Da cozinha ao sexo e à escola: o movimento “slow” está em quase tudo

Foto: Gerardo Santos/Global Imagens

É possível que no preciso momento em que está a ler estas linhas tenha o telefone por perto para responder a qualquer chamada de trabalho ou espreitar os e-mails que vão caindo. É provável que o espere um dia tão cheio que terá de ler estas páginas na diagonal, para seguir a correr para o próximo compromisso. E que, com as pressas, até tenha feito uma refeição tão rápida que mal deu para sentir o sabor da comida. Pois esqueça. Aqui a ideia é pôr um travão à correria desenfreada dos dias. Eis o “movimento slow”.

Slow de lento, de vagaroso, de pausado. Sem qualquer conotação pejorativa à mistura. “A ironia é que, ao vivermos numa permanente corrida contra o tempo, estamos a desperdiçar tempo em grande escala. O movimento slow é uma reação à imposição de que mais rápido é sempre melhor. Mas a filosofia slow não passa por fazer as coisas a passo de caracol. Passa antes por tentar fazer tudo no tempo certo. É bem mais profundo do que fazer as coisas mais devagar”.

A explicação, em jeito de resumo, é de Carl Honoré, jornalista canadiano que é uma espécie de guru, à escala internacional, dos movimentos slow. “Na altura em que comecei a falar disto, havia zero entradas no Google. Hoje há milhões”, conta à “Notícias Magazine”, para reforçar a ideia de que esta é uma tendência em crescendo.

“Ao vivermos numa permanente corrida contra o tempo, estamos a desperdiçar tempo em grande escala. O movimento slow é uma reação à imposição de que mais rápido é sempre melhor”

Vale a pena recuar aos primórdios, ainda assim. Mais concretamente ao ano de 1986, quando o italiano Carlo Petrini e um grupo de ativistas se juntaram na escadaria da Piazza di Spagna, em Roma, para se manifestarem contra a abertura de mais um restaurante da cadeia McDonald’s.

Face à disseminação da fast food, batiam-se pela primazia da cozinha tradicional e regional e a aposta em plantas, sementes e gado característicos dos ecossistemas locais. Nascia assim a “slow food” (comida). Depois, foi ver uma corrente aplicada à gastronomia fazer-se filosofia de vida e derivar para quase tudo o que é área. Slow ageing (envelhecimento), slow cities (cidades), slow parenting (paternidade) e por aí fora, numa rede que, atualmente, já chega a áreas tão diversas como a economia, as viagens, o cinema, o sexo ou o próprio jornalismo. Enquanto isso, o “slow” espalhou-se pelo Mundo. E Portugal não foi exceção.

Chegou ao nosso país há mais de uma década, algures em 2008. Por essa altura, Raquel Tavares trabalhava para o programa “Novas Oportunidades” e sentia-se cada vez mais afundada na imensidão de trabalho que tinha. “Deparei-me com uma situação de ter 400 processos de pessoas para gerir e com uma enorme sensação de frustração, porque era suposto fazer um trabalho personalizado e isso não se coadunava com o facto de serem tantos”, recorda.

Depois, foi juntar a isso o facto de ter lido um artigo sobre o movimento slow. Seguiram-se os e-mails trocados com Carl Honoré (o tal jornalista canadiano). Até que, meses depois, já em 2009, nasceu, pela mão de Raquel Tavares e de um grupo de amigos – todos voluntários – , a associação “slow movement Portugal”.

Raquel Tavares, fundadora da Associação Slow (Foto: Gerardo Santos/Global Imagens)

“Temos trabalhado muito na área da slow school [escola]. A Câmara de Arruda dos Vinhos, onde temos a nossa sede, cedeu-nos uma antiga escola primária, com três ou quatro salas, e temo-nos dedicado a experiências educativas em modo slow, que são muito diferentes da escola normal. Desde logo pelo espaço, porque está mais organizado como uma casa do que como uma sala de aula. Além de que é um ensino inserido na natureza, que inclui muitas caminhadas e poucos materiais tradicionais, como as habituais fichas”, explica Raquel.

Mas também têm apostado no “slow travel”, que passa por organizar viagens com tempo de sobra e destinos menos turísticos. “O slow vai muito além do que é ser lento e do que é ser rápido. O slow não é necessariamente lento. Se estamos duas horas numa fila porque o trânsito está a andar muito devagar, mas por dentro estamos super acelerados e stressados, isso claramente não é slow”, alerta.

“Se estamos duas horas numa fila porque o trânsito está a andar muito devagar, mas por dentro estamos super acelerados e stressados, isso claramente não é slow.”

Outro mal-entendido comum é assumir que o movimento slow se confina à esfera pessoal, avisa Raquel Tavares. “Há outra vertente mais macro, ligada às esferas social e ambiental. Por exemplo, se arranjamos um óleo de massagem que nos faz sentir muito relaxados, mas é produzido por crianças ou por adultos em condições de trabalho difíceis, isso não é slow. Choca com os princípios do movimento.”

Os mesmos princípios que se aplicam à “slow food”. “O produto tem de ser bom (em termos nutricionais), limpo (do ponto de vista das práticas agrícolas que dão origem aos produtos, da manutenção da biodiversidade e do cuidado com o solo) e justo – do ponto da vista da equidade do rendimento e da transparência das práticas negociais.”

Rui Rosa Dias sabe do que fala. É o presidente da Slow Food Porto, criada em 2014. Além de promover uma filosofia alimentar distinta, centrada na “espiritualidade do alimento, na socialização e no conhecimento”, a associação abraça também projetos internacionais, lançados pelo movimento slow food à escala global. Como o “ark of taste” (a arca do gosto).

Rui Rosa Dias preside à Slow Food Porto. Além de promover uma filosofia alimentar distinta, a associação, criada em 2014, abraça também projetos internacionais (Foto: João Manuel Ribeiro/Global Imagens)

“Consiste em catalogar produtos típicos de determinadas regiões, que tenham elementos distintivos ou possam estar em vias de extinção. Catalogamo-los na arca do gosto e passam a figurar em todos os locais onde a slow food está presente, como um produto de excelência”, salienta Rui Dias, igualmente professor universitário de marketing agroalimentar no IPAM.

Mas também há o “presidium”, em que se tenta encontrar quem ainda saiba preparar determinados pratos entretanto perdidos e recuperar a tradição. Ou o “chef alliance”, um projeto internacional agregador de chefs que sigam os preceitos da slow food.

Da comida para a moda e para história de Ana e Sara Mateus, duas irmãs da Benedita (vila do concelho de Alcobaça) que, em setembro de 2017, se aventuraram numa marca de acessórios de moda ao ritmo “slow fashion”. “Herdámos do nosso pai uma fábrica com 40 anos, que faz malas em pele para outras marcas. Por isso, habituámo-nos a lidar de perto com a correria da fast fashion”, aponta Ana Mateus.

“António – Handmade story”, a marca criada pelas duas designers há quase ano e meio, é precisamente o oposto dessa vertigem furiosa do tempo. “Queríamos falar de amor, do nome da nossa família. Contar a história do nosso pai. Daí o nome António. E cada modelo tem o nome de um elemento da nossa família.” A esta marca em jeito de homenagem há que juntar as preocupações ambientais, tão típicas dos movimentos slow.

Ana e Sara Mateus, duas irmãs da Benedita, vila do concelho de Alcobaça, que em 2017 se aventuraram numa marca de acessórios de moda ao ritmo “slow fashion” (Foto: Henriques da Cunha/Global Imagens)

“A maior parte das peles são de curtimenta com crómio e contêm químicos nocivos para o ambiente. Nós usamos pele de animal, com curtimenta vegetal. Por coincidência, o nosso pai já usava estas peles com tratamento vegetal há 40 anos”, orgulha-se Ana Mateus. A lógica slow estende-se aos funcionários que, assegura a designer, não são pressionados “a vomitar produto” para singrar no mercado.

“Cada produto leva o seu tempo. Uma mala pode levar até seis horas a ser feita. A ideia também é que as pessoas façam uma compra consciente: que em vez de comprarem uma mala por mês, comprem uma que vai durar a vida toda.”

Afinal, a filosofia também é isso, um manifesto contra a efemeridade das coisas e o frenesim da rotina. Uma tendência passageira? Ou uma resposta à vertigem de uma sociedade que se especializou em correr por tudo e por nada? “Estamos a caminhar para um histórico ponto de viragem. Ao longo de 150 anos, tudo se tornou mais rápido e para muitos a velocidade era uma coisa boa. Mas, nos últimos anos, voltámos a sentir necessidade de abrandar. O movimento slow não é uma moda sobre a qual se lê num jornal de domingo e dois meses depois desaparece. Acredito que é uma filosofia poderosa que pode mudar o mundo”, remata Carl Honoré. Nunca o ditado “devagar se vai ao longe” fez tanto sentido.