Daniela. O reencontro com a última menina que estudou na escola de Sambade

Foto: Leonel de Castro/Global Imagens

Texto de Ivete Carneiro

2006. Está frio, é fevereiro, a encomenda da Redação é correr atrás do fim da história de infâncias como a de Daniela, ainda não sabíamos quem era Daniela, só que era a única menina da sala. Era a única aluna da turma. Era a única criança da escola. E era a última. Parámos em Sambade, no limite do frio mais frio que é daí para cima, pelas curvas da Serra de Bornes, a caminho do mais belo abraço a Trás-os-Montes.

Foi no ano em que Lisboa mandou encerrar centenas de salinhas, porque o longe faz-se perto quando não há gente para encher bancos da escola do largo. Daniela ali está, dez anos, a esforçar-se estupidamente num exercício qualquer para evitar olhar para os forasteiros, que diabo, a vida dela é só ela e Hermínia, Maria Hermínia Tiago de Sá Vilares, Vilares da aliança. E, naquela altura, Boneca, a cadela que a avó lhe confia enquanto viaja para algures, a cadela que a segue, fiel, e fica sentada no sol que lava as escadas de granito da velhinha escola de Sambade, em Alfândega da Fé.

2019. Está calor, é junho, a encomenda é pessoal e consiste em correr da Serra de Bornes, do tal abraço, atrás de um punhado de cerejas, correr entre elas, rubras, insultuosas de obesas, atrás de uma meta. E de repente assalta-nos Daniela e a Boneca e o crucifixo, era o que havia na salinha de Sambade, um crucifixo e carteirinhas em U, um móvel a envelhecer na solidão da ausência de alunos. Sambade fica no caminho da meta e apresenta-se em letras prateadas, grandes, parece cidade.

Diz que quase era sede de concelho, só perdeu para Alfândega por obra do diabo, que Sambade tinha tudo, tinha farmácia, tinha escola, tinha Correios e Casa do Povo com posto médico. Tinha até a água que mandava para Alfândega. Diz que um dia chatearam-se, os de cima, de Sambade, e os de baixo, de Alfândega, e que os de cima cortaram a água aos de baixo. Está abonecada a Sambade de hoje, onde a escola já não é, cresceu para museu e centro de artes e está linda, no topo da sua minúscula colina em frente ao coreto que fica ao lado da igreja.

2019 ainda. Está de morrer, é julho, a encomenda da Redação é correr atrás de uma história simples, como a daquele velho que se senta no trator para ir atrás do irmão com quem não fala há anos, porque o irmão está para morrer. É ir atrás de Daniela. Porque Daniela veio atrás de nós, quando leu que nos povoara a memória na descida corrida de Bornes. Daniela é do tempo em que havia turmas com uma só menina e a professora.

Daniela é do tempo das redes sociais, do tempo em que se pode encontrar o menino feito velho que atirou uma mensagem numa garrafa borda fora, 50 anos para trás. Daniela foi identificada na partilha do texto sobre a corrida às cerejas, porque a imagem que a ilustrava era dela, ela e o nome dela numa lousa que já não existe, ela e Hermínia entre raios de sol de inverno, ela e a Boneca, sentada sob o quadro porque Hermínia teve pena do frio que podia a cadelinha, cucha em trasmontano, sentir e convidou-a a sentar na imensidão de uma sala de aula vazia.

Daniela perdeu a timidez. Mudou-se para Bragança, que a vida em Alfândega é isto, crescer e partir. Em 2006, um autarca da região bradava que não era o fim das escolas que mataria Trás-os-Montes. Era o fim do emprego. Trás-os-Montes soçobra, quase só emprega nos grandes centros. Daniela Pires, 23 anos, é auxiliar de ação médica na Unidade de Cuidados Continuados da Santa Casa da Misericórdia. Tudo o que tinha menos a ver com o audiovisual que escolheu para o Secundário que terminou, religiosamente, no centro escolar de Alfândega.

A vida de Daniela passou, em 2006, a fazer-se de viagens de autocarro até à vila, a fazer-se de meninos que não conhecia. Conta-nos isso, tudo, ao som da ilógica banda sonora de uma comissão de festas, junto ao bar aberto sob o coreto de Sambade. Quim Barreiros diz que vai dar uma (volta por aí) e Daniela diz que não foi fácil. Não conhecia ninguém. “Mesmo ninguém.”

Nem meninos, nem professor, nem as paredes da escola. Não tinha Hermínia toda inteira para as dúvidas dela. Não tinha Sambade. Tinha só uma socialização diferente. A vida deixou de ser só ela e as idas ao café com Hermínia, porque estavam sozinhas e um café sempre soube melhor com companhia. Deixou de ser a casa das bonecas da pré-escola ali ao lado da sala dela com o seu crucifixo.

Hermínia e Daniela, hoje, sob o velhinho crucifixo. É o que resta, só, da sala que era só delas há 13 anos, em baixo, no mais belo retrato do despovoamento do interior. (Fotos: Leonel de Castro/Global Imagens)

“Nunca sobrava tempo”, apesar de serem só elas. Hermínia junta-se-nos. Construiu casa em Sambade quando, em 2003, a colocaram ali, num sítio que, pensou – e bem – ninguém quereria. Seria estável, não fossem os desígnios de Lisboa. Fechou Sambade. Dois anos antes fechara os Vales.

Hermínia é uma encerradora em série. Lembra-se que quando deu a última volta à chave, foi de férias. É preferível pôr sol nas memórias tristes. E sorri por Daniela. “Foi bom para ti. Estavas a precisar disso, de meninos da tua idade.” Diz Hermínia, que foi tanta vez professora de várias classes em simultâneo, o que até que puxava por eles de certa forma. Afinal, na escola pequena com uma mão cheia de petizes, podia ser melhor. Na escola grande “há muitas paredes”, muito por onde esconder o desinteresse.

Foi bom. Mas foi estranho também. Na escola grande agarraram em todas as Danielas de todas as Sambades e fizeram uma turma, era o 4.º C, dava para três turmas de 4.º ano, um luxo. Hoje, há, todos os anos misturados, pré e tudo, 437 alunos em Alfândega da Fé. Uma mão cheia de muito pouco para 321 quilómetros quadrados de concelho, o deserto que ecoava quando corríamos atrás das cerejas e toda a gente nos dizia olá, porque é fácil dizer olá a toda a gente no interior desertificado de Portugal, este interior a 183 quilómetros do Porto inchado de tudo.

O Plano Estratégico Educativo Municipal faz as contas em 56 páginas. A densidade populacional de Alfândega vem descendo, está nos 14,3 habitantes por quilómetro quadrado num país que fixa a sua média nos 111 e uns trocos. Total, 4 607 almas, 389 até aos 14 anos, quase 1 500 acima dos 65.

O retrato que todos sabem, o sítio onde gritar para o ar é gritar para ninguém, porque não há quem oiça, porque nascem cinco putos por mil pessoas por ano, 20 e picos, diz que agora serão mais, que uns contratos passaram a efetivos e até houve quem viesse de fora em busca de emprego, mas não de riqueza, que o poder de compra, ali, é só 64% do nacional e a certeza é a de que nenhuma criança terá uma sala de aula nas aldeias, de que poucos seguirão para o Superior, que fica, no mínimo, em Bragança e é demasiado caro para a maioria. Diz o Plano.

Daniela esqueceu depressa o sonho da fotografia, porque Bragança foi o escape para trabalhar. Não. Não é um escape. É o ter de ser. Agora está lá bem, tem vida e casa e amigos, ainda que preferisse não trabalhar por turnos. “Há dias em que não sei que dia é.” Mas tem “um sítio que está garantido”. E um carro para fugir para Sambade, sempre que for caso.

Garantido, palavra almejada. Pouco o é. Ricardo Pimentel, 38 anos, sabe que o garantido dele é a EDP de Bragança, mas a teimosia, a ele, fá-lo ir e vir. Fazia. Agora está de licença sem vencimento ou lá o nome que a coisa tem, porque é chefe de gabinete da presidente da Câmara de Alfândega, Berta Nunes. Mas é, sobretudo, presidente da Junta de Sambade. E foi aluno da salinha de Daniela, com aquele crucifixo gigante. “Os miúdos davam vida à aldeia, passavam aqui o dia todo, tinham aqui atividades, até um teatro tinham, depois da escola, à tarde. E havia a catequese. Tudo isso acabou quando os miúdos foram para Alfândega. Ficou a catequese.”

Perderam-se os campos da bola e a picardia entre o bairro de cima e o bairro de baixo, mantém-se o da escola, que era só raízes e mais chutos nelas do que na bola, ainda lá gritam jovens porque é verão e é férias e isto incha de vozearia, a somar a Quim Barreiros e à alegria da cerveja fresca porque estão para lá de 36 graus e o céu ficou baixo e denso. O deserto “tem a ver com emprego. Os jovens procuram oportunidades fora”.

O autarca é teimoso nas convicções. “Haver crianças… se calhar pensariam de outra forma se passassem cá mais tempo, pensariam em ficar, ir estudar para fora mas com a ideia de voltar. Ir estudar para Alfândega… em termos de apanhar um afeto maior pela aldeia, perdeu-se…” Da geração dele conta umas duas mãos cheias que ficaram, parte deles a viver na vila. Da sua geração, Daniela não sabe. Como os outros, foi.

Daniela cresceu, venceu a timidez e emigrou para Bragança. Atrás de um emprego. (Foto: Leonel de Castro/Global Imagens)

Berta Nunes acredita que podia ter sido diferente, na passagem dos anos. Podia ter havido duas ou três aldeias a acomodar alunos mais próximos. “Não foi esse o entendimento” em 2006, ainda ela era oposição às decisões. “Acelerou-se um movimento que devíamos estar a contrariar”, porque com os meninos na vila, os pais vão atrás para estar perto. Da vila saem para as cidades, daí para o estrangeiro. “Não digo que não acabaria por acontecer”, admite a autarca, médica de formação. Porque a tendência – lá está – é ir atrás do emprego, especialmente do emprego mais qualificado. E esse está na urbanidade. O despovoamento é reversível? Se calhar não.

Voltam em agosto, mais apertados à volta do dia 15 que é o dia grande de Sambade, todos, Daniela também, que agora até pondera, que já ganha, investir no Ensino Superior. Na enfermagem. A volta é completa, “a vida levou-te a ver aquilo de que tu gostas na verdade”, é Hermínia agora, que ficou com a casa ali, apesar de a terra dela ser Macedo de Cavaleiros e de ser lá que ainda dá aulas, o mundo dos professores é um pouco como o do interior de Portugal, perdido no território.

Sentam-se, ambas, sobre a cama antiga trazida para a sala que era delas e que hoje é museu rural. Não sobra nada do que era. O quadro, as cadeirinhas pequeninas, o móvel velho e a fotografia quase sépia de uma turma de 23 sorrisos, era tão antiga já em 2006. Sobra o crucifixo. É ele, o mesmo.

Daniela, e se te perguntarem donde és? “Sambade. Sempre. É o cantinho encantado.” Boneca cumpriu o tempo que a vida lhe destinou. Ficou imortalizada num dos mais belos retratos do Portugal esvaziado. Numa história simples, tão simples como a de um velho a atravessar a despovoação sentado num trator.