Texto de Sofia Teixeira
Fundador e CEO da empresa tecnológica americana Buffer, Joel Gascoigne ganha 276 250 dólares anuais. Stephanie Lee, diretora de operações em Singapura, ganha 86 250. Ashley Hockney, diretora de marketing, baseada em Nova Iorque, recebe um salário base de 157 443 dólares.
A empresa de 90 colaboradores leva a transparência ao limite: não só cada um deles sabe exatamente quanto ganham todos os colegas como qualquer um pode saber, já que os salários são públicos. Através do site da empresa qualquer pessoa pode aceder ao documento com a listagem de valores e com a fórmula que os apura, ao cêntimo, considerando o tipo de cargo e função, os anos de experiência, o custo de vida da localização onde estão baseados e a antiguidade na empresa.
A Buffer tem sido notícia precisamente por ser uma exceção à regra. Em poucas empresas a nível mundial a transparência é levada tão longe, e no mercado português não há nenhum exemplo parecido.
Pedro Lacerda, CEO da empresa de gestão de recursos humanos Kelly Services para Portugal e Benelux, acredita que quando a empresa expõe de uma forma clara e objetiva a relação entre as categorias profissionais e promoções, por um lado, e a parte salarial, de bónus e benefícios, por outro, tal acaba por ser revelar uma grande mais-valia. Lacerda é totalmente a favor de políticas salariais transparentes porque acredita que, no limite, levam a maior retenção das pessoas e a um vínculo mais sólido entre a organização e os trabalhadores.
Mas admite que são poucas as empresas em Portugal que o fazem porque é difícil chegar a este ponto de maturidade organizacional. Ou seja, por cá a regra é que ninguém saiba quando ganham os colegas – exceção feita para os departamentos financeiros ou de recursos humanos que processam os ordenados.
O certo é que uma política transparente tem vantagens estudadas e reconhecidas, como explica Filipa Sobral, professora da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa do Porto. “Segundo literatura académica, a vantagem mais óbvia da transparência salarial é a sua capacidade de tornar visíveis situações de discriminação salarial e, consequentemente, contribuir para a redução ou eliminação dessas discrepâncias, quando não justificadas por critérios objetivos”, esclarece.
No entanto, nada é absolutamente linear. Como lembra a investigadora doutoranda em Psicologia dos Recursos Humanos, Trabalho e Organizações, apesar das vantagens que esta abertura parece ter, nem todos nos sentimos preparados para discutir abertamente a nossa remuneração sem o sentirmos como um atentado à privacidade.
“Os estudos que se debruçam sobre a equidade ou a justiça organizacional tendem a reportar relações positivas entre a transparência salarial e a satisfação no trabalho. Porém, os estudos que se centram nas questões relacionadas com a privacidade ou com potenciais conflitos provenientes das comparações salariais, ressalvam os aspetos positivos de manter os salários sob sigilo.”
Digo-te o meu se me disseres o teu
Não é de espantar que nas empresas a discussão aberta e pública sobre vencimentos seja tabu. As empresas são feitas por pessoas e, para a generalidade delas, discutir dinheiro continua a ser considerado mau gosto. “O dinheiro é visto como um tema privado, as normas sociais ditam que não é adequado fazer perguntas sobre o salário de alguém, sobre o montante de uma compra ou o valor de umas férias.
Mesmo entre amigos próximos ou familiares, o tema ainda envolve recato”, salienta a psicóloga clínica e coach Filipa Jardim da Silva. “Tenho conhecido diversos casais que vão coabitar desconhecendo o montante do ordenado do outro e o valor que têm no banco.”
No mundo do trabalho este pudor mantém-se, pelo que lhe surgem muitas vezes em consultório clientes que evidenciam grande mal-estar laboral por questões associadas ao dinheiro. Por exemplo, pessoas insatisfeitas com o salário e que se sentem desconfortáveis em negociar, colaboradores que descobrem que estão a ser mal pagos em relação a colegas ou mesmo pessoas que são recrutadas para novos trabalhos sem nunca ousarem perguntar pelo salário, que só conhecem no primeiro dia.
“Há muitas empresas a beneficiar do desconforto de falar sobre dinheiro. E há muitas pessoas que não se estão a apropriar do seu real poder enquanto agentes ativos nas suas vidas”, alerta a psicóloga.
Como os empregadores não fornecem informação formal acerca dos vencimentos dos seus funcionários, o conhecimento dos trabalhadores depende da comunicação que estabelecem entre si. Ou seja, depende se perguntam aos colegas quando ganham – o que, como já se viu, é coisa mal encarada.
Mas há também outra questão: é certo que quase toda gente gostaria de saber o vencimento dos colegas, mas quem é que tem vontade de revelar o seu próprio vencimento aos outros? Quase ninguém. Zoë B. Cullen, da Harvard Business School, e Ricardo Perez-Truglia, da Anderson School of Management, conduziram um estudo junto de 752 trabalhadores de um grande banco e concluíram que 89% dos respondentes acredita que, se perguntar a outra pessoa quanto ganha, o colega lhe vai devolver a questão. E, destes, 50% pagaria para não ter de revelar o seu ordenado a colegas de trabalho. Ou seja, o sistema autoalimenta-se.
Filipa Jardim da Silva lembra que o “dinheiro está muito associado à autoestima e valor pessoal”, pelo que o nosso temor em partilhar o que ganhamos pode dever-se, por um lado, a “recearmos que pareça um ato de autoglorificação que desperta admiração ou inveja e mal-estar nos outros ou, pelo contrário, assumir-se como uma humilhação pública, quando ganhamos menos que as pessoas à nossa volta”.
Quem ganha com o tabu
Em alguns sítios a questão não é apenas se devemos falar em dinheiro com os colegas. A questão é se podemos. No dia 14 de outubro de 1919, a administração da revista “Vanity Fair” fez circular entre os trabalhadores um memorando intitulado “Proibida a discussão de salários recebidos entre os funcionários”. Consta que no dia seguinte o colunista e humorista Robert Benchley e outros colegas se apresentaram na redação com um cartaz pendurado ao pescoço onde se podia ler o valor dos seus salários.
Poder-se-ia pensar que hoje, 100 anos depois, este tipo de tentativa de condicionamento seria impensável, mas esse não é caso, pelo menos nos Estados Unidos. Apesar de a legislação geral proteger esse direito dos trabalhadores, as empresas privadas continuam a tentar impor cláusulas de sigilo salarial. Segundo um relatório de 2011 do Institute for Women’s Policy Research, metade dos trabalhadores americanos afirma que discutir informações salariais entre colegas é desencorajado ou totalmente proibido.
Há explicações para isso. Alguns especialistas defendem que este “segredo salarial” gera uma assimetria de informação que pode permitir à empresa economizar muito dinheiro com base no desconhecimento dos funcionários. Filipa Sobral recorre ao pensamento de Cynthia Estlund, da Universidade de Nova Iorque, para sublinhar que “quando essa transparência não existe todas as negociações salariais são, à partida, pouco eficientes dada a disparidade de informação a que cada uma das partes tem acesso, sendo isto verdade tanto para quem já está dentro da empresa e entra num processo de mobilidade interna ou progressão de carreira, como para alguém que está a chegar e a negociar o salário inicial”.
A investigadora realça que, se a transparência salarial for aplicada a todo o mercado de trabalho, “terá decerto um forte impacto na capacidade dos trabalhadores avaliarem constantemente as suas opções no mercado e, logo, nas políticas de atração e retenção de pessoas praticadas pelas empresas, para evitar uma elevada rotatividade”.
Negociar é preciso
A pergunta que se impõe é: afinal, o que é que faz com que duas pessoas com a mesma função e experiências idênticas tenham vencimentos diferentes? A resposta mais óbvia é que apesar das competências profissionais similares, uma das pessoas pode ter melhor capacidade de as “vender” ao empregador, ou seja, ser melhor negociador. Nas empresas portuguesas os candidatos têm habitualmente margem para negociação. “Os benefícios geralmente são pouco negociáveis mas, em relação ao ordenado, pela nossa experiência, quando é feita uma proposta financeira a um candidato há sempre flexibilidade para renegociar o valor em cerca de 10%”, constata Pedro Lacerda.
De acordo com o responsável da Kelly Services há três razões principais que justificam diferenças salariais entre pessoas com o mesmo cargo e função: “As empresas não têm políticas de sustentabilidade corporativa que definam isto, o que significa que deixam ao critério do diretor-geral e do diretor financeiro decidir os salários. Por outro lado, em Portugal a regulação nunca foi demasiado restritiva em termos de fiscalização desta questão. Por fim – e este é um tema um pouco tabu – pode depender da relação do funcionário com a chefia: se o trabalhador se dá muito bem com o chefe, mais facilmente ele vai ao encontro do salário que a pessoa considera justo”.
Tudo isto leva a que haja efetivamente salários díspares entre colegas com funções iguais, o que pode levar a surpresas muito desagradáveis, sobretudo quando o que recebe menos descobre. “Alguém nesta situação tenderá a sentir-se profundamente revoltado, injustiçado, frustrado e quiçá traído”, revela Filipa Jardim da Silva. A psicóloga acredita que nestes casos a comunicação assertiva é a solução: será importante não reagir impulsivamente, identificar as próprias emoções e a causa do desconforto e depois pedir uma conversa com a chefia.
“É produtivo que a informação seja apresentada da forma mais neutra possível. Que o foco seja o ‘nós’, equipa ou empresa, e não tanto ‘eu’ ou ‘ele’. É também fundamental fazer um esforço para manter alguma abertura de pensamento e nesse sentido tentar compreender o que a outra parte tem a dizer sobre o assunto. Mais do que a empresa igualar o salário ou não, a pessoa poderá compreender o que justifica esta situação, o que regula estas decisões e qual a política de progressão e reconhecimento da organização.”