tão simples. Nem com radiografias, nem com ressonâncias, nem com análises se sabia que doença era”, conta. As dores persistiam, períodos sem conseguir trabalhar no seu emprego no Ministério da Educação, tarefas difíceis de cumprir. “Passei um período complicado que afetou a minha vida. Deixei de fazer uma série de coisas, foi um esforço brutal”, recorda. “Aprendi a lidar com a doença, houve muita coisa que tive de fazer de maneira diferente.” Assumiu o problema na sua cabeça e no emprego sempre com o incondicional apoio da família. E tudo isso foi fundamental. “No fundo, aprendi a gerir a doença.”

Bateu à porta da Liga Portuguesa Contra as Doenças Reumáticas, criou um núcleo de apoio a doentes com dor crónica, contactou com outras pessoas, começou a participar em atividades, tal como congressos, dentro e fora do país. “Apesar da dor crónica ser muito prevalente, não só em Portugal como na Europa e no Mundo, e o impacto social da dor ser à escala global, cada doente sente e sofre esse impacto todos os dias na sua vida, o que obriga à reinvenção do eu, interfere com a representação identitária”, comenta. “É uma doença invisível e solitária, mas ninguém está sozinho nessa questão, e é preciso falar do assunto.”

Maria Lurdes Leitão demorou mais de 40 anos a perceber que dor era aquela, com muita ansiedade, desespero e uma ligeira depressão pelo meio. Tinha dificuldades em colocar em palavras a dormência, o formigueiro, as picadas, aquele latejar nas pernas, nos pés, nos braços, nos cotovelos, nas costas. Tudo vinha de vários lados. “A dor não era localizada, não sabia explicá-la. Era uma dor interna que não sabia onde estava”, recorda.

Há mais de 30 anos, diagnosticaram-lhe uma hérnia discal, foi operada, ficou melhor da perna, passados uns anos voltou a piorar, com mais dores. Inflamatórios, analgésicos, muita fisioterapia. “Passei por vários médicos, mas com pouco êxito porque a dor continuava.” Maria Lurdes Leitão, hoje com 69 anos, reformada, não deixou de trabalhar no atendimento de um centro de saúde, apesar de dias e dias de sacrifício. “Acordava com uma dor aqui, outra dor ali.” Há um ano e meio, percebeu o que realmente tinha numa consulta médica: dor neuropática associada ao sistema nervoso, uma dor crónica. Passou a controlar a dor com medicação diária. “Sinto-me muito melhor”, garante.

Uma doença, não um sintoma

A dor é considerada crónica quando, de forma contínua ou recorrente, existe há pelo menos três meses, ou quando persiste para além do curso normal de uma doença aguda ou da cura da lesão que lhe deu origem. A patologia mais frequente é a lombalgia, seguindo-se dor nos membros inferiores e superiores, ombros e região cervical. É transversal a quase todas as doenças, pode vir de qualquer lado.

A dor é, em si, uma doença e não um sintoma, e interfere com as rotinas do dia-a-dia, responsabilidades familiares e domésticas, trabalho, lazer, descanso, sono. “A dor crónica, e consequente incapacidade, diminui substancialmente o estado de saúde do indivíduo e a sua qualidade de vida, com impacto negativo na vida dos familiares, cujo grau é frequentemente subestimado”, sublinha Raul Marques Pereira, médico de Medicina Geral e Familiar que criou a primeira consulta de Dor numa unidade de saúde familiar em Portugal, em Lethes, Ponte de Lima. “A dor é um processo complexo que compreende interações entre as vias do sistema nervoso central e periférico, estando envolvidos vários mecanismos neurobiológicos”, explica.

É fundamental perceber o que se passa rapidamente para começar o tratamento o quanto antes. Segundo o especialista, os doentes devem ter acesso a várias modalidades de diagnóstico, terapêuticas adequadas a cada caso, que podem incluir tratamento farmacológico, fisioterapia, psicologia clínica, cirurgia, técnicas invasivas, terapia ocupacional e medicina de reabilitação. A dor pode ser controlada ou, pelo menos, atenuada se, salienta, “se começar a fazer diagnósticos mais cedo, fazendo-se também um acompanhamento ao doente de maior proximidade quando se institui o tratamento.” A questão é que essa abordagem nem sempre é possível, “já que muitas vezes os serviços não dispõem nem de tempo, nem de ferramentas para o fazer.” De qualquer forma, avisa, “tratar a dor crónica é um imperativo ético e um fator decisivo para a humanização dos cuidados em saúde.”

Um estudo pioneiro e recente revela que há mais de três milhões de portugueses com dor crónica nos cuidados de saúde primários, ou seja, 34% da população nacional, e que mais de 60% dos médicos e dos doentes não têm expectativa temporal quanto à resolução do problema. Cerca de 74% têm dificuldade em realizar tarefas quotidianas e 95% apresentam outras comorbilidades crónicas associadas, como doenças endócrinas, nutricionais e metabólicas, doenças do sistema circulatório, e do sistema musculoesquelético e ligamentos.

O estudo epidemiológico e transversal envolveu 8 480 doentes, 58 unidades de saúde, e foi realizado ao longo de um ano por profissionais em contexto de consulta nas administrações regionais de saúde do Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo e Alentejo. “A avaliação da dor deve ser encarada como uma prioridade nos cuidados de saúde e avaliada de forma rotineira, à semelhança do que acontece com a avaliação da temperatura corporal, frequência cardíaca, frequência respiratória e da tensão arterial”, afirma Filipe Antunes, coordenador do estudo, assistente hospitalar de Medicina Física e de Reabilitação, e coordenador da Unidade de Dor Crónica do Hospital de Braga.