Rui Cardoso Martins

Coro do medo perdido

Ilustração: João Vasco Correia

Era larguíssimo, os braços pareciam cisternas redondas de camião e o homem matéria perigosa. Gritava no corredor do tribunal.
— Dizer que eu faço isto aos meus filhos, isto não vai ficar assim, tenho provas disto, não se vai ficar a rir, ela. Eu vou preso 20 anos e ainda saio novo!
— Tem calma, tem calma, dizia-lhe a irmã.
— Pensa que eu tenho medo de ficar lá dentro fechado, não tenho medo!
— Calma, filho, calma!, pedia-lhe a mãe, de preto até às sandálias.
— Eu não tenho medo, que eu sou cigano!
Lá dentro, a mãe dos seus filhos esperava a juíza, que chamara a polícia para controlar o homem. C. enrolava o cabelo e logo o desfazia. Falava sozinha, sobre o eco do ex-companheiro.
— A fazer-me mal a vida toda, mas eu já não tenho medo dele, quer fazer-me mal à vida e ficar em cima sem ter pena dos próprios filhos, diz-se tão bom pai, nem sustento dá aos filhos, não calça, não veste, não dá sustento, não dá comer, não dá nada, não quer saber, tem dinheiro para andar bem montado de xis-xis e três-vinte, para trás e para a frente o dia todo, pode pagar a porcaria do carro e não tem dinheiro para dar aos filhos, para os calçar e vestir… Eu posso morrer, mas eu não tenho medo de morrer, estou-me a cagar, não quero saber, mas não me vou calar mais, já chega o tempo que me calei, não me calo mais. Ele não é humilde. Ele se fosse humilde nem falava nada. Mas não é humilde.
Lá fora o homem gritava para a irmã da ex-mulher ouvir. Ela nunca gostara dele, hoje até diz que não o conhece de lado nenhum, porque logo no segundo dia ele deu-lhe uma carga de pancada. A irmã avisou-a: bater-te ao segundo dia de namoro?! Livra-te dele! Mas o amor é inexplicável.
— A irmã dela é uma provocadora!, gritava o homem no átrio.
— Olha lá, porque é que estás a entrar nisso? Tu não tens mãe, tu não tens irmãs? Eu depois vou falar com ela. Eu sou para a idade dela, diz a mãe. Eu estou vestida de preto, eu não sou velha. Deixa lá que quando eu sair eu falo com ela, não vás tu para cima dela, eu vou falar com ela!
— O cigano não é violento, disse o homem aos polícias quando o iam levar para outra sala.
— Você sabe que o cigano não dá mau viver à mulher dele!, elas é que querem andar na vida, explicou a mãe.
— O cigano não é violador, não há uma única morte, um único cigano que chegasse a matar uma criança!
A juíza entrou na sala e perguntou ao escrivão:
— O senhor ficou na outra sala?
— Sim, ficou com os agentes, disse o funcionário.
O advogado do homem perguntou à ex-mulher:
— Nestas mensagens que há pouco identificou como sendo dele, pergunto como é que sabe que era ele que tinha outro telefone, que era ele que lhe ligava insistentemente?
— Porque eu atendia as chamadas.
— Essas atendia, mas nas escritas como é que sabia que era ele que mandava as mensagens?
— Porque era ele. A forma de escrever era dele. Eu não o podia ver, mas era ele, ou então mandava alguém escrever por ele.
A mulher disse à juíza que numa altura viveu num abrigo. Mas depois alugou uma casa.
— Quando a ameaçou, o que é que lhe disse?
— Disse que me ia matar, que não tinha medo de ir preso, e que eu não me ia ficar a rir dele. Eu cada vez que vinha à rua, espreitava se ele vinha na rua, passados cinco minutos de eu estar na rua, ele aparecia. Se por acaso eu estivesse na presença da minha irmã ou de alguém da minha família, ele chamava-me, tinha que me dirigir a ele, começava-me a ameaçar que fazia mal à minha família se eu não subisse para casa com ele. E eu com medo, com receio que ele fizesse mal à minha irmã, ou a alguém da minha família, subia com ele. Chegando cá acima a casa, ele começava-me a tratar mal, a ofender-me até conseguir ter relações sexuais comigo e depois ele acabava de ter as relações, vestia-se e ia-se embora. Usava-me como um objecto. E muitas vezes eu fiz a chorar.
Fez-se silêncio na sala para C. chorar outra vez.

12(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)