Comunidade homossexual do Brasil é a mais perseguida do Mundo: a cada 19 horas uma pessoa é morta por preconceito. Brasileiros contam o que os leva a fugir.
Antes de decidir mudar de vida, de país e de coração e de sonhar viver em Portugal, Gabriel dos Santos, 22 anos, criado no Jardim Nazaré, zona pobre e problemática do leste de São Paulo, pai pedreiro, mãe faxineira, ambos analfabetos, seis irmãos, Gabriel saca de uma memória solapada do liceu.
Ele conta: “Nascer veado no Brasil não é fácil [n.d.r.: um veado, em calão brasileiro, é um homossexual] e eu percebi muito cedo, tinha seis, sete anos, que ia gostar de meninos em vez de meninas, como era esperado de mim. Nasci assim, falava fino, não gostava de futebol, não tinha amigos, ninguém se aproximava de mim. Nos dias em que havia ginástica era o pânico, as crianças nos balneários podem ser muito cruéis, eu lembro-me, passava dias inteiros na escola apertado sem coragem de ir no banheiro [WC], o bullying era o meu dia-a-dia, tinha medo até de respirar, só queria ser invisível. E então aprendi a viver solitariamente, que é o mais parecido que há com a invisibilidade. Nos intervalos das aulas, para não ter que socializar, escondia-me na biblioteca e passava o tempo todo a ler. E agora eu penso: tens dez anos e vives a fugir. Mas o que é isto? O que é que eu fiz? Isto não é viver!”.
Gabriel está agora de avental em frente ao restaurante da Baixa do Porto onde arranjou emprego há dois meses por 600 euros. É popular, tem contrato, foi às Finanças, já tem NIF, desconta para a Segurança Social, já arrendou casa em seu nome. E depois ele vai fazer um gesto que, diz ele, não pode repetir no Brasil: sacar livremente do telemóvel na rua sem ver se está alguém à frente, atrás, se alguém o está a vigiar para o roubar. Ele quer mostrar um vídeo que não consegue ver até ao fim – a execução filmada, e que está no YouTube, da travesti Dandara Kethlen em 2017, numa rua de Fortaleza, Ceará, era dia, a rua cheia, a mulher de 42 anos foi apedrejada, espancada, violada com paus e morta com dois tiros na cara – e outro episódio vem à tona.
“Um dia do ano passado, ao sair do emprego, eu era assistente do diretor da Viação Metrópole Paulista, ganhava mais lá do que cá, à hora do entardecer, ia a virar a esquina a falar no celular [telemóvel] e um garoto descalço, sem camisa, aponta-me uma pistola à cabeça. Sim. Assim. Gelei. Uma pistola enorme e negra numas mãos pequenas. Nem pestanejei, dei logo, ele desapareceu e eu fiquei ali a tremer. Depois, sempre que saía à rua levava dois celulares: o meu, o verdadeiro, metido nas cuecas, e outro, um antigo e fraco, para dar logo aos assaltantes sem piar.” E foi depois disso que Gabriel decidiu mesmo emigrar.
Hoje vive no Porto na zona do Marquês, vai e vem a pé do trabalho “na maior calmaria”, mesmo quando sai do Cinema Trindade, de que já é fã, e já é de noite – estes dias foi ver “Dor e Glória”, de Almodóvar, “filminho bom pra caramba, né?” –, ainda vive encandeado pela sua nova liberdade. Antes de vir pesquisou muito, informou-se bem, trouxe um pé-de-meia, e visitou Porto e Lisboa. Escolheu a cidade de cima. “É, achei mais bonita, mais cosmopolita, o povo mais direto, mais franco. E também por causa da Universidade do Porto, que tem curso de Engenharia Espacial que quero muito tirar.” E depois Gabriel pára, olha em volta, não diz nada, vai à esquina, espreita, volta, depois diz: “Ainda acho esquisito isso: aqui nunca vejo policial na rua, mas nunca me senti tão seguro como me sinto aqui. Eu amo o Porto, é do coração” – e os olhos dele ficam a raiar.
O país mais transfóbico do mundo
Para os 209 milhões de habitantes do Brasil, a estatística é o horror: no seu país, a cada 19 horas uma pessoa é assassinada por discriminação sexual. A constatação letal é de 2017, ano negro do relatório do Grupo Gay da Bahia, Organização Não Governamental que recolhe dados sobre homicídios da população LGBTI (lésbicas, gay, bissexuais, transgénero ou intersexo) no Brasil desde 1980 – e que registou 445 mortos naquele ano. O número vem a cavalgar: 130 homicídios em 2000, 260 em 2010, 343 em 2016, 445 no ano a seguir.
São números aterradores que atiram o Brasil para o topo do ranking de países com mais homicídios LGBTI do Mundo, confirma o relatório anual da Transgerder Europe, ONG com sede na Alemanha e que vigia mais de cem nações. O primeiro lugar do Brasil regista, em números absolutos, mais do triplo de assassinatos do México, o segundo país da lista negra em crimes LGBTI, seguido por Estados Unidos da América e Colômbia.
Neste contexto, como não cobiçar Portugal? O nosso país é o terceiro mais pacífico do Mundo, só fica atrás da Islândia e da Nova Zelândia; o Brasil é o 116.º, diz o ranking de 163 países da Global Peace Index.
Patrícia Simões, 44 anos, que chegou a Amarante em julho para trabalhar no festival Mimo e agora já vive o sonho de ser chef num restaurante em Lisboa, recita quase todos aqueles números de cor. Mas depois junta-lhes uns versos famosos do cantor brasileiro Criolo para se acalmar. E trauteia: “É necessário quebrar os padrões, é necessário abrir discussões, amar sem portões, amores aceites sem imposições” (da canção pop tropical “Etérea”, que Criolo lançou este ano com um vídeo protagonizado por drag queens, transexuais e travestis).
Patrícia, que já morou na Bahia, em São Paulo e no Rio, que percebeu “ainda muito menina que gostava de meninas”, e que aos 16 assumiu para toda a família que a sua pulsão sexual não metia homens, olha de cá para lá com espanto e estranhamento. “Sabe, só depois de sair do Brasil é que eu soube o que é ser livre e igual. É esquisito isso, né?”, pergunta ela a responder: “Todos nascemos livres e iguais mas lá no Brasil eu nunca senti isso não. Aqui em Portugal senti logo que podia ser eu. E esse sentimento, que para mim que tenho 44 anos, é novo, é um sentimento maravilhoso”.
Ela sorri para o sol, diz que ontem sonhou com um prato novo que vai fazer no restaurante com bacalhau e cuscuz, e depois de repente conta que em janeiro, em São Paulo, foi assaltada três vezes na mesma semana. “Das duas primeiras, na Avenida Paulista, levaram o dinheiro e o celular, mas da terceira eu apanhei e apanhei bem. Foi lá no meu bairro, que é dos mais caros de São Paulo, cheio de lojas, gente, cafés elegantes. Eu atravessava a rua de mão dada com a minha namorada e dois homens que se fingiam arrumadores de carros, um deles com um pau oculto, vieram diretos para nós. Eu apanhei logo um soco na cara e comecei a sangrar. Como não sou de me ficar, fui para cima deles e apanhei ainda mais: socos, pontapés, pauladas, deu de tudo. A minha namorada não respondeu e apanhou menos. Mas sabe o que é pior? Depois de nos tirarem o dinheiro e os celulares, os bandidos continuaram a bater, cheios de ódio nos olhos, a gritar que éramos bichezas, sapatões, que éramos um erro de Deus. Muita gente viu, ninguém fez nada. Quando me levantei do chão toda pisada, a camisa a escorrer sangue, toda estrelada, um homem sentado num banco de jardim sorriu e disse: “É, Bolsonaro está metendo ordem nesse país”. Ainda lhe berrei por não ter feito nada, mas ele fugiu. Ainda o ouvi dizer: “Ué, eu sou pescador, não sou segurança – e continuou a sorrir todo desdentado, o canalha”.
Um presidente que não é de todos
Patrícia aconselha a leitura do Atlas da Violência, um observatório estatal que diz que morrem no Brasil 179 pessoas assassinadas todos os dias, o que dá 65 mil homicídios por ano, nos dados de 2017. Ela entende que os imigrantes brasileiros recentes, sobretudo os LGBTI, estão a sair devido ao desgosto chamado Jair Bolsonaro. O ex-capitão do Exército, 64 anos, empossado em janeiro 38.º presidente do Brasil (vitória por 55,13%; 57,7 milhões de pessoas votaram nele), vem exercendo uma agenda de extrema-direita, populista, nacionalista, socialmente conservadora, economicamente liberal, anticomunista – e abertamente xenófoba e homofóbica, isto é, que tem medo irracional e irrealista de imigrantes e homossexuais.
De facto, Bolsonaro não é o presidente de todos os brasileiros e são célebres os seus assertos sobre os gays. Em 2002, já era deputado federal, disse: “Se eu vir dois homens se beijando na rua, eu vou bater neles”. Em 2010: “Se o filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um couro e muda o comportamento dele”. Em 2011: “Muitas das crianças que serão adotadas por casais gays vão ser abusadas por esses mesmos casais homossexuais”. E em 2012, entre outras declarações de ódio e discriminação que nunca emendou: “Seria incapaz de amar um filho homossexual. Não vou dar uma de hipócrita aqui, prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo”. É neste clima, incendiado por cima, incinerado por baixo, que vive hoje o Brasil.
O Porto é tão cosmopolita como Barcelona
Pedro Favaretto, 24 anos, designer publicitário, e Vítor Alonso, 25, arquiteto, namorados, mudaram-se para cá em 2017 e já se comportam como portugueses: quando se levantam do almoço para ir ao terraço do bar/restaurante Maus Hábitos ver o Porto a 360 graus num céu limpo até ao mar – “Uau, nunca tinha visto a cidade assim, uau!”, diz um, “é, é linda mesmo né?”, diz o outro a rodopiar o olhar –, os dois brasileiros deixam tudo na mesa, casacos, bolsas, cadernos, um computador. Sorriem a olhar um para o outro: “No Brasil isso não é possível não, roubavam logo se vissem que os pertences estavam sem ninguém”, diz Pedro a abanar a cabeça, “é, se calhar, já somos portugas”, diz Vítor, e os dois descascam-se a rir.
No casal, a decisão de emigrar foi unânime, foi quando lhes assaltaram o apartamento. “Vivíamos numa zona boa de São Paulo, com segurança, câmaras, vigilantes, mas aconteceu. Foi um golpe dos porteiros”, diz Pedro. Mudaram de casa, recomeçaram noutra zona da cidade. Mas isso não durou dois meses. “Eu vivia sempre tenso, cada vez que entrava em casa tinha medo, nunca queria estar sozinho”, diz Vítor, e decidiram que não era forma de viver.
O Porto foi a segunda opção, primeiro queriam Barcelona, “uma cidade gay friendly e que era referência nas nossas profissões”. Foram lá uma semana, viram tudo, passearam, espiolharam, fizeram contactos profissionais, e voltaram ao Porto para o mesmo roteiro de instrução. “Foi aí que a coisa bateu em nós: o Porto é mais pequeno, óbvio, mas é tão cosmopolita como Barcelona e é uma cidade linda e segura e com o tamanho ideal”, dizem os dois a intercalar.
Com apartamento numa zona de classe média-alta da Foz fluvial, vieram para investir e já fundaram no Porto a empresa Blecaute de candeeiros singulares. Diz Pedro: “Fomos ao concurso de desenho de luz do festival Lumina, de Cascais, e ganhámos um prémio com um candeeiro-flor escolhido pelo grande Philippe Starck, o arquiteto e designer que é como estrela rock mas francês. E sabe o que ele, que também vive cá [Cascais], nos disse? Isto: Eu escolhi Portugal porque os portugueses são os últimos seres humanos do planeta. Uau, né?”.
De Bolsonaro “não queremos nem ouvir falar”, diz o casal. “Nós saímos antes de ele chegar, mas a nuvem já lá estava e vinha a engrossar. Vimos a eleição em direto no Porto, com amigos, e todos congelámos. Elegemos um imbecil, um imbecil muito perigoso. Agora é que vamos pró buraco – e mudamos de canal.”
Criolo faz música para combater o ódio
Criolo, nascido Kleber Cavalcante, 45 anos, uma estrela rap no Brasil, não emigrou mas já atuou cá este ano cinco vezes. No verão, em Amarante, onde a NM o viu no Mimo, um festival positivo, inclusivo, democrático e abrangente, ele pôs milhares de pessoas a concordar: “A melhor arma para a revolução é o amor”. Muito crítico da posição política e social do Brasil, ele diz do seu presidente. “Bolsonaro vai à TV e diz que no meu país não há racismo. É inimaginável, impensável, um país em que decorre o genocídio da juventude negra, um presidente dizer uma mentira, um embuste desses. A revolta é séria”, diz Criolo, um homenzarrão de voz terna, caricioso, com olhos exaltados.
“Nós viemos do nordeste, morámos em favela, fomos pobres, já viemos da diáspora africana, sofremos todos os preconceitos na pele, sentimo-lo desde o ventre da nossa mãe, e ouvimos o mais alto dignitário da nação dizer isso?! É uma vergonha sem fim. Me dá raiva o Brasil de hoje.”
E mais isto: “O racismo sempre existiu, só que agora as pessoas estão à vontade, sentem-se legitimadas, têm um presidente que nega o real e mente na nossa cara. Ele amplifica o pior dos piores sentimentos que é a normalização do ódio, do preconceito”. E por isso Criolo faz música para combater o mal. “Quando a arte te toca, tu percebes que tens alma, percebes que és gente, percebes o outro. Isso leva ao respeito e o respeito leva à cidadania. Essa é a força da cultura, a arte como alimento da alma.” Mas depois desanima-se: “O Brasil precisa de nascer de novo. Só a juventude, a nova geração, pode mudar isso, o ódio que se globalizou e está a levar tanta gente a fugir do meu país”.
Um brasileiro emigra para Portugal a cada meia hora
Os números são de uma grandeza voraz: em média, todos os dias, a cada meia hora, um brasileiro entra em Portugal para ficar a morar. São 54 novas pessoas por dia, 383 por semana, 1 666 por mês. A taxa foi verificada pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras: 19 997 brasileiros emigraram para Portugal só em 2018. Desde que saiu da crise económico-financeira de 2008-10, Portugal é o novo país favorito dos brasileiros e esta fuga já é designada como “a segunda vaga” após a primeira grande ponte de imigração brasileira para cá nos anos de 1980-90, conhecida como “a imigração dos dentistas”.
Entre o total de imigrantes, 480 300 pessoas, o maior número de sempre, um em cada cinco veio do Brasil. Hoje, os brasileiros são, de longe, a maior comunidade estrangeira no nosso país, com 105 423 registados, diz o Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo, do SEF (2018). O Brasil deixa a léguas todas as outras nações: Cabo Verde (34 663), Roménia (30 908), Ucrânia (29 218), Reino Unido (26 445), China (25 357), França (19 771), Itália (18 862), Angola (18 382) e Guiné-Bissau (16 186).
Quatro cidades concentram quase 70% dos brasileiros: Lisboa (43 mil entre 213 mil estrangeiros), Porto (12 994 brasileiros, dos quais 60% mulheres, entre 32 614 estrangeiros), Faro (9 650 brasileiros que podem em breve superar a maior comunidade estrangeira de sempre da capital algarvia, que são os 14 151 ingleses) e ainda Braga (6 168 brasileiros).
Quatro fatores contribuem para a situação, indica o Relatório da Imigração: a dispensa de visto, a perceção de Portugal como país seguro, as nossas vantagens fiscais e o crescimento económico de Portugal, que é alavancado pelas receitas do turismo.
No Brasil são mortas 179 pessoas por dia
A violência e o seu ódio rácico, social ou sexual não atingem só a população LGBTI; a violência atravessa toda a população geral e não pára de crescer. É o que diz o Instituto de Pesquisa Económica Aplicada, que lançou no verão o Atlas da Violência, observatório nacional das mortes criminais que assombram a população do Brasil.
O primeiro estudo incidiu em 2017 e só nesse ano houve 65 602 homicídios, equivalendo a 179 pessoas assassinadas por dia num país com 209 milhões de habitantes. É de tirar o fôlego: a cada 12 minutos no Brasil, uma pessoa morre às mãos de alguém. É “o maior nível histórico de letalidade violenta intencional no país”, revela o relatório do Atlas. Estes números tornam-se ainda mais dramáticos: “A violência letal acomete sobretudo os jovens”, sendo que “59% do total de óbitos de homens entre 15 e 19 anos são por homicídio” – e “71% dos crimes são cometidos com armas de fogo”.
Estes números são compensados pela altíssima taxa de natalidade: em média, a cada hora nascem 321 bebés no Brasil. São 5,36 por minuto ou um a cada 11,2 segundos, diz o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.