O rapaz do sul parou e voltou a Faro para terminar o terceiro disco. "South Side Boy" é o novo álbum de Diogo Piçarra, mais introspetivo e mais escuro.
O até agora adiado novo visual acompanha a vontade de vincar o novo estilo do terceiro álbum de originais, que já tem cá fora o single “Coração”. O nome “South Side Boy” é a homenagem que faz à sua casa, a Faro, à região do Algarve, ao Farense, não seja o nome criado a partir da designação da claque do clube, os rapazes da zona sul, tal como é toda a equipa que tem em cima do palco. “Achei importante representar esse aspeto das nossas origens”, explica Diogo Piçarra.
O cachecol do Farense estava lá, numa parede do lugar onde ensaiou os dois primeiros discos com a banda e onde ainda vivem colunas dos tempos em que tocava nos bares e em que o pai o ajudava a montar. Foi na aridez e na pacatez dos arredores de Faro que encontrámos Diogo Piçarra, numa pequena quinta feita incubadora musical, que um privado parcelou e abriu a bandas da região. Era início de junho e Piçarra, ainda cabelo comprido, repuxado em picho, oscilava na escolha do primeiro single.
Estávamos no estúdio Mentecapta, onde voltava por duas semanas para se recolher e trabalhar o material gravado em Gaia, fazer a pós-produção de “South Side Boy”, que representa afinal mais do que o rapaz do sul. Também simboliza todas as inquietações que traz para as suas letras e fazem deste álbum mais do que um registo romântico. “‘South Side Boy’ é como se fosse a criança que vive dentro de nós. Aquele menino inseguro que, de vez em quando, nos puxa para baixo”, reforçava o músico da nova pop nacional, melodiosa e digital.
Para Piçarra, cada disco deve ser “um novo livro” e espelhar a sua “fase do momento”, preservando a essência. E a fase do momento é assumidamente mais sombria. Ou era, já que a 19 de outubro, dia em que completou 29 anos, anunciou nas redes sociais, como o “melhor presente”, que ia ser pai. Ainda no verão nos contava que andava no baú da música hardcore, punk e emo para recordar os temas que ouvia no passado. “South Side Boy” não passaria neutro a isso e até traz “mais bateria e guitarra”. “O álbum é um bocadinho mais escuro e instrospetivo. É a perceção de muitas coisas más no Mundo, que tentei materializar aqui, seja da sociedade ou da vida das pessoas”, revela Piçarra.
As inseguranças dos mais jovens
O contacto com os mais novos nas escolas, nos últimos três anos, no âmbito dos projetos pedagógicos “Diogo Piçarra em Pessoa” e “Os Tvgas”, inquietou-o e inspirou-o a tocar nas problemáticas “urgentes e sensíveis” dos adolescentes e jovens. “Tenho-me apercebido de muitas lacunas na vida deles, muitas inseguranças, muitas formas erradas de pensar no futuro. Tentei ir buscar esses sentimentos a quando eu era jovem, mas principalmente aos jovens de agora que buscam a felicidade nas coisas supérfluas, como os telemóveis, as redes sociais, os ‘likes’ os seguidores”, explica o cantor.
“Reparo que todos querem ser ‘influencers’, ‘youtubers’, ser famosos por nada. Ou seja, a fama não é uma consequência. Isso gera-lhes muitas inseguranças, gera depressões, alguns não se sentem incluídos”, conclui. Esses estados depressivos, essas inseguranças surgem agora em boa parte das suas letras, imiscuídos em histórias na primeira pessoa, mas também há as canções de amor, sobre paixão arrebatadora, desejo, perda…
Carolina Deslandes junta-se a Piçarra em “Anjos”, para cantar a duas vozes um amor que caminha entre as nuvens. Há muito que Diogo queria esta colaboração, mas deixou o convite para o fecho do disco, já em Lisboa. “Tinha o refrão e o primeiro verso feitos há mais de um ano. Ela adorou e disse-me logo que sim”, conta-nos agora Piçarra. A participação de Deslandes veio embrulhada noutro convite especial, a de que escrevesse o seu verso. “Dei-lhe essa liberdade, claro. Ela escreve muito bem e não podia pedir só para ela cantar”, comenta o músico.
Identidade reforçada
Também Lhast volta a trabalhar com Piçarra, depois de terem colaborado na produção do êxito platinado “História”, no disco anterior. “Cedo” foi feita pelos dois em Los Angeles, na casa do rapper, que também entra a cantar neste tema mais dancehall.
No capítulo da produção das músicas, o novo disco é, contudo, mais Diogo do que o anterior. Num total de 12 temas (a contar com os dois na versão deluxe), apenas três e o interlúdio foram produzidos em colaboração com outros músicos – Charlie Beats em “Coração”, Holly em “Promessas” e “Sul”, além de Lhast em “Cedo”.
“Quis dar mais a minha identidade ao disco. Não queria ser de modas. Queria que as músicas fossem assim, fazer estes sons, estes ‘drops’ e quem melhor do que eu para dar esse cunho? Também porque me sinto capaz”, expõe Piçarra, que já vem amealhando experiência a produzir para outros artistas. O empenho faz aumentar a ansiedade, às portas de editar o novo longa duração. “Foi o disco em que produzi mais e estou numa grande ansiedade. É sempre outro bebé”, diz agora à “Notícias Magazine”.
“Algumas coisas ditas de uma certa forma podem mudar o rumo do concorrente, fazê-lo desistir da música ou dar mais força”
Desta vez, quis fazer tudo diferente. Pela primeira vez, chamou para as gravações os músicos Filipe Cabeçadas, Francisco Aragão e Miguel Santos (os antigos Mindlock), que o têm acompanhado em cima do palco desde 2015, para aproximar mais o novo álbum dos concertos, que “são mais fortes, mais rock, mais analógicos, mais tocados”, salienta. “Com isto mudei tudo, mudei a própria estética. Nos outros discos fiz quase tudo sozinho: gravei em casa, compus, produzi, chamei alguns produtores que me ajudaram na produção, lancei o disco e só depois é que chamei a banda para ensaiarmos.”
O sucesso dos álbuns anteriores (“Espelho” e “do=s” foram platina) traz pressão, mas Piçarra preparou-se para o que considera “a prova de fogo”. “Sempre gravei os discos na estrada, em tournée. Neste disco, estou finalmente a parar de propósito para gravar e concentrar-me”, sublinhava. E abrandou o ritmo de concertos neste ano, para o fazer com a vontade de quem queria respirar e ter tempo para “experimentar novas coisas, novos ritmos”. Era a primeira premissa de outras que fazem deste álbum toda uma nova experiência musical para Piçarra.
“Os jovens de agora buscam a felicidade nas coisas supérfluas, como os telemóveis, as redes sociais, os likes, os seguidores”
“Nos outros discos não tinha tanto esse tempo. Até gravava no hotel… A voz da ‘Dialeto’ foi gravada num quarto de hotel com a minha namorada a dormir ao lado. Foi tudo muito atribulado”, recordava em Faro, enquanto movia os dedos no ecrã entre faixas coloridas de camadas de sons e instrumentos e nos revelava algumas músicas em fase final, pedindo ajuda na escolha do primeiro single. “Esta parte é a mais aborrecida para muita gente, mas eu adoro. Montar as músicas. É quase como montar um puzzle”, comentava. Entretanto, de junho até agora, quando voltámos a conversar, muita coisa mudou, desde a escolha de singles a músicas engavetadas, por um álbum com uma linha mais coerente.
A família a crescer
É aí, em Faro, que reabastece energias junto da família para o que aí vem, a estrada. Durante o ano, já são poucas as oportunidades para o fazer, salvo datas festivas como o Natal ou a Páscoa. “É na família que encontro aquela paz interior e forças quando tudo está menos bem ou muito atribulado. É sempre bom voltar aqui, porque mantém-me os pés bem assentes na terra”, reflete o cantor. “Sempre que eu entro em Faro ou na casa dos meus pais, volto a ser o Diogo que não é o Diogo Piçarra cantor ou dos grandes palcos, é o miúdo Diogo que andava de skate, jogava à bola e ia à praia de bicicleta”, confessa.
O olhar meigo não engana. Agora o miúdo cresceu e vai estrear-se como pai no meio do turbilhão do novo álbum, que tem o primeiro concerto da tour de promoção a 28 de março, na Altice Arena, em Lisboa. A namorada Mel Jordão está grávida de quatro meses e meio e o casal não podia estar mais feliz. “Era algo que queríamos, fazer crescer a família. Faltava um filho. Queremos ficar juntos, estamos estáveis emocionalmente e no trabalho, por isso achamos que era a altura”, diz Diogo. Até lá, há um documentário na calha, centrado na gravação deste disco, e outras novidades, como a saída em breve do segundo single.
Jurado no “The Voice” após vencer os “Ídolos”.
O disco “South Side Boy” chega num momento de destaque televisivo de Diogo Piçarra, em prime time de domingo. O novo júri descontraído do “The Voice”, na RTP, que chega aqui com a experiência inversa ainda “bem presente na memória”, reconhece que algumas coisas lhe custam neste papel. “Estamos focados na voz e na história do concorrente e isso liga-nos emocionalmente a ele. Sei bem que está numa posição sensível e sei que algumas coisas ditas de uma certa forma podem mudar o rumo do concorrente, fazê-lo desistir da música ou dar mais força”, reflete Piçarra, para quem tem sido “muito gratificante” ser jurado.
E se a diversão nas cadeiras rotativas nas provas cegas tem marcado o programa e o próprio Piçarra, também o tem marcado encontrar ainda hoje nos castings caras com que já se cruzou nesses corredores, antes de vencer os “Ídolos” em 2012. “Muitos dos concorrentes ainda são dessa altura. Às vezes, entristece-me que ainda não tenham conseguido, mas é de louvar que continuem atrás do que querem.”
Pontos cardeais de uma viagem ao passado
São muitos os lugares de uma infância e juventude vividas em Faro, em muitas frentes. Na sua passagem pelo Algarve para trabalhar parte do novo disco, Diogo Piçarra guiou-nos por um roteiro de sítios que mais o marcaram. Um percurso com muitas paragens para responder a pedidos de selfies, com sorrisos amistosos e alguns dedos de conversa à mistura.
Futebol Clube de S. Luís
Um clube que Diogo Piçarra traz “no coração” é o Futebol Clube de S. Luís, por onde o pai já tinha passado, muito antes dele e de o irmão gémeo largarem o karaté para se dedicarem à bola. Voltar a fazer o corredor de entrada da sede no centro de Faro, que há anos não visitava, “é recordar tudo”. Ali, vimos o menino Diogo. Percorreu as fotografias nas paredes à procura do pai e foi com gáudio e nostalgia que encontrou, sem contar, imagens suas em equipa. “Infelizmente nunca fui campeão, mas ter aqui duas fotografias para mim já é uma vitória”, destaca, orgulhoso.
Era ali o ponto de encontro para as partidas fora de casa. Lembra-se das carrinhas, dos sacos, dos lanches, tudo à porta. “Era muito giro e tenho muitas saudades do futebol. Infelizmente, o futebol ficou para trás por causa da música. Eu também não era assim tão bom e, por isso, ainda bem que surgiu a música, pela qual eu era ainda mais apaixonado.” No S. Luís, foi dos iniciados aos juniores, quando desistiu, desgastado pelos concertos e ensaios tardios dos Fora da Bóia. Agora, no S. Luís, os tempos são de responder aos pedidos de selfies. Já por Lisboa, onde mora, o futebol ainda se joga com os amigos.
Escola Secundária de Pinheiro e Rosa
A entrada na Secundária de Pinheiro e Rosa, passados mais de dez anos, fez-lhe “regressar algumas emoções”. Diogo Piçarra lembrava aqueles tempos da adolescência como “os melhores anos da vida”. “Foi onde começou tudo, as primeiras guitarradas, as primeiras músicas, a primeira paixão. É onde se passa tudo, emoções, desilusões, as primeiras experiências de tudo. Por isso, é das escolas mais importantes para mim”, confessa, nostálgico. Enveredou por Humanidades, para fugir à Matemática e porque gostava muito de Línguas, área que seguiu na universidade.
Foi nas férias grandes de final do 10.º ano que decidiu aprender guitarra. Entrou no 11.º a causar sensação, após um verão a ter aulas com um vizinho. A partir daí, a escadaria central do recreio tornou-se a zona dos intervalos da turma, passados a tocar, a ouvir música, na brincadeira. “Eu tocava guitarra e uma colega nossa cantava. Eu nem sabia que podia cantar ou que tinha voz. Nem sequer tinha esse desejo, na altura. Queria ser guitarrista”, recorda Piçarra. Só no final do Ensino Secundário é que começou a colocar a voz por cima da guitarra, quando foi desafiado a isso num concurso de talentos da escola em que participou com a sua turma e fez a primeira atuação de guitarra, no pavilhão desportivo. Na final, interpretou “Sei que sabes que sim” de EZ Special, a primeira vez que cantou ao micro.
Bar Che 60
Foi no bar Che 60, na Rua do Prior, na baixa de Faro, que Piçarra se iniciou nos concertos, como uma espécie de “infiltrado” nos intervalos do cantor Zé Maria, que ali interpretava músicas de intervenção. “Quando ele fazia uma pausa, os meus pais quase me obrigavam a ir tocar. E ainda bem, porque isso deu-me aquela coragem e muita experiência.” Também para participar em concursos de talentos contou com o “empurrão” dos pais. E valeu a insistência – a vitória à segunda tentativa nos “Ídolos”, em 2012, trouxe-lhe grande projeção.
No Che 60 tocava aquilo que aprendia na altura (como “Dunas” dos GNR) ou os temas mais pop dos artistas então em voga, como João Pedro Pais. “Notava que as pessoas gostavam da minha voz. Foi um bom incentivo perceber que ficavam a ouvir e batiam palmas. No final, vinham dar-me os parabéns.”
Piçarra percorreu vários bares e discotecas da baixa com os diferentes projetos musicais. Ali em frente, no antigo Arcádia, dado ao rock e punk, atuou frequentemente com a banda Fora da Bóia, que formou aos 17 anos, ou com o projeto tributo a Green Day.
Praia de Faro
Foi na Praia de Faro que muitas vezes Diogo Piçarra encontrou espaço para relaxar e pensar no futuro. Das últimas vezes, preparava o seu primeiro disco. “Vinha à praia só mesmo para imaginar o que é que ia fazer, como é que devia começar a minha carreira.” Chegava sozinho, de bicicleta, e parava do lado direito do areal. “Era uma viagem quase de reflexão, vinha a ouvir música, por caminhos que pouca gente conhece, por trás do aeroporto. Deixava a bicicleta, dava um mergulho e sentava-me só a relaxar, a pensar.” Já quando ia com amigos, no verão, fixavam-se à esquerda, na zona do “pessoal mais jovem”. “Era uma tarde bem passada, até o sol se pôr.”
Em Lisboa, a falta de tempo não lhe permite procurar esta ligação ao mar. Não é muito de fazer praia. “Para nós algarvios, basta ter a praia ao lado. A praia é para dar um mergulho no mar. Estar deitado na areia o dia todo é uma seca.” Na memória traz ainda os dias a jogar à bola com o irmão e o pai, o correr na areia. Os fins de semana de verão em Monte Gordo com a família alargada também lhe trazem nostalgia.