Quando o amor acaba e os animais passam a ter duas casas

Foto: Rui Manuel Ferreira/Global Imagens

Guarda partilhada está a ganhar adeptos. Solução é na maior parte das vezes pacífica, mas também há casos que só os tribunais conseguem resolver. Cães tendem a lidar melhor com as mudanças frequentes de ambiente.

Corria o ano de 2013 quando Vanessa e Jorge se enfiaram no carro e percorreram as longas centenas de quilómetros que separam o Porto de Évora. O destino estava definido ainda antes de se fazerem à estrada. Quando voltaram ao ponto de partida, já eram três. Haveriam de o ser por mais uns anos. O novo membro da família era um salsicha de pelo cerdoso, quatro meses e um sem fim de meiguice. Vanessa há muito queria ter um cão. Jorge haveria de se render. Depois, foi procurar na Internet e ir buscá-lo. O “batismo” chegou quase a seguir. Peninha, por causa do primo do Pato Donald. “Tinha aqueles cabelinhos, como ele”, explica Vanessa Miguel, 44 anos, nascida em Angola e residente no Porto.

Depressa o Peninha se fez a alegria da casa. “Nunca tivemos filhos por opção e ele despertou em nós um instinto muito giro. Cuidámos dele e tornou-se impossível não o amar.” Tanto que as regras definidas inicialmente – não ir para o sofá, não entrar no quarto – depressa redundaram numa liberdade quase total. “Com o tempo, deixámo-lo fazer o que queria. Começou a dormir connosco e o sofá passou a ser dele.”

Até que, em 2017, ao fim de oito anos de amor, Vanessa e Jorge declararam óbito à relação. E o Peninha? Qualquer decisão teria de assentar numa premissa fundamental. “O Peninha era dos dois. Sempre quisemos o melhor para ele. E para nós também.” O acordo foi por isso simples. Entre segunda e sexta, o salsicha de pelo cerdoso que se fez amor comum mesmo quando tudo o resto deixou de o ser, passaria grande parte do tempo com o dono (ou tutor). “O Jorge vive perto da praia e tem mais espaço para ele.” Os fins de semana são, regra geral, de Vanessa. “Faz-me imensa falta durante a semana. Mas prefiro que ele esteja bem”, admite.

O calendário não é rígido e vai sendo adaptado consoante as possibilidades e as obrigações de cada um. De resto, garante Vanessa, esta espécie de “guarda partilhada” flui naturalmente, sem dramas nem quezílias. “Temos a chave de casa um do outro, para quando um de nós precisa de ir buscar o Peninha e o outro não está. A nossa preocupação é que ele esteja no melhor dos contextos. Como se deveria fazer com um filho.”

Vanessa Miguel faz questão de passar os fins de semana com o Peninha (Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)

A princípio, o salsicha ainda acusou a separação. “Ficava ansioso e algo combalido quando um de nós saía e fazia uns truquezinhos para nos juntar. Quando nos estávamos a despedir, tocava num e noutro e ficava a olhar para cima.” Mas com o tempo também ele se habituou à mudança. Hoje, Vanessa não duvida que o animal vive bem com o sistema adotado por ambos. “O Peninha é-nos muito fiel. Acho que iria sentir muito se deixasse de estar com um de nós.”

A decisão que Vanessa e Jorge tiveram de tomar há mais ou menos dois anos impõe-se frequentemente após términos de relações. Tanto mais quanto o número de animais de companhia tem vindo a aumentar. Segundo um estudo da GFK divulgado em 2017, a percentagem de lares portugueses com pelo menos um animal de estimação subiu de 45% em 2011 para 56% em 2016. Na altura, 33% dos lares tinha pelo menos um cão e 23% um gato. Daí que as questões relativas ao futuro de um animal de companhia quando uma relação acaba se multipliquem. Flávia Fernandes, 45 anos e veterinária há 20, reconhece uma preocupação crescente. “Noto que as pessoas têm cada vez mais essa sensibilidade, de tentar perceber o que é melhor para o animal quando há uma separação e até de nos perguntarem o que achamos melhor.”

Foi precisamente por querer o melhor para o seu animal de estimação que Nuno Gemelgo Gonçalves, 27 anos, deu carta-branca à (agora) ex-namorada para estar com o Jack (de Jack Sparrow, o protagonista do filme Piratas das Caraíbas) quando quisesse. Residentes em Macedo de Cavaleiros, Nuno e a antiga companheira foram buscar o american staffordshire terrier, espécie de pitbull gigante – mas que “não faz mal a uma mosca”, esclarece Nuno -, há quase quatro anos e criaram-no em conjunto desde então, mesmo que nunca tenham chegado a viver juntos.

“O cão dormia na minha casa, mas quase todos os dias ia à casa dela, até por serem próximas. Foi sempre habituado a estar nas duas casas e com as duas famílias.” Na altura, o casal até criou uma conta de Instagram para o Jack, onde ia partilhando fotos e vídeos do novo membro da família, com inegável popularidade (quase cinco mil seguidores). A conta resistiu à separação. A preocupação com o bem-estar do american staffordshire terrier também.

Daí que atualmente passe fim de semana sim fim de semana não com cada um deles. Além disso, a tutora vai frequentemente buscá-lo ao final da tarde, quando sai do trabalho, para passar umas horas com ele e voltar a “devolvê-lo” depois do jantar. Nuno garante que, independentemente do fim da relação – e do ceticismo de muitos dos que o rodeiam (“muita gente não entende isto de continuarmos a partilhar o cão”, confessa) -, sempre pôs a antiga companheira à vontade para estar com o Jack quando quisesse. “O cão gosta de ambos e não ia perceber se deixasse de estar com um de nós. Quando ela vem buscá-lo fica todo contente. E quando volta aqui a casa também. É o melhor para os três.”

Tem a palavra o tribunal

No caso de Nuno e da ex-namorada, cuja relação não chegou a dar em casamento, o assunto resolveu-se sem burocracias à mistura. Mas desde maio de 2017, quando entrou em vigor o estatuto jurídico dos animais, que, entre outras coisas, está estipulada a obrigatoriedade de os incluir nos termos de um divórcio. Ou seja, a guarda dos animais passa a ser regulada considerando “os interesses de cada um dos cônjuges, dos filhos do casal e também o bem-estar do animal”. A decisão, garante Anabela Quintanilha, advogada especialista na área do Direito da Família, resulta na maior parte das vezes de um acordo mútuo.

Nuno Gemelgo Gonçalves tem a “guarda” do Jack a maior parte do tempo, mas dá carta branca à ex-companheira para o ir buscar quando quiser (Foto: Rui Manuel Ferreira/Global

“Pela minha experiência profissional e pela quantidade de divórcios que faço, a minha perceção é que não tem havido grandes problemas. Há quase sempre um dos elementos que está em condições mais favoráveis e que dá um passo à frente. Os animais são muito sensíveis ao afeto dos donos. E também há a questão da ligação dos filhos, quando os há, aos animais. Todas as variáveis devem ser ponderadas. Nestes casos, costumamos pôr os pais a pensar sobre isto tudo.”

Pontualmente, também há situações de litígio. No mês passado, por exemplo, foi conhecido o caso de um casal de ex-namorados que está a disputar a guarda da cadela em tribunal. Kiara, uma cadela pitbull com sete anos, está desde março a passar uma semana alternada em cada um dos donos, enquanto aguarda que o Tribunal de Família e Menores de Mafra lhe trace o futuro em definitivo. O dono estaria recetivo a aceitar a guarda partilhada, mas a antiga companheira não estava pelos ajustes e o caso resvalou para a barra do tribunal, com ambos a reivindicar a guarda exclusiva da cadela. Ao que a “Notícias Magazine” apurou, a sentença deve ser conhecida na próxima semana.

Flávia Fernandes, veterinária, também já teve de ir a tribunal em duas ocasiões, para intermediar conflitos entre tutores de animais que se habituou a acompanhar na clínica que tem na Maia. Num dos casos, o microchip do animal estava registado com o nome dos dois donos e, após a separação, ambos quiseram ficar com ele. Noutro, o chip estava no nome da mulher, mas era o marido quem tinha a fatura da compra do animal. Quando o casamento acabou, foi cada um a puxar para seu lado.

De resto, a veterinária está mais do que habituada a fazer uma espécie de terapia de casal. “Às vezes, para darmos a nossa opinião nestes casos, acabamos por ter de fazer perguntas muito específicas, imiscuindo-nos na vida pessoal do casal. Às vezes lá tenho que dizer ‘não levem a mal as perguntas’.”

Certo é que os animais se ressentem em situações de tensão. Hiperatividade, necessidades feitas em locais desadequados, comportamentos agressivos ou automutilação são tudo sinais de que algo não está bem. O melhor mesmo, aconselha Flávia, é ver como o bichinho vai reagindo. A veterinária aponta mesmo vários casos em que o animal de companhia fica quase a tempo inteiro com um dos donos, com o outro elemento do casal a ir buscá-lo de quando em vez para darem um passeio e o entregar ao fim de umas horas.

Gianpiero Zignogni vai a Braga sempre que pode para passar umas horas com a cadela Maria Pata

Gianpiero Zignoni, italiano de 35 anos que vive quase desde que se conhece em Portugal, está habituado a esse tipo de “guarda”. Há pouco mais de um ano, ele e a ex-namorada aproveitaram que a cadela de uma conhecida tinha tido crias e adotaram uma, arraçada de podengo e de galgo. Maria Pata, como lhe chamaram, chegou a viver com ambos durante uns meses. Mas o fim da relação trouxe um novo paradigma. E a solução surgiu de pronto. Até porque a vida profissional não deixou grandes alternativas a Gio (como lhe chamam os amigos).

“Eu sou sócio de uma empresa de cafés, o que implica passar muito tempo fora da cidade. Inclusive, passo algumas noites fora. Quando nos separámos, tornou-se evidente que fazia mais sentido a cadela ficar com a minha ex-namorada, em Braga. Nem precisámos de conversar sobre o assunto. Ainda por cima, os pais moram perto e têm quintal. A Maria Pata tem muito mais liberdade com ela do que teria comigo.”

Por isso, aproveita cada viagem profissional a Braga para matar saudades da cadela. “E às vezes vou de propósito. Passo duas ou três horas com ela. Levo-a a um parque canino para ela correr e brincar. Ou simplesmente passeio com ela.” Admite que tem saudades da companheira de quatro patas, mas garante que nunca se sentiria bem se, por causa disso, a obrigasse a passar horas infinitas fechada em casa. “Adoro a cadela, mas tenho de pensar no bem-estar dela.” E, apesar de a Maria Pata ter estranhado o novo cenário (“a minha ex-namorada contava-me que ela ficava sentada ao pé da porta à espera que eu chegasse”, lembra), Gio salienta que, com o tempo, “não teve outro remédio que não habituar-se”.

Gatos mais avessos à mudança

Segundo a veterinária Flávia Fernandes, os cães, por natureza, adaptam-se melhor a diferentes ambientes. “Há muitos cães que são amigos de toda a gente, que vão trabalhar com os donos, que vão à praia. Esses cães não estranham tanto as mudanças.” Mas depende sempre da socialização do animal em causa. A veterinária dá o exemplo de um cão que, aquando da separação dos donos, ficou apenas com um deles e acabou em depressão. A explicação, perceberia depois, relacionava-se com o perfil dos tutores. “Um era mais controlador, o outro mais carinhoso. O cão ficou com o mais controlador e começou a ficar mais magro, mais abatido. Tem muito a ver com o caráter do próprio animal e com a relação que tem com os dois membros do casal.”

E quanto aos gatos? A coisa pode complicar-se, explica Flávia, que se tem debruçado sobre a área da medicina felina. “Os gatos são muito apegados às suas rotinas, às suas coisas, às suas caixas de areia. Mesmo quando os donos vão de férias e os deixam noutro sítio, regra geral nota-se o comportamento alterado. Acabam por ser mais sensíveis às alterações de ambiente. Quando me perguntam, o meu conselho é que, idealmente, o gato fique numa das casas.” Mas há exceções. Essencial é ir analisando as reações.

Luísa Sousa Martins, lisboeta de 48 anos, divorciada há seis, está habituada a fazer essa gestão. Há seis anos, quando se separou, partilhava o Ulisses, o Leo e o Jedi (todos felinos) com Paulo, o (agora) ex-marido. Hoje, continuam a partilhá-los. Mesmo que com nuances diferentes e com imprescindível preocupação em relação às características de cada um.

“Percebemos logo que os gatinhos eram de ambos e que nenhum de nós queria ficar sem eles.” Por isso, sempre que pode vai buscar o Ulisses ou o Leo para ficar com eles uns dias. “Normalmente não os trago juntos porque eles desatinam. O Ulisses é ciumento”

Com o Jedi é que nem tenta. “É um gato muito fugidio e medroso. Prefiro não o sujeitar a isto de o trazer para minha casa. Mas o Paulo vai-me mandando fotos dele.” É a tal gestão caso a caso que Flávia Fernandes defende. E sem cronómetros ao barulho. “Nenhum de nós está a pensar quem passa mais tempo com quem.” Essa é parte da fórmula do “sucesso”. “Se ambos [os elementos de um ex-casal] gostam das suas vidas com os animais, é importante chegar a acordo e investir na fluidez. Os meus gatos estão felizes assim. Felizes com os dois.”

Pelo que tem visto, Anabela Quintanilha, advogada, não tem dúvidas de que a guarda partilhada de animais ainda está longe de ser comportamento padrão. “Mas acredito que, tal como a guarda partilhada das crianças se foi tornando mais habitual com o tempo, o mesmo possa acontecer em relação aos animais.” Até porque a sensibilidade em relação ao tema é cada vez maior. “Até há bem pouco tempo os casais que se estavam a separar nem pensavam nisso. Pensavam nos filhos, nas casas e nos carros. Agora já não é assim. É normal que as guardas partilhadas de animais tendam a aumentar.”