De vírus a cancro

Dez anos depois de saber que tinha sido infetado pelo VIH, Amílcar Soares foi informado que “aquelas dores” eram de uma doença oncológica (Foto: Orlando Almeida/Global Imagens)

Texto de Sofia Filipe

O “silencioso” aparecimento do cancro do colo do útero mudou a vida de Ana Costa. “Fui encaminhada para o IPO de Lisboa e, em semanas, fiz uma histerectomia radical”, lembra esta lisboeta de 55 anos. Não tinha a garantia de que sobreviveria. Porém, mantinha uma atitude positiva, sobretudo para não afetar ainda mais os filhos, na altura, com 15 e 10 anos.

“Foi difícil para eles e para mim. Fiquei de baixa, os rendimentos diminuíram, perdemos a casa e, devido às sequelas, não consegui retomar a minha atividade profissional como formadora, que exigia mobilidade e saúde a 100%”, conta, desabafando que está incapacitada para trabalhar, mas é nova de mais para se reformar. Decidiu, por isso, concorrer a uma nova licenciatura na área da gestão.

A notícia do cancro é de 2007 e terá sido causado pelo vírus do papiloma humano (HPV). Admite que nada sabia acerca desse vírus nem do tumor que a afetou. “O tema HPV era tabu e estava de certa forma embrulhado no ‘pacote’ do cancro do colo do útero. Creio que existia muito preconceito e ignorância. Aliás, ainda existe”, comenta.

“As citologias tinham resultado negativo, mas era falso-negativo. Também estive meses a ser tratada a uma suposta ferida no colo do útero, que na verdade era uma neoplasia”, diz, o que justificou, dessa forma, o atraso no diagnóstico. Depois disso, “a prioridade foi sobreviver”.

A comunidade científica desconhece muitas das causas relacionadas com o aparecimento de um cancro. No entanto, reconhece a importância de fatores como o tabagismo ou a hereditariedade. Algumas doenças infeciosas podem também estar na origem de um tumor maligno.

Mário Cunha é responsável pelo Laboratório de Virologia do IPO de Lisboa e, no tocante ao HPV, refere o “excelente trabalho” desenvolvido pela equipa do médico alemão Harald zur Hausen, reconhecido em 2008 com a atribuição do Prémio Nobel da Medicina pela descoberta do papel do HPV no processo de carcinogénese do cancro do colo do útero.

O HPV, os vírus das hepatites B e C (VHB, VHC), o vírus Epstein-Barr (EBV), o vírus leucemia células T do adulto (HTLV) e o helicobacter pylori “são os principais agentes infecciosos que provocam cancro”, observa o virologista, frisando as diferenças em função do género. “Nas mulheres, cerca de 20% de todos os cancros são provocados por vírus, sendo o HPV o predominante (50%) seguido do helicobacter pylori (26%), hepatites (15%) e EBV (7,6%). Nos homens, aproximadamente 17% dos cancros são originados por vírus: o helicobacter pylori (47%) é o principal e, depois, surgem as hepatites (35%), o EBV (14%) e o HPV (4,3%).”

Segundo Mário Cunha, os vírus das hepatites estão relacionados com o hepatocarcinoma; o EBV com os cancros de células epiteliais (nasofaringe e gástrico), mas também com vários linfomas (Burkit, células B e células T); e o HTLV está ligado ao desenvolvimento de leucemia/linfomas de células T. Estão ainda associados à doença oncológica o herpes humano tipo 8 (HHV-8), o poliomavirus células Merkel (MCV) e o vírus da imunodeficiência humana (VIH).

O primeiro é o agente responsável pelo sarcoma de Kaposi e o MCV pode causar um tipo de cancro de pele. O VIH não provoca cancro diretamente, mas sim imunodeficiência, ou seja, “infeta e destrói as células T do sistema imunitário, promovendo o aumento de risco de desenvolver diversos tumores, tais como linfomas, sarcoma de Kaposi ou cancro do colo do útero”.

Amílcar Soares, 65 anos, não dormia nem comia devido a “uma forte dor na zona da cintura”, que compara a “uma corda a apertar”. Perdeu 42 quilos e, até ser detetado o linfoma não-Hodgkin e respetiva localização (entre o rim e o fígado), foi alvo de “um certo preconceito”.

“Fiz imensas ecografias, acusou fígado gordo e diziam que era da ingestão de bebidas alcoólicas”, recorda o ativista de profissão, afirmando que apenas bebe “socialmente”. Um episódio vivido em 1995, um ano após ter perdido o companheiro e ser atirado para uma depressão. “As questões psicológicas também influenciam o funcionamento do sistema imunológico, embora sejam descuradas pelos médicos”, sublinha.

Voltando a 1995, dez anos depois de saber que tinha sido infetado pelo VIH, Amílcar foi informado que “aquelas dores” eram de uma doença oncológica, após realizar uma bateria de exames e análises. Passou a ser acompanhado em Hematologia, mantendo as consultas de Infecciologia. “Nem uma semana passou desde o diagnóstico até ao início do tratamento. Deixei de ter dores logo depois da primeira (de oito) dose de quimioterapia”, diz o fundador da Associação Positivo, que, desde 1993, dá apoio a pessoas que vivem com VIH, em Lisboa.

Emília Valadas, diretora da Clínica Universitária de Doenças Infecciosas da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL), menciona que a “evidência epidemiológica aponta para a perda de controlo imunológico no que diz respeito às infeções virais oncogénicas” nos seropositivos. Contudo, ressalva que “as causas de aparecimento do cancro são múltiplas e, na sua maioria, mal conhecidas”. Também infeciologista no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, aponta uma mudança.

“Os infeciologistas estavam habituados a lidar com urgências e emergências. A infeção por VIH mudou esse paradigma. Hoje, os doentes infetados por este vírus podem viver, em países desenvolvidos, tanto tempo como as pessoas não infetadas. Deixámos de ter o doente agudo para ter o doente crónico”, avança a docente da FMUL, acrescentando que a epidemiologia do cancro mudou desde o aparecimento dos fármacos antirretrovirais usados no tratamento da infeção por VIH. “Antes da terapêutica eficaz, o risco de desenvolver sarcoma de Kaposi era 2 800 vezes mais elevado (comparado com os não infetados), dez vezes mais para o linfoma não-Hodgkin e três vezes mais elevado para o cancro do colo do útero.”

Para Emília Valadas, é fundamental a multidisciplinaridade na abordagem terapêutica destas pessoas. “No caso do cancro, o desafio é enorme. Passará sempre pela tentativa de prevenção e incentivo de uma vida saudável, mas também pelo diagnóstico precoce e pela excelente e rápida articulação com a Oncologia”, frisa a especialista. Mário Cunha fala da prevenção primária (vacinação) e secundária (rastreios) e salienta que “apenas existem vacinas contra os vírus da hepatite B e o HPV, ambas disponibilizadas através do Plano Nacional de Vacinação”.

Amílcar Soares foi seguido mensalmente em Hematologia, vigilância que passou a trimestral, a semestral e depois a anual. Há três anos deixou de ser necessário ter essa consulta, embora continue a ser acompanhado em Infecciologia de dois em dois meses e a manter cuidados inerentes à idade e à condição serológica.

De um acompanhamento mensal, Ana Costa passou para periodicidade semestral, anual, bianual e, por fim, de cinco em cinco anos. Diz que as sequelas a remeteram para outras especialidades e que passou a ter dificuldade de locomoção, entre outras, o que vê como um preço justo a pagar pelo sucesso da cirurgia. “A verdade é que sobrevivi e, até hoje, sem recidiva. É o que conta. O resto é secundário.”