Diz-se que neste lugar, em tempos, houve um cais

Ao leme de um pesqueiro, a vista é desafogada, duas janelas ou três, grandes, abertas sobre o mar. Ou pode ser a mesma vista, infinita, apercebida de uma vigia, um quadro circular, como o Planeta é a origem das coisas. Da terra vem o que à terra vai ter. Do mar virá o que ao mar irá ter. Viria. O horizonte, observado deste navio, é amarelo-areia e verde-estepe. Ou castanho, ou uma cor indefinida como a das ervas do deserto.

O azul está lá. É o do céu. O azul já não é o mar. Isto é Moynaq, a janela para o maior desastre ambiental com mão humana jamais visto na Terra. Porque se perdeu para sempre a possibilidade de vê-lo, ao céu, refletido no mar. É o retrato da ganância e da estupidez, da procura do capital por um sistema socialista, todos os contrassensos estão sobre a mesa que, imaginamos, estava aqui, encostada a esta parede da cabine de navegação. É um tutorial sobre como fazer desaparecer um mar inteiro. O Mar de Aral. O quarto maior mar interior do Planeta. Em 1950. Hoje é uma miragem no deserto.

Foram precisas cinco horas de onde vínhamos para chegar a esta beira-mar. Seriam precisas outras tantas para chegar à rebentação, pelo leito dele, esventrado como todos os leitos de todos os mares. Porque a rebentação está a 200 quilómetros do porto de Moynaq.

A história é tragicamente simples. O Mar de Aral (é o nome do porto do lado oposto do outrora gigantesco lago salgado, já no Cazaquistão) era uma mina de peixe e de exportação, com 400 quilómetros de cima a baixo, 280 de lado a lado, rodeada do deserto que é esta parte da Ásia Central.

Em mais uma das experiências soviéticas longe da casa-mãe e numa paisagem vazia, Moscovo decidiu que o Uzbequistão e os vizinhos a sul, Turquemenistão, e a norte, Cazaquistão, seriam ótimos campos de algodão para concorrer com o gigante económico norte-americano. Ora o algodão é como o eucalipto, sedento de água. Num território árido. O início foi suave, a avidez do negócio transformou a história numa tragédia.

Desviaram-se águas dos rios Syr-Darya, cazaque, e Amu-Darya, uzbeque – nascidos do degelo em montanhas longínquas e cujo percurso cortava o deserto de Kyzylkum – por um sistema de canais infindáveis expostos ao sol, para alimentar as colheitas do ouro branco e fazer da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas um campeão têxtil amigo da indústria da moda. Liberto do jugo de Moscovo, o Uzbequistão ditatorial do presidente Islom Karimov percebeu o valor do negócio e manteve-o.

A evolução do Aral do Sul, fotografada pela NASA ao longo dos anos 2000,
2003, 2013 e 2018.

Em 1980, a água desses rios que chegava ao mar era um décimo da de 1950. Até que o Mar, eventualmente, “desapareceu” em 2014, para voltar a dar sinais, ano sim ano não, fruto de um maior degelo. O porto de Moynaq é uma assombração, a duas dezenas de metros de altura do chão que se espraia a partir dali para norte. Uma lápide: “Diz-se que neste lugar, em tempos, houve um cais onde, durante muitos anos, uma mulher veio todos os fins de tarde esperar pelo filho que fora para a guerra. Era um daqueles muitos heróis que desapareceram numa guerra e nunca regressaram”.

A alegoria soa propositada. Sê-lo-á ou não. O monumento é aos heróis que caíram pelo país e às mães deles. O Mar não caiu pela pátria. Caiu por causa dela. E as dez mil pessoas que ali viviam da pesca e da indústria conserveira ficaram, quase num abrir e fechar de olhos, sem sustento. Hoje, vivem num cais sobre o deserto. Enquanto puderam, carregaram barcas sobre carrinhas de caixa aberta e foram atrás da água.

Trabalhadores na colheita do algodão, o ouro branco que “roubou” a água ao mar e a dez mil pessoas que viviam da pesca e da transformação do peixe na região de Moynaq, no oeste do Uzebequistão. Hoje, no lugar da água há barcos. Mortos

Com o recuo da rebentação, o nível de salinidade subiu a um ponto que impediu a mínima réstia de vida aquática. Some-se ao sal – que se sente no ar, a humidade é iodada, áspera, o sal ficou na areia, que se faz tempestade e se espalha pela região, tóxica – os pesticidas e fertilizantes que fizeram florescer a produção de algodão drenados para a pouca água que ia chegando e o Aral do Sul é hoje um poço de contaminação a céu aberto, lá longe.

E Moynaq uma terra de gente adoecida. Um caso de estudo para a concentração de cancros do esófago e da garganta por causa do sal e do pó, tifoide, hepatites e disenterias devidas à contaminação da água doce, uma mortalidade infantil de 10% e elevadas taxas de malformações congénitas.

O verão fez-se mais extremo, o inverno também. A fábrica de conservas jaz abandonada, como os pesqueiros que foram reunidos ali onde era o porto, caídos num túmulo de areia e conchas, entre ervas secas e o horizonte do Mar que não há.

O cordão umbilical que ligava o que resta do Aral do Sul ao Aral do Norte, o minguado Aral cazaque, foi entretanto cortado por uma barragem estanque em 2005, porque no norte longínquo que é mais elevado ainda havia vida. Um corte que reverteu a história, mas só no Cazaquistão. O Aral do Norte cresce. O Aral do Sul está condenado à extinção.

Em terra, agora agigantada, a palavra de ordem é a reconversão para a agricultura. Fez-se um lago artificial para manter uma espécie de pesca, mas falhou. Há pântanos aqui e ali, onde termina o Amu-Darya. E há gado nas margens. E moscas e gente fechada, gente que quase morreu mas tenta sobreviver no limbo. Moynaq está em reconstrução. Deverá haver alguma razão. No fresco museu do memorial ao Mar, a história está em fotografias, algumas a preto e branco, outras não. Porque tudo isto aconteceu em 60 anos, porque as conchas que se apanham na areia ainda têm aquele tom lavado pelas ondas, porque as latas de conserva são tão coloridas que remetem para o nosso passado recente, aqui em Portugal.

Numa das imagens, o sol brilha no horizonte, sobre um mar chão, em paz, com barcaças a repousar no ocaso do dia. Parece fim de tarde, só ali falta a mulher que todos os dias, àquela luz, ia aguardar o regresso de um herói. Mas lá fora não é fim de tarde. É apenas tarde, sob um sol tórrido e humidade que cola a roupa à pele. É tarde. E alguns barcos repousam ali para sempre, em homenagem à estupidez. Os outros – eram muitos – foram vendidos para sucata. Morreram, como o Mar.

O ouro branco

Apesar do desastre de Aral, o Uzbequistão independente de Islom Karimov manteve a aposta soviética no ouro branco. Forçou-a mesmo, impedindo a diversificação dos cultivos. E tira um bilião de dólares (11% do produto interno bruto) dele a cada ano que passa.

Agora são assim, trabalhadores sazonais, pagos ao equivalente a 13 euros por cada 60 quilogramas de algodão, a obra de um dia, a multiplicar por dois meses. São voluntários, dizem-nos.

Até há bem pouco tempo, era forçado este trabalho que, por esta altura do ano, pinta de cor a paisagem. Não era pago. E eram estudantes e professores que o faziam. Por força da pressão ativista e de boicotes internacionais, o trabalho infantil foi alegadamente banido em 2012 e hoje, também alegadamente, fá-lo quem quer, graças a um decreto de Shavkat Mirziyoev, o antigo primeiro-ministro que assumiu a presidência após a morte do eterno Islom Karimov. Alegadamente.

A própria Organização Internacional do Trabalho reconhece que, apesar da redução em 48% entre 2017 e 2018, o trabalho forçado na colheita do algodão uzbeque continua a ser “um problema significativo”. Porque a produção do ouro branco ainda se faz num sistema de quotas imposto pelo Governo central, que as autoridades regionais cumprem como querem.

É duro, horas de costas vergadas, de luvas para não massacrar em demasia os dedos nos picos afiados em que se abre a flor do algodão, de máscara para travar o pó da terra seca e os filamentos da colheita, ou a proximidade de uma estrada que é praticamente autoestrada. É duro. E eles estão resignados.