Conto de Natal: A garrafa

Ilustração: João Vasco Correia

Texto de Sérgio Mendes.

O relatório era claro, definitivo. Não chorou, não se despediu dos mártires do piso três. Não ligou à mulher, aos filhos dispersos pelos brasis, aos amigos do clube académico, aos irmãos da loja da alegria. Vestiu o robe de lã e caxemira, desceu pelo elevador sonâmbulo, pediu ao segurança que lhe arranjasse boleia até à aldeia dos pescadores. O segurança olhou-o com desconfiança, mas era o senhor engenheiro, homem de muitas andanças, ex-autarca da praça. Fumaram o primeiro cigarro depois de muitas travagens e vultos pingados.

O homem de robe carregava uma mala de couro, curtida por muitas travessias aéreas e marítimas: fez pontes no Dubai, escolas na Argentina, arranha-céus nos Estados Unidos, hotéis no Iraque, hipermercados na Rússia. Não tinha retrato na revista Forbes, mas possuía propriedades em Troia, várias quintas durienses, uma ilha perdida na Polinésia. A mala de couro, suspensa da mão marfânica, perfumada com aroma de sândalo e morfina, densamente povoada pelos mistérios da alma, permanecia fechada durante aquela noite de morrinha e neblina. Era dia de consoada nas praias lusitanas e a corrente elétrica falhara por diversas vezes.

A boleia chegou perto das onze da noite, num monovolume dirigido por um velho professor de matemática. A rádio ligada na emissora nacional: WWV 111, tocada pela orquestra sinfónica de Berlim. Lembrou-se do pai, das tardes em Itaparica, das idas ao sertão, das caminhadas no Pico, das emboscadas da infância, dos crepúsculos no mezanino do Café Rioalto, do seu lento desaparecimento na cama de ferro forjado, do funeral com bombeiros, cavalos e bispo.

– Chegamos, são doze euros. Quer que espere por si, perguntou o condutor do carro.

– Não, obrigado. Não volto à cidade, disse o convalescente num tom arranhado, apertando o cinto do robe, o cabelo ralo na ventania, a mala de couro contra o ventre.

Caminhou ao longo da avenida, entrou num café de homens do mar e da rua. Havia rabanadas num prato branco, pinhões numa tigela, pão de ló numa toalha de papel, a máquina da Santa Casa desligada, a televisão apagada, seis homens sentados a uma mesa, comentando uma partida de damas. Não fizeram caso dele, não enrugaram o olhar tisnado, não o convidaram a sentar-se.

– Então, o que vai ser para este amigo, perguntou o menino atrás do balcão.

– Queria sete cálices vazios, disse o visitante, procurando algo na mala de couro, retirando do seu interior uma garrafa de vinho do Porto de 1865, da casa Niepoort.

Os velhos pescadores olharam para ele, desassossegados, viram-no colocar a garrafa abobada em cima da mesa, retirar do interior da mala um subscrito fechado, um relógio prateado e uma pena alongada. O homem de robe aproximou-se do jogo de damas, sorriu antes do pedido estranho, falou depois da ronca ter chamado pelos perdidos.

– Esta garrafa de vinho vale mais que todas as pescarias de sete vidas. Querem bebê-la comigo ou preferem que a deixe na mesa para ser trocada por dinheiro.

– Não queremos o seu dinheiro, nem o seu vinho fino, basta-nos o peixe que pescamos ao largo, disse um lobo de ombros largos, barba grisalha.

O doente terminal, não perdendo a esperança, aceitando a vida perdida, abriu o subscrito. Pediu para lê-lo, de pé, segurando-se no ombro de uma cadeira:

Meu filho, lembra-te que és filho de pescadores. Que tuas avós rezaram pelos maridos que não voltaram, e que tenho enorme dívida por pagar aos homens que lá ficaram. Fui o armador que deixou abater o sustento dos que pescavam na Boa Nova. Peço-te que restituas tudo o que perdi. O que perdemos. O tempo que não vivi perto do mar. A garrafa que não abri quando nasceste. A garrafa que não abri quando fiz o primeiro milhão. A garrafa que não abri nos natais em que estávamos juntos. Abre-a por mim, pela vida e pela alma dos que estão contigo.

Os pescadores aceitaram encher os sete cálices vazios, bebendo do espírito de outros invernos, esquecendo o jogo das damas, contando velhas histórias de Natal.

O homem de robe, depois da debandada da meia-noite, caminhou diante das gamelas, passou por entre armadilhas e redes estendidas por mulheres que sabem amar. Num relance, viu uma luz ao fundo, bruxuleante, a cintilar dentro e longe de si. Decidido, entrou no areal, descalçou-se, caminhou de ânimo redobrado, avançou na direção da fogueira que aquecia um casal de migrantes e dois cães abandonados, negros pela noite, molhados pela travessia, cantando ao menino que dormia no colo da mãe. Ao homem despido nas vagas da eternidade.

Biografia do autor

Sérgio Mendes, natural de Guimarães, cedo se deixou encantar pelos livros, influenciado pela forte ligação do pai, o poeta Firmino Mendes, ao mundo da escrita.
A licenciatura em Física e a via profissional do ensino adiaram o sonho da publicação até 2015, ano em que conquistou a segunda edição do Prémio Infantil Pingo Doce com o livro “Orlando, o caracol apaixonado”.

Apaixonado pela obra de Sophia de Mello Breyner, tem escrito sobretudo para crianças. São disso exemplo os livros “Margarida e o lobo” e “Sofia no mundo das coisas perdidas”, ambos publicados pela Coolbooks.

Foi também nesta chancela da Porto Editora dedicada a autores portugueses que publicou “O quarto da mãe”, romance com uma forte carga dramática que remete para o quotidiano de uma criança de dez anos obrigada a lidar com a loucura crescente da mãe.