Devem os casais partilhar palavras-passe?

Filipa Alves da Mota tem 33 anos. O marido Tiago Mota tem 31. Estão casados há dois anos. Ambos tinham contas individuais de Facebook e optaram por criar uma nova, em conjunto. Juntaram o primeiro nome de ambos e estava dado o mote para a partilha. “O email também é o mesmo. Sabemos também as ‘passwords’ dos telemóveis de cada um apesar de não acedermos aos mesmos. Se precisarmos de usar o dispositivo um do outro, avisamos antecipadamente, por uma questão de respeito.”

Deve ou não o casal saber as palavras-passe um do outro? Que implicações tem o acesso livre ao mundo íntimo e individual do(a) companheiro(a)? Não há regras estabelecidas.

“Enquanto terapeuta de casal não sou incentivadora de as pessoas terem acesso livre às coisas dos outros porque cada um tem direito ao seu próprio espaço, aos seus segredos, ao seu mundo mais privado”, explica Rosa Amaral, psicóloga clínica, a fazer intervenção familiar e do casal na Clínica Europa, em Carcavelos. “Cada pessoa deve ter a sua privacidade e esse pedacinho de si próprio que não é acessível ao outro.”

O que funciona para algumas pessoas pode não resultar necessariamente com outras. No início de um relacionamento há maior desconhecimento e dúvida. A confiança adquire-se com o passar do tempo. “Se os casais optarem por dar livre acesso com a tranquilidade suficiente por se terem estabelecido hábitos de confiança, e se isto acontece de forma natural, não há grande problema. Se por outro lado houve essa exigência e foi algo imposto, já entramos num patamar diferente, de uma relação que deixa de ser saudável para passar a ser doente”, defende a psicóloga clínica. Pode ser então um sinal de que algo não está bem.

Filipa confessa que já foi criticada pelas opções que tomou. “Não vejo nada de mal na partilha de ‘passwords’, é uma opção de cada um. Não critico as opções dos outros mas sou alvo de comentários constantes”, conta. No caso do seu relacionamento, considera que é um voto de confiança.

“Não nos importamos com as opiniões. Podem até considerar que o fazemos por uma questão de controlo mas achamos precisamente o contrário. Significa que não temos nada a esconder….”

Os problemas só surgem quando um deles quer fazer uma surpresa ao outro. “Como as mensagens são vistas por ambos, se queremos organizar algo ou comprar um presente, não podemos usar essa conta ou fazê-lo através do Facebook”, acrescenta.

O bom senso é rei
Sendo verdade que, numa relação, a liberdade nunca será total, havendo cedências a fazer de parte a parte, o bom senso deve reinar. Esse é um dos apelos que Rosa Amaral faz nas suas consultas. Hoje em dia, a maioria das pessoas traz o mundo no telemóvel, que é o mesmo que dizer que tem no aparelho as várias redes sociais e também os emails pessoais e profissionais.

“Mas não é pelo facto de se optar por não ter nenhum código ou ‘password’ que isso implique que o outro aceda indiscriminadamente. Não há nada a esconder, existe este desbloqueio, mas há o pressuposto de que o outro também não consulta ou não acede. Esta é a maior liberdade que se pode ter”, defende a psicóloga clínica.

Quando se exige ao outro acesso ilimitado, não demorará muito até que a situação comece a escalar para outros tipos de problemas.

“Se dizem uma vez que sim, provavelmente vão ter novos pedidos de acesso por parte do(a) companheiro(a) que poderá querer ver ainda mais”, considera Rosa Amaral.

A psicóloga clínica chega a receber casais em consulta que admitem ter uma aplicação que permite ver tudo o que o dispositivo do(a) companheiro(a) contém a partir do seu e com o devido consentimento. Existe também quem aceda ao dispositivo do outro sem a devida autorização, e aí já se poderá estar a entrar numa situação de violência conjugal ou no namoro.

O direito à privacidade é individual, cada casal terá as suas opções e decisões, mas a psicóloga clínica defende que todos precisamos de um espaço secreto na nossa vida: pequenas coisas, segredos, fantasias.

“Há que deixar as relações evoluírem partindo dos pressupostos de dar espaço ao outro, das regras de educação, do respeito mútuo”, conclui.

Quando o controlo é violência
Só em 2016, a PSP recebeu 1787 casos de violência no namoro entre jovens e adultos. Os dados foram avançados no âmbito do Programa “Escola Segura”, registando-se um aumento em relação a anos anteriores.

A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) realiza algumas ações de sensibilização nas escolas e divulga regularmente mensagens de alerta considerando violência social quando o/a namorado/a acede sem consentimento às contas de correio eletrónico, à página de Facebook ou consulta mensagens de telemóvel.

“Há pessoas que ficam reféns destas situações porque uma pessoa que se sente controlada vai-se sentindo cada vez menos livre e mais presa. Isto vai-se tornando complexo”, explica Rosa Amaral.

A APAV alerta para um estudo realizado em Portugal com 4 500 jovens de idades entre os 13 e os 29 anos, que constatou que um em cada quatro relataram ter sido vítimas de algum tipo de conduta abusiva pelo/a namorado/a.

A violência no namoro integra-se no quadro legal do crime de violência doméstica, no artigo 152.º do Código Penal. A associação chama à atenção para o facto de existirem “formas mascaradas de exercer poder e controlo sobre a outra pessoa que podem ser totalmente impercetíveis, exprimindo-se, por vezes, sob a forma de preocupação com o relacionamento e o bem-estar do(a) parceiro(a), podendo ser confundidas como manifestações de amor”.

As vítimas de violência no namoro podem procurar ajuda através da Linha de Apoio à Vítima 116 006 (chamada gratuita, das 9 às 19 horas], num dos gabinetes da APAV ou por email para [email protected]. Para mais informações, aceda ao portal da APAV.