CP: viagem em carris desalinhados

Foto: Sara Matos/Global Imagens

Texto de Pedro Emanuel Santos

Estação ferroviária de São Bento, tarde soalheira de um dia de semana. Os turistas, como quase sempre, ocupam em massa o centenário edifício histórico do Porto, projetado pelo arquiteto José Marques de Silva (1869-1947) e postal da cidade. Enquanto alguns se deslumbram com a enorme parede de azulejos que retratam momentos da História de Portugal, outros tentam decifrar e interpretar o painel que anuncia chegadas e partidas e que antecipa a entrada no cais.

Quem tem composição com bilhete marcado de ida vê-se atrapalhado e confuso. Por mais que tente, é impossível que não perceba o que para ali vai de errado. Pudera, pouco passa das 13 horas e só há informações sobre comboios que partiram até às… 12 horas. “Não entendo nada”, solta um atarantado casal de brasileiros, mochila às costas, preocupação estampada no rosto.

Esclarecidas as dúvidas, os dois entram na composição que os levará até à Estação de Campanhã, onde apanharão o Alfa Pendular com destino a Lisboa. Durante a viagem de quase três horas até à capital vão saber que a casa de banho de uma das carruagens está impedida porque avariada e que outras apresentam níveis de limpeza pouco apresentáveis. No bar, a falta de alternativas alimentícias é evidente. Há sandes, chocolates e pouco mais. Sopa, como pedem, nem uma. Refeições quentes também não.

E o acesso à internet é intermitente, com a rede wi-fi a quebrar com regularidade. “A disponibilidade de wi-fi não depende apenas dos equipamentos e soluções tecnológicas instalados. Em zonas sem cobertura de rede pelos operadores, conforme acontece em vários pontos da rede ferroviária nacional, o wi-fi não está, naturalmente, disponível”, argumenta fonte oficial da CP. Quanto ao resto, está em curso um processo de remodelação das dez unidades de comboios Alfa Pendular, cuja conclusão está prevista para “os primeiros meses de 2020”.

A boa notícia é que, apesar de todas as atribulações, a ligação cumpriu os tempos previstos inicialmente. Desta vez não houve atrasos, comboios parados, motivos para cabelos em pé de esperas em vão ou adiadas. O Portal da Queixa (PdQ), página online que acolhe reclamações de consumidores em relação a diversos serviços, tem na CP cliente habitual. Entre abril de 2018 e abril deste ano, as reclamações subiram 82%, atingindo um máximo de 617. Analisadas as origens dos principais problemas, percebe-se que a falta de cumprimento de horários é motivo principal, assim como a supressão de ligações ou a escassez de condições encontradas no interior dos comboios.

“Das mais de 600 reclamações recebidas nos últimos 12 meses, apenas 14 estão dadas como resolvidas”, aponta criticamente o PdQ. A CP defende-se e alega que o Índice de Regularidade, pelo qual são monitorizados e avaliados os seus serviços, registou, em 2018, os 97,02%. “Este ano, até abril, o índice regista 99,5%”, diz a mesma fonte oficial da empresa.

Um também recente relatório da Autoridade da Mobilidade e dos Transportes sobre o estado da ferrovia, datado do passado mês de março, foi claro ao sublinhar que os comboios em Portugal “passam cada vez mais tempo parados.” A manutenção dos equipamentos está na base de tão prolongadas indisponibilidades, com uma média de 19% de carruagens inoperacionais por não se encontrarem devidamente preparadas para circulação e de 16% de automotoras e locomotivas nas mesmas condições. Ou falta delas. “Por dia, cerca de uma em cada seis está imobilizada”, exemplifica o estudo.

Foto: Rafaela Almeida/Global Imagens

“A idade do material circulante implica maiores necessidades de manutenção e a ocorrência de avarias mais frequentes. Assim, os tempos de imobilização em oficina, quer para reparação de avarias, quer para manutenção, são acrescidos”, reconhece a CP.

Queixas, lamentos e ausências

A todos esses problemas juntam-se outros, como o latente conflito entre trabalhadores e administração da CP. Há queixas sobre falta de pessoal, sobre sobrecarga laboral, sobre escassez de assistência técnica, sobre a má qualidade das máquinas ao dispor. E há negociações que raramente chegam a bom termo, greves que prolongam a agonia dos utentes enquanto fazem sobressair reivindicações laborais.

“Faltam maquinistas, faltam revisores e faltam assistentes comerciais. Além de que a parte operacional da EMEF (Empresa de Manutenção de Equipamento Ferroviário) não consegue corresponder às necessidades de manutenção dos equipamentos porque também não tem pessoal suficiente para o fazer”, resume Nuno Martins, desde janeiro último coordenador nacional do Sindicato Nacional dos Trabalhadores do Setor Ferroviário (SNTF) e membro da Direção da Federação dos Sindicatos de Transportes e Comunicações (Fectrans).

No final de 2018, a CP possuía 2 683 trabalhadores vinculados, menos 26 do que no ano anterior. Os dados constam do último Relatório e Contas da empresa pública, documento em que também surge confirmada a entrada, durante 2018, de 29 novos funcionários, contraposta pela saída de 55, maioritariamente por revogação do contrato de trabalho, por mútuo acordo ou por reforma.

“O quadro de Recursos Humanos precisa de rejuvenescimento, uma vez que muitos trabalhadores estão em idades próximas da reforma. Conforme esses trabalhadores vão saindo da empresa, é necessário proceder a algumas substituições. É critico para a operação da empresa o reforço adequado do quadro”, admite fonte oficial da CP.

O SNTF alega que a escassez de recursos humanos leva a que os maquinistas, sobretudo estes, realizem “cargas horárias acima da média”. O sindicato indica que “às dez horas diárias normais de serviço acrescem, em média mensal, outras dez de horas extraordinárias”, além de dias de folga “que deixam de existir”. Tal impacto tem levado a um “cansaço evidente dos profissionais”, não suficiente, porém, afiança o SNTF, para que se possa considerar que “a segurança dos utentes da CP esteja a ser colocada em causa”.

“Situação de rutura”

Em maio, o Governo travou uma greve de dois dias (mais uma) com o anúncio da contratação de 145 efetivos para a CP, destinados, sobretudo, às áreas operacionais da empresa. A novidade foi avançada conjuntamente pelos ministérios das Finanças e das Infraestruturas.

Na altura, o Sindicato Ferroviário da Revisão e Comercial Itinerante, que negociou com o Governo, classificava o cenário atual como fazendo parte de uma “situação de rutura”. E estimava em cerca de nove meses a entrada ao serviço dos novos funcionários, timing calculado depois de analisado o período previsto para a necessária formação laboral antes do início de atividade em pleno. Longe vai a possibilidade, portanto, de estarem disponíveis já no verão, para quando se adivinha o habitual pico de afluência aos serviços ferroviários.

Pouco antes da decisão, Carlos Nogueira Gomes, presidente do Conselho de Administração da CP, admitira que sem a contratação de mais trabalhadores “seria inevitável a redução de oferta”. Aliás, o Relatório e Contas da CP é bem claro ao expressar que a empresa se depara com “fortes constrangimentos à sua atividade decorrentes do atraso na concretização de investimentos na infraestrutura ferroviária, da obsolescência e vetustez do parque material circulante sem a correspondente substituição e da desadequação do quadro de efetivos dos diferentes níveis às necessidades funcionais”.

Foto: Sara Matos/Global Imagens

Manuel Margarido Tão, professor na Universidade do Algarve, especialista em Economia dos Transportes e um dos maiores conhecedores do panorama dos caminhos-de-ferro portugueses, é frio e direto na análise. “A CP vive um dia-a-dia de sobrevivência, uma autêntica agonia lenta”, define.

Os números oficiais de 2018 avançados pela própria CP confirmam o cenário negro. Foram suprimidos um total de 12 031 de percursos, 8 436 dos quais devido a greves verificadas ao longo do ano e que tomaram um total de dez dias de laboração regular. Avarias no material circulante, por sua vez, originaram cerca de três mil cortes. A situação tornou-se de tal forma dramática que obrigou a CP a alugar 20 automotoras à espanhola RENFE – outras quatro estão a caminho.

Conhecedor de todo esse somatório de problemas, Pedro Nuno Santos, ministro das Infraestruturas, disse, durante uma audição na Comissão de Economia, Inovação e Obras Públicas, em abril, que a CP deve ser “uma empresa honesta, pontual, cumpridora de horários, que não prometa aos portugueses o que não consegue cumprir”.

Verão quente a caminho?

O recado de Pedro Nuno Santos surgiu a dois meses do início da época de verão, pico da chegada de turistas a Portugal, e quando ainda não fora revelado qualquer plano de reforço de circulação ferroviária. Nem fora então, nem o foi entretanto. A única alteração significativa divulgada pela CP foi o lançamento de um comboio Intercidades especial que fará a ligação Lisboa-Faro entre o próximo dia 7 e o dia 1 de setembro, que estará disponível todas as sextas-feiras às 19.32 horas, com chegada ao Algarve prevista para as 23.33 horas.

Em Faro, e também com destino a Lisboa, haverá uma linha especial com saída aos domingos às 20.08 horas. Mais uma hora de duração em relação ao tempo normal de percurso entre ambas as paragens, explicada pelo recurso a automotoras UTE 2400 utilizadas geralmente em ligações regionais.

De resto, a CP não tornou pública qualquer outra medida que deixe antever mais comboios em circulação durante o verão, mesmo tendo em conta o natural boom de passageiros em temporada estival. “Estamos a desenvolver todos os esforços para assegurar a realização de todos os comboios programados nos diversos serviços”, garante a empresa.

Manuel Margarido Tão, por seu lado, diz “ser notório” que o aumento de turistas em solo nacional não é correspondido com o aumento da oferta. “Isso dá uma imagem muito má de Portugal. Andamos ao contrário dos restantes países da Europa, que apostam no setor ferroviário e durante o verão o reforçam sempre. Mais um sinal de evidente degradação”, reforça.

Privatizar ou não privatizar, eis a questão

O SNTF, sindicato que tem na greve recurso evidente quando a hora é de reivindicar direitos e denunciar problemas, aponta para questões que “carecem de resolução urgente” e respostas às mesmas por parte da administração da CP “cada vez mais escassas”. Nem as paralisações parecem surtir o efeito desejado por quem as espoleta, o que leva o dirigente Nuno Martins a concluir que a estratégia geral da empresa só pode ser uma: “Criar as condições para que haja défice de oferta e constrangimentos operacionais e, dessa forma, conduzir à privatização da CP”. O líder do SNTF não tem dúvidas de que a “estratégia parece concertada para esse fim”.

A CP atira a bola para canto e prefere não responder diretamente. “A questão terá que ser colocada ao acionista da CP – o Estado português”, sustenta fonte oficial da ferroviária. Manuel Margarido Tão não usa o termo privatização, mas aponta que o caminho é só um e está há muito traçado por este e anteriores governos, esta e anteriores administrações da empresa: “A liberalização”, qualquer coisa como o “render da guarda” para outros protagonistas.

Foto: Leonel de Castro/Global Imagens

“Dentro de dez a 15 anos, a CP tal e qual conhecemos acaba”, preconiza o professor universitário. Porquê? O especialista explica: “O Estado não tem qualquer interesse no transporte ferroviário, as cativações para o setor são a prova disso mesmo. Como não há investimento, a ferrovia degrada-se e o material circulante fica cada vez mais velho. Por isso, não antevejo outra solução que não a entrada em cena de investidores estrangeiros, liberalizando o setor e abrindo-o a outros operadores. O futuro passa por a CP gerir somente linhas urbanas, deixando as restantes a operadores externos”. Possíveis paliativos, como aumentos de capital e do corpo de funcionários, “não iriam diminuir a agonia da CP”, entende. Seria como “injetar adrenalina num corpo morto”.

Mau grado os constantes rumores de que a CP pode deixar a esfera pública, onde sempre se manteve desde o 25 de Abril de 1974, quando foi nacionalizada, a verdade é que nem mesmo durante o período em que Portugal esteve sob resgate financeiro da troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e FMI), entre 2011 e 2014, essa hipótese foi equacionada pelo Governo de então, liderado por Pedro Passos Coelho debaixo de uma coligação maioritária que juntou PSD e CDS. Apesar da onda de privatizações levada a cabo por esse Executivo, de que são exemplos maiores a EDP, a TAP, os CTT, a REN ou a ANA, a CP sempre se manteve fora de cogitação no que diz respeito a uma possível saída do controlo público.

No entanto, sobretudo depois da entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia, agora União Europeia, em 1986, e durante os governos PSD liderados por Cavaco Silva, entre 1985 e 1995, verificou-se uma alteração drástica do mapa de rotas proporcionadas pela CP, com particular destaque para a significativa supressão de linhas no interior do país, trocadas por alternativas de transporte rodoviário. “Há grandes cidades, como Viseu e Vila Real, que não têm acessos ferroviários. Foram destruídas estruturas importantíssimas, numa estratégia estatal que conduziu à decrepitude da ferrovia”, lamenta Manuel Margarido Tão.

Degradação à vista

Na Estação do Oriente, em Lisboa, imaginada pelo espanhol Santiago Calatrava, o mesmo que pensou a Torre das Comunicações de Barcelona (Espanha) ou o Complexo Olímpico de Atenas (Grécia), no âmbito da Expo 98, centenas de pessoas circulam por entre longos braços de escadas, com o Parque das Nações e o Tejo como pano de fundo e referência. Todo o trânsito ferroviário da capital ali converge, das linhas urbanas às linhas nacionais, passando pelas composições com destino a Espanha que depois hão de fazer ligação a França.

Passageiro mais apertado de necessidades tem à disposição diversas casas de banho gratuitas espalhadas pela enorme estação. O problema é o resto; as instalações mal cuidadas, o indisfarçável mau cheiro, as paredes pejadas de anárquicos escritos, vandalismo puro e duro traduzido em pichagens sem sentido aparente que conferem aos lavabos aspeto degradante.

A Infraestruturas de Portugal, responsável pela gestão e manutenção das estações ferroviárias, jura ter conhecimento da situação e até sublinha saber o que fazer para a corrigir. Questionada pela “Notícias Magazine”, a empresa garante que “a limpeza e higienização das instalações sanitárias da Estação do Oriente são realizadas seis vezes por dia”. Atualmente, está a ser avaliada “a possibilidade de concessionar a prestação desse serviço”, o que abrangerá a “remodelação e manutenção das instalações”, acrescenta a IP.

No andar superior, os cais de embarque também oferecem dificuldades. De outra ordem, é verdade, mas tradutoras de embaraço. Como os painéis que se encontram desligados e sem qualquer tipo de indicação sobre qual a próxima composição que arribará a determinada linha.

Esclarecer dúvidas em pessoa também se torna complicado, dados os poucos funcionários por lá existentes a quem se possa eventualmente recorrer. “O número de elementos da segurança não varia. Ao longo do dia, estão de serviço dois vigilantes durante 24 horas”, confirma a Infraestruturas de Portugal.

Para quem é turista e não domina o português, as informações sonoras tornam-se obstáculo, ditadas que são em mensagens automáticas apenas emitidas na língua de Camões – o inglês fica reservado, somente, para os trajetos que têm país estrangeiro como paragem final. Quem, por exemplo, tomar no Oriente um comboio com destino ao Porto – e são milhares que o fazem todos os dias – mais não escutará do que informações em português.

Pormenores que também ajudam a explicar o estado do transporte ferroviário em Portugal. “Ou a sua lenta agonia por manifesto desinteresse do Estado ao longo dos anos em o preservar e melhorar”, como não se cansa de repetir Manuel Margarido Tão.

O futuro dos caminhos-de-ferro – cujas origens remontam a 1856 e ao reinado do jovem D. Pedro V – é uma incógnita. Espécie de viagem sem destino planeado. Atrasada no tempo, intrigante na perspetiva.