Rui Cardoso Martins

Conhecimento do ciúme

Ali estava um homem arrastado para um problema que não lhe dizia respeito. Ou dizia?
— É parente ou amigo do arguido?
— Sou conhecido.
— É parente ou amigo da ofendida?
— Sou também conhecido.
E com esta aproximação distanciada do problema Daniel-Sónia, numa linguagem que só de cinco em cinco minutos entrava nos sentimentos e o obrigava a aquecer as palavras, o homem iria sobreviver a quase 30 minutos de interrogatório.
Imaginamos o stresse dos acusados, os nervos das vítimas, mas um dia se estudarão as lesões pós-traumáticas das testemunhas em tribunal. Porque são obrigadas a dizer a verdade, sob pena de crime de falso testemunho. Mas o que é a verdade quando somos forçados a descrever uma relação de equívocos?
Carloto fora amigo de duas pessoas que agora se odiavam, pelo meio baixara a “conhecido”. Coleguinha de Sónia na escola primária, reencontrou-a em adulto e desenvolveram “sólida amizade”.
— Vivi em Braga três anos. Foi nesse período que a Sónia trocou comigo mensagens sobre o que se tinha passado com o Daniel.
Por exemplo, quando saíram de Lisboa:
— Fomos a Sintra. Foi quando o telefone dela tocou sistematicamente. Ela queria bloquear os números. Foi quando comecei a dar mais atenção ao que ela dizia.
E o que dizia Sónia?
— Ela disse que ele estava muitas vezes à porta da estação. Ela propôs que eu a fosse levar à estação.
— Presenciou cenas do senhor Daniel?
— Presenciei uma, no café. Foi das últimas, foi da segunda vez que a Sónia apresentou queixa. Ele já vinha alterado.
— Disse o quê?, perguntou o procurador da República.
— Posso dizer?
— Tem de dizer.
— Disse que ela era uma puta, uma vaca, que eu era um cabrão. Já estava alterado…
— Parecia estar alcoolizado?
— Sim.
— Que mais disse Daniel a Carloto?
— Não vales uma merda, não passas de um palhaço. Andaste-me aqui a enganar.
O grande problema era a proximidade física em si mesma. Daniel trabalhava no café dos pais, no largo onde morava Sónia. Depois de se divorciar, ela andou com ele e Daniel apaixonou-se. Ali estava, tremendo a perna no banco dos réus, um rapaz novo acusado de perseguição a uma mulher mais velha. Ela dissera, na sessão anterior, que nunca se sentira a namorada dele.
— Junto à porta de casa dela, explicou Carloto, vi-o algumas vezes, mas não posso dizer que fosse de propósito, pois era local habitual dele.
Porque o café dos pais dele é mesmo ali. E os amigos com quem Daniel se relaciona estão sempre ao pé do café.
— A dona Sónia disse que ele não aceitou o fim da relação. Que estava sempre a persegui-la.
— É um facto.
Um dia, na largada de touros:
— Ele disse “Puta, és uma merda de mulher, não vales nada?”, perguntou a advogada de Sónia.
— Esse momento no café lembro-me perfeitamente, porque ia chegando a vias de facto. Outras pessoas diziam-lhe que tinha que conseguir esquecer. Mas ele não conseguia esquecer e dizia aquelas coisas todas.
Mas atenção, as mensagens escritas de Daniel não eram violentas, eram apaixonadas, pedia a Sónia que voltasse porque a amava.
— Eu cheguei a dizer-lhe: vai em frente, se gostas dela. E foi isso que mais me custou, foi tê-lo apoiado, disse Carloto.
No fim, a surpresa. Perguntou o advogado de Daniel:
— Sabe se a dona Sónia já tinha sofrido uma história semelhante, se tinha acusado outro homem de perseguição?
— Já, admitiu Carloto, houve uma história semelhante antes desta.
Um dado novo envelheceu o caso.

(O autor escreve de acordo com a anterior ortografia)